[ Edição Nº 42 ] – CRÓNICA DE OPNIÃO por José Manuel Palma.

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barra-1170374 Edição Nº 42,   19-Out.98

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CRÓNICA DE OPINIÃO
por José Manuel Palma* (ambientalista e professor universitário)

A co-incineração e a valorização de resíduos nas cimenteiras: uma hidra de sete cabeças?

           Muito se tem dito e escrito sobre a co-incineração nas cimenteiras. Desde matar pessoas a destruir a ARRÁBIDA de tudo um pouco já passou pela mente de todos e, o pior, pela palavra de muitas pessoas responsáveis desde jornalistas a políticos, incluindo, claro está, as páginas virtuais deste jornal. Daí que, de uma forma rápida, gostaria de partilhar convosco uma série de ideias.           1. A situação actual           Produzem-se em Portugal 2,5 milhões de toneladas de resíduos industriais em Portugal dos quais são considerados perigosos cerca de 125 mil toneladas. (De notar que o que faz a perigosidade de um resíduo é também o modo como ele é tratado. Assim muitos dos resíduos que não são perigosos por classificação se forem mal tratados tornam-se potencialmente perigosos.) Onde estão?           Estão a ser queimados ao ar livre ou em queimadores desadequados com altos níveis de poluição, estão nas lixeiras de resíduos sólidos urbanos, estão nas traseiras das fábricas, estão nos rios, estão no solo a lixiviar e a infiltrar-se, estão nalguma solução transitória, e outros, muito poucos, estão a ser exportados. O nosso distrito é o terceiro produtor de resíduos do país a seguir a Lisboa e ao Porto, e tem zonas de alto potencial de risco para a saúde humana e para o ambiente (nomeadamente o nosso concelho) devido a essa situação. A população nacional tem uma consciência clara de tudo isto pois cerca de 70% considera que a situação dos resíduos é grave e 80% não confia na actividade industrial.           2. Que fazer?           Já se pensou em incineração em Estarreja mas desistiu-se porque não só essa solução era cara como só tratava muito pouco dos resíduos existentes obrigando a construir dois aterros de resíduos industriais perigosos. Para além disso a incineração é potencialmente perigosa pois é difícil manter um nível de temperatura eficaz para destruir todos os componentes dos resíduos e produz 30% de cinzas perigosas que tem de ser colocadas em aterros especiais. A co-incineração torna-se assim o mais eficaz para começar a tratar dos resíduos perigosos porque:           a) as temperaturas num forno de cimento (atingem os cerca de 2000 graus nos gases, e, na matéria, 1450) são muito mais elevadas e durante muito mais tempo levando à destruição de toda a matéria orgânica,           b) não produz resíduos perigosos sólidos ou líquidos,           c) os gases emitidos para a atmosfera antes e depois da queima de resíduos são, num forno de via seca com torre e com a matéria prima que nós temos, exactamente os mesmos sem emissão de mais poluentes. (De notar que as cimenteiras podem queimar resíduos sem a colocação de um filtro especial para as dioxinas, o tal poluente que nos preocupa a todos, porque não existe diferença antes e depois da queima e que, na maior parte de medições, os níveis de emissão estão abaixo 100 ou mesmo mil vezes, daquilo que é permitido na lei europeia.).           d) o governo obriga as cimenteiras a colocar mais um filtro (de mangas) a somar ao electrofiltro já existente deixando de haver descargas de poeiras com, por exemplo, uma quebra de energia eléctrica e baixando o nível de poeiras e partículas para a atmosfera de 50 mg/m3 para menos de 15 (quando a lei permitiria mais de 70).           e) as cimenteiras têm que produzir cimento de qualidade e logo tem que manter essas condições de queima e ter cuidado com o que colocam no forno para não piorarem o cimento que produzem.           f) se houver necessidade de parar o forno por qualquer razão a alimentação de resíduos é cortada imediata e automaticamente e a elevada inércia térmica – muita matéria em altas temperaturas que arrefece lentamente – assegura a destruição do que lá está sem os sobressaltos que existem numa qualquer outra solução de queima.           