[ Edição Nº 40 ] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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barra-9037911 Edição Nº 40,   05-Out.98

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É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ)

O erro

           A primeira vez de que me lembro ter tido a exacta noção do erro foi quando me ia afogando no que parecia ser um simples e seguro ribeirinho de água fresca. Teria então quatro, cinco…no máximo seis anos. Mal entrei na água senti-me puxado para o abismo. Durante quase uma hora debati-me para vir à tona respirar, esbracejei confusa e desordenadamente revolvendo os olhos naquela massa caótica de reflexos, de claros e escuros, de pedaços de imagens ondulantes e repassadas de bolhas de ar, tudo envolvido por um som cavernoso vindo das profundezas.           O meu pai garantiu-me, depois de me puxar para fora e de me acalmar a custo, que a cena durou exactamente 2,5 segundos, cronometrados pela sua infalível e intuitiva noção de ritmo.           Enquanto tossia curvado em convulsões de vómitos de água com sabor a ervas e arrepios de terror percorrendo-me todo o corpo, o pai, dedo indicador e acusador espetado, dizia-me algo que eu mal ouvia mas que percebia tratar-se de um raspanete. Desse monólogo ficaram-me gravadas algumas frases incompletas e dispersas:

          – “…és como os burros… eu já sabia que ias lá cair… foi para ver se aprendes a ter cuidado… já viste se eu não estivesse contigo?… tens que ver onde pões os pés… que te sirva de lição…”

          Parece que, na altura, esta história acabou por se tornar mais ou menos do domínio público quando alguns pedagogos a tomaram como referência prática nas disputas entre as suas respectivas escolas e métodos, louvando-a uns, abominando-a outros. Como uma atracção de circo percorri o país para participar em inúmeras conferências onde contava sempre a mesma história e os doutores tiravam sempre conclusões diferentes.           O que é certo é que nunca mais entrei em ribeiros nem em águas que não conhecesse ou de que não visse claramente o fundo e… mesmo assim… com cautela. Na verdade pode dizer-se que ganhei fobia à água e, por mais que tentassem, família e amigos, ninguém me convenceu a aprender a nadar!           Não nego que hoje tenho uma certa pena mas… lá está: se não tivesse tido o privilégio de um trauma aquático tão pedagógico quem sabe se não teria cometido aquele mesmo erro no dia seguinte, sem a presença do meu pai, ou 10 anos mais tarde, ou 15 ou 20… Ah! sim, estou em crer que a tragédia aconteceria mais tarde ou mais cedo dada a minha atracção natural pelas poças de água.           A prova de que resultou é que cá estou, vivo e saudável. Hoje sou um feliz vulgar cidadão comum viciado em televisão e sócio de uma agência funerária, por onde têm passado (paz às suas almas) dezenas e dezenas de afogados. É quando os vejo que bendigo o meu pai.

          Ao reflectir nesta história contada pelo protagonista penso que ilustra cabalmente a justeza da máxima de que “é com os erros que se aprende” e que, consequentemente, quanto mais erramos mais aprendemos, desde que saibamos evitar cair no paradoxo que subjaze: é que se erramos muito aprendemos também muito e, em consequência, deixamos de errar. Ora, como é a errar que se aprende, deixamos então de aprender. Há, portanto, que errar apenas o suficiente para não embrutecer.

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