[ Edição Nº 17 ] – Negros de Luz entre o ligeiro e o erudito.

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barra-2126596 Edição Nº 17,   27-Abr.98

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Juntando o inconciável
Negros de Luz entre o ligeiro e o erudito

           Negros de Luz é o paradigmático nome de um projecto musical que vive de contrastes, reunindo épocas diferentes, estilos diferentes e instrumentos aparentemente inconciliáveis, O grupo é dirigido pelo jovem maestro Jorge Salgueiro, que em entrevista ao “Setúbal na Rede” apresentou os Negros de Luz e as “Canções da Inquietação”, um disco com lançamento em edição de autor previsto para muito breve, que reúne poemas de Fernando Pessoa, António Aleixo, Miguel Torga, Eugénio de Andrade e Mário de Sá-Carneiro, entre outros.

          “Vá, Gambozino”


          (necessita do Real Audio)

          Setúbal na Rede – Como é que se pode definir os Negros de Luz?
          Jorge Salgueiro
– É um grupo musical cuja constituição influencia bastante a sua sonoridade. É constituído por quatro vozes, um quarteto de cordas, piano e percussão e a sua sonoridade é bastante marcada por isso, assim como o próprio aspecto estético, pois há aqui uma relação entre instrumentos que podem parecer antagónicos, como é o caso das cordas e da bateria, este, um instrumento geralmente ligado ao jazz e ao rock.

          SR – Como surgiu então essa estranha ligação de instrumentos?
          JS
– Isso é uma coisa normal na música do século XX, ou seja, os compositores procuram encontrar várias soluções diferentes das que eram utilizadas no século XIX, em que havia formações bem estabelecidas como os quintetos de sopros, os quartetos de cordas, a orquestra de câmara, a orquestra sinfónica, e os autores do século XX procuraram inovar em determinadas áreas e um delas foi a junção de instrumentos de forma peculiar.
          SR – Seja como for, esta é uma junção verdadeiramente inovadora, e que ao juntar instrumentos da dita música clássica com uma bateria de rock, poderá provocar reacções mais hostis por parte de alguns puristas da música. Não ouviram já críticas desfavoráveis por isso?
          JS
– É um bocado complicado porque se estivermos na área da música erudita, não somos totalmente integrados pelo sistema, digamos assim, mas se estivermos na área da música ligeira ou pop/rock, o fenómeno dá-se da mesma forma.
          SR – Como é que se colocam então no cenário da música que é produzida actualmente?
          JS
– É difícil encontrar um rótulo, mas talvez lhe chamasse música contemporânea ou simplesmente música portuguesa. No entanto, nós julgamos, apesar de tudo, que a nossa música é acessível, não há problemas de comunicação com a nossa música.
          SR – Quer isso dizer que está mais perto da música ligeira?
          JS
– Esse é um dos nossos objectivos e portanto, quer façamos coisas que possam parecer mais eruditas ou mais ligeiras, o problema da comunicação é sempre tido em conta e é bastante considerado.
          SR – Os músicos da área clássica ou erudita tendem muitas vezes a tornar-se elitistas. É com isso que os Negros de Luz querem cortar?
          JS
– Nós temos um objectivo que passa pelo facto de termos estudado música durante tanto tempo e agora pensamos porque não havemos de ter agora um projecto que possa ser também minimamente comercial e com o qual possamos fazer alguns concertos. Se há uma série de músicos que só com boa vontade conseguem fazer inúmeros concertos, porque é que os que estudam não hão-de conseguir fazer também.
          SR – Mas qual será a razão para haver habitualmente essa diferença de atitude entre os músicos com formação clássica e os outros?
          JS
– Isso tem um pouco a ver com as formas de funcionar das pessoas. Os músicos da clássica geralmente encostam-se ao emprego, isso é um dado adquirido, e depois têm um certo receio do contacto com certos aspectos, como a imagem, a publicidade e a gestão de carreira de um modo mais amplo. No entanto, em Portugal, já há músicos da área clássica que faz música clássica e que procura dar uma nova imagem do trabalho que faz. Aí não somos nós que estamos a inovar, antes pelo contrário, pois já existe muita gente que produz música clássica pura, interpretando autores do século passado, autores românticos, autores clássicos e que procura dar uma nova imagem e implementar um novo conceito de comunicação à sua música.
          SR – A música clássica é muitas vezes definida também como música séria. De acordo com essa nova atitude que referia, faz sentido essa designação?
          JS
– Isso é um adjectivo absolutamente estúpido. É tão séria a música clássica como é o rock, o jazz ou a pop. É tudo uma questão de qualidade e encontram-se músicos de fraca qualidade na música clássica como se encontram no rock, no jazz ou na pop. Em todos os géneros se encontram músicos muito fracos e músicos espantosos, pelo que essa designação não tem a mínima lógica. Há compositores eruditos que são um falhanço absoluto, assim como há nas outras áreas.
          SR – Não é o caso do Jorge Salgueiro. Embora seja ainda extremamente jovem, tem já uma série de obras escritas e com relativo sucesso, não é?
          JS
– Bom, para já, a quantidade não é sinónimo de qualidade. E quanto ao sucesso, não me parece que seja a palavra apropriada para a minha obra, pois, para já, a divulgação que tem ainda é bastante reduzida.
          SR – Mas tem recebido geralmente referências elogiosas?
          JS
– Sim, tenho um grupo de amigos que me aplaude bastante, isso sem dúvida.
          SR – O que essa resposta revela, é tudo modéstia?
          JS
– Não, basta olhar para a minha conta bancária.
          SR – Se a questão se põe a nível de conta bancária, talvez não seja este o estilo de música mais propício neste momento para se enriquecer?
          JS
– Não vou mudar por causa do dinheiro, mas também não vou procurar outra forma para enriquecer sem ser a música.



