Edição Nº 37, 14-Set.98
AVISO À NAVEGAÇÃO !!
por Rogério Severino (Jornalista do “Jornal de Notícias” e
membro eleito do Conselho Geral do Sindicato dos Jornalistas)
Bocage afrontado com conferencista oficial
O defensor da liberdade nada tem a ver com o intelectual da ditadura
Este 233º aniversário do nascimento de Bocage tem a marcá-lo uma tonalidade negativa: o orador oficial é António Manuel Couto Viana, intelectual mas salazarista convicto e defensor acérrimo das suas convicções. Quem não se lembra das suas posições fascistas quando da visita a Portugal da Companhia de Maria della Costa, quando, juntamente com outro correligionário, Goulart Nogueira, invectivou o progressismo daquela companhia teatral brasileira? Bocage não merecia esta afronta. Ressalvamos desde já e damos o benefício da dúvida aos Serviços Culturais da Câmara Municipal de Setúbal que talvez tivessem somente olhado para a veia intelectual do actor, poeta e ensaísta Couto Viana, mas que, talvez com o diluir da Revolução de Abril nem sequer possam ter conhecimento do orgulhoso salazarista que é o orador oficial das Comemorações de Bocage que na tarde de 15 de Setembro vai falar do poeta. Couto Viana tem todo o direito de ter as convicções políticas que sempre demonstrou desde que isso não saia dos parâmetros consignados na Lei e pode até alegar que foi convidado a falar de Bocage sob o ponto de vista literário, mas também não lhe ficava mal se, por coerência se recusasse. No entanto estes branqueamentos que o 25 de Abril permite são muito problemáticos. A defesa do conceito de ditadura, a defesa intransigente do regime de Salazar é um direito que (lamentavelmente) a democracia vai concedendo aos seus inimigos e que, por isso, às vezes paga bem caro, só que tal não se compadece quando um defensor desses princípios aceita dissertar sobre a obra de poeta que foi uma vítima do sistema em que viveu, um contestatário nato – se bem que por vezes com algumas cedências – e uma vítima do então Intendente Pina Manique, o escuro responsável pela Polícia Política. Bocage, o implementador dos princípios da Revolução Francesa, o herege, o contestatário, não pode ser evocado na sua poesia por um defensor de regimes ditatoriais mesmo que alegue que se trata somente do elogio ao Bocage poeta e intelectual, porque é da sua própria poesia que lhe vem o desejo de Liberdade. Não pomos em causa o programa dos festejos, até porque tem alguma criatividade, como um espectáculo de luz e som, nem sequer enveredamos pela defesa da polémica de este ano não serem distinguidas personalidades com a Medalha da Cidade; o que contestamos é que o vate sadino – que, segundo a Câmara Municipal vai ter em breve os seus restos mortais em Setúbal – seja elogiado por um poeta que em termos de defesa de sociedade lhe é antagónico já que a Liberdade sempre defendida por Bocage nada tem a ver com a Ditadura defendida por Couto Viana. Aconselhamos a Câmara Municipal de Setúbal a ter mais cuidado em futuras realizações já que estas incompatibilidades põem em causa a Cultura e mais não são do que a democracia a dar mais um palco a um defensor de um regime de opressão. E estamos tanto mais à vontade em escrever este protesto quanto já o dissemos pessoalmente ao Presidente da Câmara Municipal e à responsável pelos serviços Culturais do Município. Nada temos de pessoal contra António Manuel Couto Viana, nem pomos em causa a sua cultura nem a sua intelectualidade; o que consideramos é que não é a pessoa indicada para vir falar de Bocage; um reaccionário não pode falar com isenção da obra de um contestatário; o que está em causa não é o princípio da intelectualidade mas sim a defesa dos próprios princípios pelos quais ambos se nortearam na vida. Um defensor de Silva Pais não pode falar com isenção sobre uma vítima de Pina Manique. Inicialmente estava previsto que o conferencista seria o Professor Óscar Lopes, mas por descoordenação de agenda este não teve possibilidade em vir a Setúbal; mas escolher Couto Viana como alternativa a Óscar Lopes é já por si uma enormidade porque estão ambos em pólos opostos. Pensamos que, sem ser essa a intenção dos responsáveis pelo Programa das Festas, Bocage foi ofendido. Fazemos votos que para o próximo ano o conferencista oficial seja de maior substância. Aliás, trazer Couto Viana para fazer conferências na Biblioteca Pública Municipal sobre diversos temas, ou mesmo ao Salão Nobre para falar de Teatro ou Poesia, tudo bem; mas convidá-lo para ser o conferencista oficial sobre a obra poética de Bocage é um antagonismo que não aceitamos e é uma afronta à vida do poeta sadino.
Que lhes fique de emenda…