Uma outra vantagem da co-incineração é que não é só co-incineração. Ou seja não é só substituição de combustível normal (carvão, por exemplo) por resíduos com valor combustível. É também reciclagem. Quer isto dizer que muitos resíduos (sólidos inorgânicos – ou seja minerais) são utilizados como matéria prima alternativa diminuindo a exploração da pedreira ou de outros locais onde se exploram essas matérias primas. Deste modo a necessidade de aterros de resíduos perigosos, que não existem, é muito menor.           A co-incineração é apenas uma parte da solução. É necessário um plano eficaz, é necessário construir aterros para resíduos industriais não perigosos e para resíduos perigosos.           3. Que riscos?           Os riscos existem e são os seguintes. Na fábrica é necessário armazenar resíduos para ir alimentando a produção. Para os resíduos líquidos é necessário construir tanques que têm a possibilidade de rotura e mesmo de explosão (no tanque dos solventes e se houver um rotura seguida de curto-circuito, por exemplo). Para diminuir essa possibilidade os tanques são protegidos por um muro de cimento que serve de bacia de retenção se houver roturas e os motores ficam foram do espaço dos tanques protegidos por outra parede de cimento. Por outro lado os tanques nas fábricas são muito pequenos exactamente para diminuir as consequências negativas de um acidente que aí será sempre localizado e limitado.           Outro risco é o transporte. Estão previstos cerca, e no máximo, 10 camiões diários com resíduos. Muitos desses resíduos são minerais, ou serraduras de madeira impregnadas com resíduos que se tiverem um acidente podem ser facilmente recolhidas. Os camiões com produtos como solventes têm mais potencial de risco, apesar de ser menos perigosos que os mesmos materiais antes de ser utilizados, e devem ser conduzidos respeitando todas as normas de segurança, em rotas, em velocidade e em horas perfeitamente determinadas. E essencialmente com o conhecimento da comunidade.           Não existe, no entanto, qualquer risco acrescido, nem para as pessoas nem para a flora e a fauna circundante das emissões atmosféricas. Aliás, como se referiu as emissões, vão baixar em partículas no forno que se utilizar para a co-incineração.           4. Que controle?           Não confiamos na industria porque temos muito boas razões para isso. A maior parte dos industriais não ligam aquilo que está a volta deles seja o meio ambiente sejam as pessoas. Como poderemos ter confiança? A única solução para ultrapassar esta quadratura do circulo e implantarmos um sistema seguro é que o controle seja realizado pela sociedade civil. Haverá comissões de acompanhamento com ambientalistas e população local, para alem do governo, que possuirão meios para contratar técnicos independentes e estão previstas análises que, nos outros países se fazem uma a duas vezes no ano como às dioxinas, mensais, ou bi-mensais, ou quando a comissão quiser. Essas comissões acabarão por controlar o funcionamento da fábrica e estabelecer uma relação muito mais efectiva de controle da actividade total da mesma pela sociedade.           Em suma esta é apenas uma pedrada no charco no sentido de uma solução e corresponde ao primeiro passo descrito em qualquer manual de defesa do ambiente: a internalização dos custos. Enquanto não houver uma solução, limitada que seja, enquanto os industriais não pagarem nada pelos seus resíduos e custo for zero, então não haverá redução de produção nem fiscalização mas tão somente contaminação. Claro que os malefícios de qualquer solução, por pequenos que sejam, estão sempre concentrados na terra escolhida enquanto os benefícios são de todo o país. É sempre mais racional dizer não mas, enquanto o fizermos, todos nós continuaremos a sofrer as consequências nefastas de uma situação dantesca. É aliás, o que reconhecem as pessoas de Setúbal, que se manifestaram maioritariamente pelo sim à co-incineração (num inquérito realizado no âmbito do estudo de impacte ambiental) apesar de reconhecerem-lhes os riscos e exigirem o controle pela sociedade civil. Exactamente a minha posição.

          *José Manuel Palma é consultor ambiental de várias empresas entre as quais a Eco-Resíduos (empresa da Secil e da Cimpor para o tratamento de resíduos).

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