Edição Nº 39, 28-Set.98
CRÓNICA DE OPINIÃO
por José Pedro Calheiros (empresário na cidade de Setúbal)
Não batam mais nos tractores
ou o dia em que Catarina Eufémia ganhou rodas
Já visitei Baleizão. É uma aldeia pacata em pleno Baixo Alentejo, entre Beja e Serpa. Limpeza absoluta, gente cordial, dona de um humor e de uma simpatia que justifica o calor do sul. Mas visitar Baleizão, não é o mesmo que ir a outras aldeias do Alentejo. Aqui paira no ar o símbolo de uma jovem que caiu às balas da opressão de um regime que tinha como pontas de lança uma odiosa policia política, mais ou menos secreta, e uma opressora Guarda Republicana que usava e abusava de um poder dado pela farda e perdido na falta de cultura dos seus agentes. Segundo consta, conforme convém começar em qualquer história que caminha para lenda, Catarina Eufémia era uma jovem ceifeira e jovem mãe que participou numa sublevação com os seus companheiros de trabalho. O aparato de defesa montado pela Guarda Republicana era assustador, os ânimos exaltaram-se e uma bala perdida, ou talvez não, faz manchar de sangue a ceara dourada de Baleizão. Perdeu-se uma vida. Não havia televisão, nem rádios, nem jornais, mas o povo não esqueceu a História. Catarina tornou-se uma imagem da revolução dos anos 70, com direito à sua cara estampada em bandeiras, parecidas às do guerrilheiro Che Guevara. Só que este último era o aventureiro barbudo que gostava de acção, de charutos e sonhava com o poder, tal como o seu colega que sobreviveu. E Catarina era a trabalhadora, o símbolo máximo de uma sociedade portuguesa produtiva. E agora, porque é que batem nos tractores ? O 25 de Abril de 1974 foi há quase 25 anos. Não esquecer que já existe toda uma geração adulta para o qual esta data tem tanto significado como o fim da Segunda Grande Guerra, o 1º de Dezembro ou a Batalha de Aljubarrota. É histórico, mas não contribui nada para a nossa felicidade. O que é assustador é a comparação do estado actual de Portugal com os testemunhos do antes do 25 de Abril. O Guarda Republicano que, de cacetete em punho, agrediu furiosamente um tractor em Ourique revoltou-se contra o quê? Contra o sistema de que ele faz parte ou contra o sistema produtivo português que simboliza o tractor e que ele não domina, nem dominará por que é Guarda Republicano. Os seus colegas “gorilas”, como lhes chamou o Presidente da Câmara de Ourique, espancaram violentamente e gratuitamente os agricultores que de uma forma tímida e portuguesmente galhofeira se tentaram manifestar. Que culpa é que nós temos que eles estejam encarcerados em carrinhas, a passar calor para ficaram mais bravos, ou que ganhem mal, ou que se sintam improdutivos face à força de trabalho dos agricultores. Alistem-se como voluntários na Legião Estrangeira ou como mercenários para uma qualquer guerra em África, ou se lhes restar ainda algum brio profissional sigam para missões de paz em teatros de guerra, e não batam mais nos tractores.
Qualquer dia é vê-los a subir a cavalo a alameda do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, pisando os estudantes numa qualquer manifestação e pintando-os com o lendário “carro da tinta”. Será isto lenda ou futurologia ?!