Edição Nº 26, 29-Jun.98
“Dançando na Noite”
Os UHF por conta própria
O histórico grupo do rock português, UHF, lança esta semana o seu mais recente disco, intitulado “Rock é! Dançando na Noite”, um disco que marca mais uma etapa na vida de um grupo com um percurso longo e agitado, e no qual apenas permanece o vocalista António Manuel Ribeiro, desde há muito o único elemento da formação original de há vinte anos.
Agora rodeado por músicos muito mais novos em idade, após ter dispensado os anteriores logo após a gravação de “69 Stereo”, António Manuel Ribeiro funda também, com este disco, a sua própria editora, a AM.RA, editora com a qual pretende vir a lançar novos grupos no mercado, utilizando todos os conhecimentos adquiridos com a sua longa experiência no meio musical português.

“Dançando na Noite”
(necessita do Real Audio)
Setúbal na Rede – Como é que podes apresentar o novo disco dos UHF?
António Manuel Ribeiro – É um disco de guitarras, de canções curtas, muito a pensar no palco e nos concertos, que é a nossa forma de vida, e é um disco escrito comunitariamente, em termos de música, por toda a banda. Tem músicas do baterista, do guitarrista e do teclista. Do baixista é que não há músicas porque ele entrou para a banda só em Janeiro. Reflecte, por isso, uma variedade temática, em termos de músicas pelo menos porque toda a gente trabalhou para este disco.
SR – O que nem sempre foi habitual nos UHF, ou seja, o António Manuel Ribeiro está finalmente a deixar de dominar as coisas na banda, ou será esta a formação ideal do grupo, proporcionando uma atitude diferente?
AMR – Eu digo sempre que é a formação ideal, porque isto é como um casamento. Nós divorciamo-nos e casamos porque queremos, porque acreditamos, o que não quer dizer que amanhã não hajam contingências que possam alterar a situação. Eu não luto contra isso nem a favor disso, limito-me a viver a vida. Mas eu nunca dominei nada. Apesar da maioria dos músicos portugueses serem quase todos compositores, eu não acredito muito nisso, pois entendo que há pessoas que podem e sabem compor e outras pura e simplesmente não o devem o fazer, porque são executantes e não compositores.
SR – Os UHF têm passado por diversas formações, em que o António Manuel Ribeiro tem sido o único elemento permanente. A que se deve isso afinal?
AMR – Insatisfação, inconformismo, sobretudo isso e nada mais. Mais uma vez digo que é como nos casamentos. É evidente que há casamentos que duram uma vida inteira mas em que os cônjuges se odeiam e por vezes até se abam por matar um ao outro, ou de uma forma lenta ou, às vezes, até de uma forma desastrada. Eu vejo a música também assim. Nós temos que ter uma relação bonita, fluida, de dia-a-dia, em que tem que haver cumplicidade, tem que haver ritual de trabalho, e sem isso não vale a pena continuarmos.
SR – Mas nos UHF as mudanças tem sido sempre algo radicais, e a última foi mesmo a mais radical, com o afastamento simultâneo de todos os outros elementos e com a entrada de uma série de elementos muito mais novos em termos de idades. Como te sentes a trabalhar com pessoas de outra geração e com outra vivência, outra maneira de estar e outra cultura?
AMR – Repara que fui eu que dispensei a formação antiga, e dispensei é mesmo o melhor termo a usar, e fui eu que congreguei estes novos músicos. Portanto há uma coerência de escolha de caminho. Esta nova formação é duplamente coerente porque todos eles têm uma idade muito próxima uns dos outros e isso interessou-me porque assim não vai haver uma fronteira de ideias, de concepções e de formas de trabalhar entre eles. Há um produto, uma ideia e um passado que é meu, e depois há um grupo de pessoas que por vontade própria quiseram estar nos UHF e que, entre eles, têm uma perspectiva musical coerente. Isto foi bastante pensado e amadurecido durante a gravação do último álbum, o “69 Stereo”, ainda com a anterior formação, no Verão de 1996. Foi nessa altura que eu cheguei à conclusão de que a vida daquela formação estava completamente gasta. Eu estava saturado do ‘modus vivendi’ daquela formação.
SR – Mas o teu passado e a diferença de idades entre ti e os outros elementos da actual formação não poderá servir de fronteira dentro do grupo, ou, dando razão às acusações que sempre se ouviram, é mais fácil agora seres o dono do grupo?
