[ Edição Nº 37 ] – CRÓNICA DE OPINIÃO por Fernando Cameira.

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barra-7219555 Edição Nº 37,   14-Set.98

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CRÓNICA DE OPINIÃO
por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ)

O ridículo pobre exige ser milionário
morrendo de fome ante o milagre das rosas

           O célebre Centro Cultural de Setúbal, que deve a sua celebridade ao facto de não existir, tem vindo, recentemente, a ser alvo de algum debate, sinal de que começa a ser uma hipótese, mas que de debate só tem o nome. Falo do que me apercebo como cidadão, nomeadamente pelos órgãos de informação.           O que vejo é um desgarrado publicar de monólogos, quase exclusivamente entre a LASA e a CMS mas, pior que isso, de meras ideias genéricas: uns dizem que deve ser aqui, outros que deve ser ali, uns que tem que se ver com tempo, outros que é urgente, uns que só assim pode haver cultura, outros que já há cultura….ou seja, refrões e monólogos, nada de debate importante, nada de ir às questões de fundo.           Há umas semanas não pude deixar de sentir um certo mal-estar a propósito de um artigo publicado num conhecido jornal setubalense.           Mal-estar porque, mais uma vez, mesmo quando se parece querer criticar este tipo de discurso primário nada mais se faz que perpetuá-lo, só que com uma roupagem de crítico esclarecido, roupagem ridícula, neste caso, pelo material muito pobre com que é confeccionada e pelas cores demasiado garridas, espampanantes.           Chega de introduções e esclareçamos a metáfora da roupagem pobre e ridícula

          Pergunta o autor desse artigo: “o que é que uma e outra entidade entende por «Centro Cultural»? Um local onde possa acontecer «cultura» para alguns intelectuais da nossa praça? Onde sejam exibidos filmes para amantes dos «Cahiers du Cinema»? Ou concertos dos «Rolling Stones»?” (sic).

          Parece-me claro que, para o autor, só respondendo a este tipo de questão se pode saber que Centro Cultural construir. Será uma questão de material de construção para saber se tem que aguentar com a potência das colunas de som? Ou uma questão de estética, se mais para o intimista ou se para o “estrondo”? Será para decidir que equipamentos deverá incorporar?           Na minha modesta opinião, se se fala em Centro Cultural e não em Sala de Espectáculos ou Salão de Cultura, ou Galeria não sei quê é porque, logicamente, um Centro é um local que centraliza, que reúne, isto é, que deverá, por definição, estar apto para todo o tipo de manifestações. Isto no que se refere à sua natureza.           Quanto ao conteúdo intelectual ou popular nem sequer percebo como se pode pensar que tal condicione a concepção do futuro Centro. Não se idealiza um Centro Cultural, não se projecta e desenha a pensar se é para intelectuais ou para o povo!!! Se vão passar filmes dos “Cahiers” ou do Rambo depende da política cultural a adoptar por quem for responsável por ela. Não pode haver escolhas preconcebidas a condicionar a sua concepção. O tipo de cultura que vai dinamizar depende da oferta, da procura, dos projectos e da vontade de quem divulga e assume a sua direcção. Não percebo o que é que uma coisa tem a ver com a outra. A não ser que o autor defenda uma construção mais digna ou mais vulgar, mais rica ou mais pobre consoante o caso ou até, a criação de 2 Centros Culturais ou até ….porque não, de centenas: um para o Teatro de Vanguarda, outro para o Teatro Clássico, outro para o Teatro de Bairro, mais uns 20 para vários tipos de música, 50 para várias escolas de pintura, 1 para jogos de cartas e por aí fora….           Opiniões como esta, não explícita mas claramente subentendida na pergunta que coloca, mantêm a velha alternativa maniqueísta de intelectuais para um lado e populaça para o outro. Atenção, não estou a defender que não há diferentes tipos de cultura. Claro que há. Mas o importante é proporcionar locais e condições para que se mostre a cultura e se possa ter acesso a ela, seja intelectual ou popular. O Centro Cultural deverá ter esse papel, evitando a dispersão e servindo de animador. A maneira como ambas se articulam será, mais uma vez, da responsabilidade de quem organizar a programação. Não há receitas prévias nem deverá haver preconceitos. Não há que ser por uma ou por outra. Há que ser pela cultura.           Atente-se no Centro Cultural de Belém. Polémicas aparte (aquelas que todos sabemos) o CCB é hoje uma referência incontornável no sistema da cultura em Portugal e nele acontece de tudo um pouco: Fura dels Baus, sim, mas também Luis Represas, jazz sim, mas também flamenco. Claro que terá mais peso a cultura contemporânea, mas também isso me parece natural: é ela que está a mexer!

