[ Edição Nº 28 ] – CRÓNICA DE OPINIÃO por Lígia Penim.

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barra-1326406 Edição Nº 28,   13-Jul.98

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CRÓNICA DE OPINIÃO
por Lígia Penim (Professora do ensino secundário, responsável pelo

Projecto Piloto de Educação Sexual dos estudantes)

As Avestruzes enfiam a cabeça na areia…

           Hoje todos concordam que a escola, para além de ensinar saberes, desenvolve capacidades e valores. Instruir e educar realizam-se conjuntamente.           Também é consensual que, numa sociedade democrática, a escola deve formar cidadãos para essa cidadania. Tolerantes, respeitadores da diferença e que antes de julgarem devem compreender.           Hoje, também temos todos consciência que, quando uma criança aprende a falar e a andar, também aprende a brincar e a fazer gestos de ternura, ou seja, crescem as aprendizagens cognitivas, sociais e afectivas ao mesmo tempo. É um ser integral, com corpo e alma e tudo o resto que lhe pertence.           Quando um adolescente entra numa sala de aula de uma qualquer escola como a minha, também ele entra inteiro e como pessoa, com os seus saberes, sentimentos, afectos, comportamentos sociais e obviamente sexuais…           Todos nós sabemos isto! Podemos é fazer de conta que não…Muitos professores não fazem de conta. Sentem em si a responsabilidade de formar seres integrais.

          Mas a vida é, toda ela, um risco. Hoje mais do que nunca! E vamos nós deixar de a viver por isso? Como diz o poeta Vinícius de Morais “A vida só se dá a quem se deu” e é para vivê-la que estamos aqui, não é?

          Contudo podemos nós dizer aos outros como devem ser felizes, se também nós temos tanto que aprender?           Então é necessário alargar a capacidade de cada um poder escolher e decidir. Para se optar tem de se saber entre quê. Não há democracia sem escolhas e tomadas de decisão. Para isto é fundamental ter um amplo leque de informações.           Mas a informação sobre sexualidade chega, ainda hoje, distorcida aos adolescentes. Os adultos mascaram-na, alguns meios de comunicação (muitas vezes) deformam-na e o preconceito social faz o resto. Nas suas cabeças preenchem-se espaços em branco com mistificações diversas sobre os papéis sexuais da mulher e do homem, sobre as relações amorosas, sobre os comportamentos dos adultos… e sobre os aspectos biológicos da sexualidade, também.           Há quase vinte anos que encontro adolescentes ávidos de informação e de diálogo. Só a informação, o diálogo, a partilha de experiências e de opiniões assim como a reflexão pessoal, permitem escolhas livres.           Mas é também no confronto de ideias que se compreendem as diferenças e as semelhanças entre nós e se aprende a aceitar os outros nas escolhas que fizeram. A reflexão pessoal, por sua vez, contribui para que cada jovem, tornado adulto, seja responsável! Ora o papel fundamental da escola é formar adultos responsáveis, responsáveis para serem mais tarde, quando quiseram, mães e pais. Quando quiserem, se quiserem e se forem capazes.           E porque a vida e dar vida é um conceito abstracto. Tem graduações! Há que reflectir sobre ela. O conceito de vida não é independente da qualidade da mesma.           Eu, que sou mãe, considero que, sê-lo, foi por duas vezes, as opções mais importantes da minha vida. Elas transmitem-se a quase todos os gestos quotidianos que realizo. E não poderia, nunca, obrigar ninguém a sê-lo, assim como não aconselharia alguém a não sê-lo. Nem mesmo a minha própria filha, com 18 anos.           Mas, como em toda a vida há riscos previsíveis e imprevisíveis, trabalho para prevenir os previsíveis quotidianamente, e de forma sistemática na escola secundária onde lecciono, nos últimos três anos integrada num projecto de Educação Sexual, de parceria entre o Projecto de Educação para a Saúde e a Associação de Planeamento Familiar. Entre os vários objectivos do projecto, encontram-se a prevenção da gravidez indesejada e a Sida, questões que preocupam os adolescentes, os pais e os professores.           Na votação ao referendo de dia 28 de Junho passado era importante responder Sim à despenalização do aborto. Não porque este sinal resolvesse todos os problemas, mas porque o mesmo constituiria um passo de desocultação da mentira, um olhar de frente a realidade. Como é que esta sociedade de desinformação se permite julgar, punir, humilhar mulheres e homens cujo acaso fez mães e pais? Como é que, manter na clandestinidade um sistema perverso pode servir para reduzir o aborto? Quem está, afinal, a favor e contra o aborto?… não podemos esconder a cabeça na areia como a avestruz.

          Estamos em tempo do ‘vale tudo’, mudam-se discursos sobre contraceptivos e tudo mais, defende-se a meio da jogada o planeamento familiar e a educação sexual… “mas onde estavam as águias que eu não lhes ouvi o roçar das asas”, inventam-se razões à última hora e coloca-se sempre, até à exaustão, o debate em premissas falsas.

          A vitória do Não, se bem que irrisória, não deixa de significar uma vitória dos preconceitos sexistas contra as mulheres, mas também contra a sexualidade como expressão humana de prazer e vida.

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