AMR – É bom esclarecer as pessoas nesse sentido. Muitas vezes, aquilo que se conhece da vida de uma banda, não é a verdade do seu dia-a-dia, pelo que é mais fácil dizer que eu sou o “dono” dos UHF do que dizer que sou aquele que trabalha. Isto é muito menos sensacionalista, mas é a verdade. O projecto antigo tinha-se esgotado porque as pessoas não estavam pura e simplesmente dentro do projecto. As suas vidas particulares eram demasiado inchadas e a vida profissional era demasiado magrinha. É evidente que estes músicos quando entraram para os UHF sabiam que este é o meu projecto e que fundei esta ideia há vinte anos atrás, mas também foi por isso que eles vieram, porque há uma solidez de trabalho e um dia-a-dia que muitas vezes as bandas novas não têm. Todos eles são músicos que já passaram por vários projectos e que, de uma forma ou de outra, tinham saído frustrados. É evidente que não se pode chegar aos UHF e anular o meu passado ou dizer que deixo de ter voto na matéria. A verdade é que, neste momento, temos cinco votos na matéria, já que somos cinco músicos, e por isso nunca empatamos pois quando não há unanimidade, há pelo menos uma maioria.
SR – E não tens problemas em ficar na minoria?
AMR – Não, e já fiquei. Por exemplo, para a gravação do video eu tinha imaginado algumas cenas de exteriores mas que, no entanto, a banda votou contra. Este é um caso concreto que aconteceu ainda há uns dias.

SR – Ao fim de tantas mudanças de formação, o que prevalece parece ser uma grande dose de teimosia da tua parte para continuar com o projecto para a frente, não?
AMR – Há teimosia e há sobretudo a consciência de que falharam muitas coisas no grupo, mas que os UHF ou eu não temos culpa nenhuma. Eu fartei-me foi de carregar com pessoas ao colo e, às vezes, não era só uma mas chegavam a ser três. Fartei-me disso porque não tinha prazer nenhum nessa situação. E calhar era mais fácil, e até comercialmente mais vantajoso, entrar numa carreira a solo, pois até já fiz um disco há uns tempos. Mas como eu acho que os UHF ainda têm alguma coisa a dizer, ou que a minha forma de trabalhar numa banda não se esgotou, pois ainda me apetece trabalhar num colectivo em que todas as pessoas têm ideias, é por isso que o projecto continua. Depois, ao fim de vinte anos, nós temos concertos, vendemos discos e temos fãs de norte a sul do país. Por isso é que vale a pena continuar com os UHF.
SR – Mas o nome dos UHF hoje já não é o que era há uns anos atrás?
AMR – É normal. Os UHF hoje têm fãs com dez anos de idade nos espectáculos. Pessoas que pensam que a carreira dos UHF começou em 1993 com a nossa versão do “Menina Estás à Janela”. É evidente que o público vai-se renovando nos projecto. Mal é quando os grupos pensam que os fãs ficam para toda a vida. Alguns ficam, mas o resto envelhece.
SR – Mas os UHF não vivem hoje um pouco agarrados ao passado histórico que têm, podendo-se considerar que não estão propriamente na moda?
AMR – Não estamos na moda nem poderíamos estar, senão este país vivia com a mesma moda há vinte anos. Nós podemos dizer é que os UHF são uma marca e a marca UHF lançou agora um disco. Tem outras características, tem outro design, tem outra performance técnica e de estúdio, mas é aquilo de que algumas pessoas gostam. Em 1981 fomos o artista que mais vendeu em Portugal e não éramos o grupo de que toda a gente gostava. Havia era muita gente que gostava de nós e isso continua a acontecer.
SR – Agora menos?
AMR – Hoje há público mais especializado. Hoje o público que consome as vendas dos duzentos mil discos, gostam hoje dos Delfins, amanhã do Paulo Gonzo, depois dos Excesso ou dos Santamaria. Na altura chamávamos a isto o mercado das sopeiras, porque eu nunca acreditei que os UHF tivessem 120 mil fãs quando venderam o “À Flor da Pele”. Portanto, o que os outros estão a fazer neste momento, nós já fizemos. Eu acho que o verdadeiro público do rock português, ou do rock que se faz em Portugal, anda pela casa dos quinze, vinte mil, pouco mais. O resto é o mercado das pessoas que gostam de consumir o que está no top e que não têm critérios nenhuns, para além de pensarem que o que está na televisão é bom.
SR – Quando olhas para a história da música portuguesa dos últimos anos, achas que faz sentido a existência dos UHF nos dias de hoje, em que perderam o estatuto que tiveram no início dos anos oitenta e em que estão um pouco marginalizados, pelo menos ao nível da região da grande Lisboa, já que para o interior do país a realidade é diferente?