          Passando a debruçar-se sobre a problemática do edifício propriamente dito, desfere um golpe “genial” na proposta da Lasa de aproveitamento do antigo quartel de Infantaria. Diz este senhor que: “Para os edifícios existentes já aqui foi expressa a opinião: camartelo. O que lá está não tem qualquer valor arquitectónico e/ou urbanístico. Sentimental e afectivo talvez, mas isso não conta, melhor, não pode contar quando estão em causa outros valores”.

          O que se pode dizer sobre isto? Nem sequer vou contrapor, agora, se este edifício interessa ou não para Centro Cultural. Vejamos apenas como se elaboram opiniões “esclarecidas” e se publicam em jornais.           Primeiro, este senhor é muito contraditório: para ele, antes de construir, é preciso saber se queremos um Centro intelectual ou popular mas, para excluir uma hipótese de instalações não é preciso saber que tipo de edifício se pretende. Brilhante, não é?           Segundo, mais uma vez o monólogo: como o edifício não tem valor urbanístico ou arquitectónico, camartelo! Duvido, modestamente, desta opinião. Mas ainda que assim fosse, não há hipótese de “reciclar” para qualquer coisa? Não estamos a falar de um prédio que está a cair, não estamos a falar de um ferro-velho, não estamos a falar de uma aberração. Camartelo?!?!? Somos assim tão ricos? Então e a moderna noção de reciclagem? É só para embalagens? Quando entenderemos que reciclar é um conceito mais vasto de combate ao desperdício e aos custos desnecessários? Até pode ser que não compense reciclar. Mas há que ponderar. Mas, voltando ao Centro Cultural, depois da pobreza da roupagem surgem agora as corres berrantes e ridículas.           Então é por causa de um edifício não ter valor urbanístico ou paisagístico que não serve como Centro Cultural? Bom, vamos lá a ver com calma. Eu compreendo que se trata de uma obra importante para a cidade e, como tal, merece toda a dignidade. Mas não aceito que a dignidade do edifício seja o critério decisivo para a construção do Centro. Porquê? Porque não concordo, como toda a gente, penso eu, com as obras de fachada.           Confundir um Centro Cultural com as suas instalações é como confundir a missa com os locais de culto. Para os cristãos, a missa é o importante e tanto se pode desenrolar numa catedral como numa capela. Naturalmente que os cristãos se empenharam sempre para conferir a máxima dignidade possível às suas instalações mas seria absurda uma posição de: ou catedral ou nada. Penso que não preciso explicar mais e parece-me que é esta posição espampanante que este artigo defende, ainda que involuntariamente. Porque, na prática, sabemos que o dinheiro não abunda, sabemos que a política cultural não é prioritária. Se só aceitarmos uma Catedral de Cultura, receio que não venhamos a ter missa.

          O autor complementa, já no fim do artigo, porque é que não se deve “reciclar” o antigo quartel para Centro Cultural: “Se é apenas o aproveitamento do espaço, muito bem. Desenvolvam-se todos os esforços, políticos e cívicos, para que Setúbal possa dispor dum edifício moderno, concebido por um arquitecto de reconhecido mérito nessa área, digno da ainda capital do distrito, sem pretensões megalómanas porque a UE não dá para tudo. Começa a ser quase uma maleita a tendência para tudo se resolver com «proveitamentos». Chega!”.

          É claro o enumerar dos critérios que, para ele, definem um Centro Cultural. Até o arquitecto tem que ter mérito reconhecido, não pode ser um novo valor, p. exemplo. Tudo tem que ser … de marca e de cores bem brilhantes. Só do conteúdo é que nunca se fala.           Apetece-me inventar uma curta história:

          Um pobre esfomeado, ao ser abordado pela rainha que do regaço de rosas tirou pão para lhe dar, respondeu: – A senhora acha que isso é coisa que se dê? A minha vida só se resolve com uns milhares de contos.

          Eu sei que não há rainhas nem rosas que se transformam em pão. Mas há pobres, para além dos verdadeiros há muitos pobres da cultura em Setúbal, que se vêem obrigados a tudo procurar fora da cidade (até nos arredores próximos) e que talvez preferissem uma obra com a dignidade possível mas a funcionar rapidamente e bem, do que passar 10 anos à espera do tal edifício muito digno. Mas, é claro, eu também prefiro uma Catedral….se puder ser.

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