          SR – Voltemos aos Negros de Luz. O primeiro disco está quase a ser editado. Como se pode apresentar “Canções da Inquietação”?
          JS
– Nós existimos desde 1995 e sempre fizemos versões de autores eruditos e populares. Tentámos abranger sempre as duas áreas. Chegou uma certa altura em que achámos que devíamos ter peças originais, canções originais. Pensámos arranjar um poeta ou alguém que escrevesse letras com que nos identificássemos mas não houve conhecimentos, pela nossa parte, para encontrar a pessoa certa. Então decidimos pegar em poesia já feita e publicada e optámos por catorze poetas portugueses do século XX. A escolha dos poemas foi minha, que fiz a música, e teve a ver com um processo de identificação e com uma relação com a musicalidade dos poemas.
          SR – Sendo um poema uma obra feita para ser lida ou ouvida que não desta forma, como foi esse processo de lhes adicionar a música?
          JS
– Para já, é importante que a musicalidade inata do poema seja preservada e isso não é uma coisa subjectiva, pois tem a ver com o ritmo do português e das palavras, e isso foi respeitado. Não há uma distorção das palavras, o fraseado e a estrutura dos poemas, tudo isso foi respeitado. Portanto, julgo que os poemas estão intactos num certo sentido.
          SR – O grupo deu-se a conhecer com as versões que já referiu. Essa é uma etapa ultrapassada com o lançamento das “Canções da Inquietação”?
          JS
– Não, porque isso faz parte do património a preservar. Vamos adaptar o nosso repertório às ocasiões, utilizando projectos diferentes de espectáculos que temos preparados. Temos as “Intervenções”, com as “Canções Heróicas” do Fernando Lopes Graça e com canções do Sérgio Godinho, do Vitorino, do José Afonso e do Adriano Correia de Oliveira, portanto, tudo compositores ligados ao movimento de libertação. Temos ainda o “Contrastes” que abarca desde música popular portuguesa a música ligeira e a música erudita, utilizando contrastes que pretendemos uniformizar com a nossa linguagem. Para além das “Canções da Inquietação”, que é o espectáculo referente ao nosso primeiro disco, com os tais catorze poemas de catorze poetas portugueses.
          SR – Perante o cenário da actual música portuguesa, como vês as possibilidades de divulgação e de aceitação ao vosso disco?
          JS
– Em relação à divulgação, estou convencido que as rádios vão passar o disco, até porque a empresa Foco Musical tem feito um óptimo trabalho nesse sentido. Em relação às vendas, julgo que as expectativas são pequenas. No entanto isto é um pouco como jogar no totoloto. Mas objectivamente, as expectativas são pequenas.
          SR – O disco vai ser lançado em edição de autor, com o apoio da Foco Musical, a empresa que trata do agenciamento dos Negros de Luz. Chegaram a contactar editoras antes de tomarem esta opção?
          JS
– Certamente que não estamos a ter este trabalho todo porque queremos. Estamos a tê-lo, primeiro porque acreditamos no projecto e depois porque não houve uma editora que apostasse em nós verdadeiramente. Houve algumas que apostaram, mas não de uma forma satisfatória e portanto, optámos por sermos nós a editar o trabalho.
          SR – Depois do disco editado, os Negros de Luz esperam ter a actividade normal de concertos como qualquer grupo de música ligeira?
          JS
– Queremos ter o nosso cantinho, que é muito específico e por isso não vamos roubar o lugar a ninguém, já que este é um projecto tão peculiar, tão diferente, que terá o seu lugar próprio. Será um cantinho pequenino mas que nós queremos preservar.

Entrevista de Pedro Brinca     

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