AMR – A independência em Portugal paga-se, porque a independência é um acto de inteligência e neste país não podemos ser inteligentes. Agora, se os UHF estão cá, primeiro é porque eu gosto do que estou a fazer e depois há esta malta nova que está a tocar comigo que, se calhar, ainda gosta mais do que eu. Isso é uma parte importante do motor dos UHF, esta malta nova que começou a ouvir os “Cavalos de Corrida” nos bancos da escola. Eu nunca me preocupei muito em meter a moeda na capelinha, em sair à noite e conviver com as pessoas que interessam para promover as bandas. Mas também o país não vive só de Lisboa. Aqui falamos todos muito uns para os outros e ficamos contentes, porque achamos que o mundo está aqui. Mas atenção que eu não sou regionalista, eu votarei sempre não porque não quero o meu país dividido. Sou pelo Afonso Henriques e enquanto assim for não divido o país. Mas é um facto de que os UHF são um grupo do país inteiro e o país inteiro não é Lisboa. Não estou a dizer que Beja é mais importante do que Lisboa, mas não posso esconder que às vezes me escorrem as lágrimas quando chego a Toronto e tenho lá sessenta mil pessoas à espera dos UHF. E isso também é o país. A questão é que a promoção funciona muito por cartéis, que promovem isto ou aquilo, mas nós não dependemos disto, pois vimos de trás, temos um ‘background’ e o futuro que houver será nosso. Só que entretanto fartámo-nos de vender dez mil discos e como acreditamos que podemos vender mais, pois as vendas têm que ser um reflexo dos nossos concertos, nós mudámos o rumo e criámos a nossa própria editora.
SR – Aí os UHF estão a caminhar ao contrário do sentido normal das coisas no nosso país, na medida em que as pequenas editoras têm servido para lançar os novos grupos e os UHF, com o estatuto que têm, deviam estar melhor numa grande editora.
AMR – Isso é o resultado do nosso cansaço do esquema de trabalho das editoras. É evidente que a malta nova quando pode assinar um contrato, assina de cruz, e se for para uma multinacional acha que é o máximo, mas é só enquanto correr bem e se houver objectivos curtos. É que numa multinacional, quando as coisas correm mal, a culpa é normalmente do artista. E como eu me fartei do esquema de trabalho das multinacionais, agora vou tentar fazer diferente. Não tenho a veleidade de dizer que vou fazer melhor, porque as multinacionais tem milhares de contos disponíveis para gastar e eu não tenho. Aliás, esta editora começa com o lançamento de um disco dos UHF por sabermos que tem retorno financeiro. Não podemos começar com uma banda desconhecida porque isso iria causar-nos problemas financeiros de sobrevivência e nós não vamos fazer os disparates de outras independentes portuguesas. Também por isso nos associámos a uma distribuidora nacional, que eu arriscava dizer que é a mais eficaz.
SR – Quer dizer que esta editora não surge apenas para editar os UHF, mas para desenvolver um trabalho mais vasto?
AMR – Este é um projecto que tem cinco ou seis anos de maturação. Não aconteceu antes porque eu estava envolvido no management nos UHF, tínhamos um estúdio e uma empresa de som e tudo isso foi vendido para me dedicar à editora, que é onde me sinto melhor. Agora sinto-me feliz porque me agrada discutir promoção, agrada-me ter ideias e executá-las, agrada-me inventar dinheiro para colocar o projecto a rolar, e utilizar a experiência acumulada ao longo destes anos.
SR – Com toda essa experiência que tens e que agora transmites às gerações mais novas que estão a trabalhar contigo, não te sentes um pouco no papel de patriarca?
AMR – Eu acho que chegou a altura da minha geração tomar conta da industria musical deste país, porque há um processo de trabalho que vem de trás, que eu conheço a vinte e tal anos e que está ultrapassado. Corro o risco de dizer que estamos a viver neste momento, mais uma vez, um período de grande produção musical, mas cada vez com menos qualidade e cada vez menos defensável, porque os grupos são mandados para dentro dos estúdios para fazer depressa discos iguais aos dos Excesso ou do Paulo Gonzo. Todos os dias surgem novos Paulos Gonzos, mas esquecem-se que o Paulo Gonzo tem um ‘background’ de vinte e tal anos de carreira musical. Tal como há poucos anos estávamos cheios de ‘clones’ dos Delfins. Isso é sempre um erro porque o mercado satura-se e as pessoas começam a perceber que são todos iguais uns aos outros. É aí que os UHF marcam a diferença porque são coerentes. Já alguém disse uma vez que os UHF corriam o erro estúpido de serem coerentes de mais. Quanto a ser patriarca, só no sentido de defender os músicos que vierem trabalhar connosco dos truques do mercado e das rasteiras que o mercado encerra. Aí acho que a minha experiência pode funcionar positivamente.
Entrevista de Pedro Brinca