[ Edição Nº 42 ] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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barra-9911281 Edição Nº 42,   19-Out.98

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É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ)

Parábola das couves

           Lá me pus atrás da cigana e do ciganito, prevendo que poderia acontecer algo que me desse material para uma história, pois com esta gente sempre acontece alguma coisa.           A manhã estava bonita, limpa e um pouco fresca como eu gosto (estas manhãs causam-me sempre uma certa nostalgia, embora eu não saiba de quê). Como eu ia comprar um par de sapatos antes de ter visto aquele par cigano, estava já predisposto à filosofia pois, para mim, nada melhor que a expectativa de um par de sapatos novos para me aguçar o instinto filosófico, vá-se lá saber porquê… mistérios da mente.           A dada altura, sem mais nem menos, o pequenito cigano que passava o tempo a olhar para todo o lado e a meter-se com toda a gente, perguntou à avó:

          – Porque é que nós somos diferentes?

          E a avó, sem pensar, sequer:

          – Aiiii! Diferentes de quê menino?

          Mas o menino já não respondeu, não lhe apetecera continuar a conversa. Corria, saltava, fazia caretas por entre as pessoas da rua, atrapalhando-lhes o passo.           Tendo apanhado o curtíssimo diálogo comecei logo a olhar mais atentamente as pessoas que passavam. Reparei que a maioria eram brancos do tipo europeu mas também havia negros e um grupo de três asiáticos, que nesta zona perto do cais é frequente. Mais fácil era encontrar uma diversidade enorme no que tocava a gordos e magros, altos e baixos, vivazes e apáticos, espalhafatosos e discretos, “queques” e “janados”, tudo isto em diversos graus de uma escala contínua. Pensei então: se tamanha diversidade é tão evidente numa simples ruazinha, minúsculo e irrisório grãozinho no imenso areal da sociedade humana, quem é diferente de quem? Quem é igual e a quê?           A propósito lembrei-me das palavras da minha mãe, vendedora de hortaliça na praça, analfabeta, doméstica nas horas de descanso. Teria eu uns quatro anitos quando lhe perguntei:

          – Porque é que as couves do nosso quintal são diferentes?

          De facto fazia-me confusão que as nossas couves fossem altas como uma pequena árvore, de folhas abertas e tronco grosso e nodoso, enquanto as outras, as do tio Alfredo e as que eu via na praça, eram rasteiras à terra, como se fossem anãs e as folhas eram fechadas parecendo umas bolas vegetais. Lembro-me tão bem como se fosse hoje. A minha mãe pousou a faca com que cortava as couves para o caldo verde, olhou para mim durante uns segundos, pegou-me ao colo e disse com uma voz calma e firme:

          – “Filho: em cada nível ou subsistema de uma qualquer entidade global, há sempre um grupo dominante: seja porque é maioritário, seja porque tem o poder material ou intelectual de condicionar os outros, seja pelas duas coisas. Esses são considerados o padrão. Todos os outros são considerados diferentes em relação a eles. Não há só um porquê mas também um para quê. Quanto à tua pergunta concreta, todas são couves e são diferentes por muitas razões biológicas. Mas, na prática, o que interessa é que, na praça, vale mais a que for mais procurada”.

          Pousou-me no chão e continuou o seu trabalho de cortar couves.           Reviver este diálogo fez com que as minhas dúvidas se dissipassem instantaneamente e o meu pensamento voltasse a ficar ordenado e sólido como sempre.

          Apeteceu-me transmitir esta espécie de parábola à avó cigana, para que não se voltasse a sentir embaraçada com as perguntas difíceis do neto, como acontece com todas as crianças. Mas, pensei melhor: esta malta não faz agricultura, se calhar nem sabe o que são couves, como é que ela iria perceber?

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