[ Edição Nº 44 ] – José Manuel Palma, fundador da Quercus.

0
Rate this post

barra-9719748 Edição Nº 44,   02-Nov.98

linha-9780077

José Manuel Palma decide pôr os pontos nos is
E garante ser coerente com as posições que sempre defendeu

           José Manuel Palma, fundador da Quercus e, para muitos portugueses, a cara da associação ambientalista, explica as razões que o levaram a não se recandidatar ao cargo de presidente da Assembleia Geral da associação, numa altura em que se sentia “algum desconforto” por causa do trabalho que Palma desenvolve na área da co-incineração. Mas se não saiu antes foi porque não o deixaram, já que o ambientalista natural de Setúbal garante ter pedido para sair no início do ano.

          Setúbal na Rede – O que é que o levou a decidir pela não recandidatura ao cargo de presidente da Assembleia Geral, nestas últimas eleições?
          José Manuel Palma
– No primeiro trimestre deste ano pus o meu lugar à disposição mas a direcção achou que não valia a pena por várias razões. E em relação à co-incineração não havia na altura qualquer problema, porque a Quercus aceitava a co-incineração se o Governo tomasse uma série de medidas, aliás isso vem inscrito no comunicado oficial da associação sobre a matéria. Portanto, não se está a discutir a co-incineração mas sim aquilo que o Governo tem de fazer antes, durante e depois, o que eu concordo plenamente. Assim, numa reunião de direcção (onde eu não estive presente para não influenciar) achou-se que não valia a pena eu sair porque teriam de ser feitas eleições mais cedo. Portanto eu saí do cargo de presidente da Assembleia Geral porque tinha de sair, tanto mais que já muito antes tinha posto o meu lugar à disposição.

          SR – Pôs o seu lugar à disposição por achar que poderiam surgir problemas devido ao seu trabalho com as cimenteiras?
          JMP
– Sim, porque achei que estava a expor à Quercus uma situação relativamente difícil porque, infelizmente, o Governo não actuou com a celeridade e a disponibilidade necessária para fazer com que as posições da Quercus, em relação à co-incineração, fossem mais positivas porque, repito, que eu saiba e através dos comunicados da associação, não existe posição negativa da Quercus em relação a este assunto. Existe sim uma posição condicional, sendo que para a Quercus a co-incineração é um mal menor e que, por isso, tem de haver um plano de redução, um plano estratégico, sem o qual não se apoia. Esta é a posição nacional traduzida em comunicado, embora a posição das direcções regionais seja diferente. Portanto, eu não quero confusões, quero ser assumido como José Manuel Palma e não preciso ter mais bengalas nem quero pôr a Quercus em situação de menos conforto.
          SR – Na altura essa disponibilidade não foi aceite mas acabou por ser bem recebida na última Assembleia Geral.
          JMP
– Agora foi aceite naturalmente porque iam ser realizadas novas eleições, na data prevista. E agora, concorrer era uma questão que não se punha até porque já tinha posto o meu lugar à disposição, porque eu não queria mesmo continuar e porque quero separar as águas. O que aconteceu nesta Assembleia Geral foi uma coisa perfeitamente normal: novos corpos gerentes entre os que se substituíram, porque houve muita gente que saiu da Direcção e muita gente que saiu do Conselho Fiscal. E entre as pessoas que saíram contava-se o presidente da Assembleia Geral, que não se recandidatou.
          SR – É verdade que essa decisão teve também a ver com algum mal estar entre os próprios sócios da Quercus por pensarem que a nova posição de José Manuel Palma não se coadunava com as suas funções de presidente da Assembleia Geral?
          JMP
– Não era um mal estar na Quercus, era um mal estar no José Manuel Palma. Porque se não fosse isso não tinha posto o meu lugar à disposição. E há aqui uma questão importante que não se conseguiu distinguir (e esse é que o problema), é que existem diferenças entre cargos executivos e cargos não executivos. E eu, como presidente da Assembleia Geral não tinha qualquer cargo executivo. E não tenho cargos executivos na Quercus desde quer deixei de ser presidente da associação, precisamente para poder trabalhar à vontade. E é preciso notar, também, que enquanto fui presidente da Quercus não exerci a minha profissão de consultor exactamente para ter total liberdade de actuar.
          SR – Então se o seu cargo na Assembleia Geral não era executivo e se a posição nacional da Quercus não rejeita a co-incineração, porque é que surgiram tantos problemas à volta dos trabalhos que desenvolve com as cimenteiras?
          JMP
– Em relação à co-incineração, por motivos vários, as coisas atingiram proporções que não se esperavam, não se conseguiu fazer a destrinça que se devia fazer entre cargos executivos e não executivos. Ao princípio não havia incompatibilidade porque a minha posição em relação à co-incineração baseia-se numa posição que a Quercus, a LPN e o Geota tiveram há três anos atrás e que, entretanto, aprofundei e estudei. Portanto não havia incompatibilidade porque a posição básica em relação à co-incineração não é negativa. É um instrumento transitório utilizado enquanto houverem resíduos que precisem de ser assim tratados e, portanto, eu estava a basear-me naquilo que considerava ser ambientalmente correcto, e continuo a achar isso mesmo. O que aconteceu, depois, é que as coisas aqueceram de tal modo e houve uma radicalização tão grande, que a distinção que era normal e simples no início do processo (entre uma pessoa que tem um cargo executivo e uma que não o tem), começou a deixar de se colocar.
          SR – O problema põe-se mais ao nível da sua identificação com a fundação da Quercus?
          JMP
– Em boa verdade é preciso dizer que a maior parte dos cidadãos não me vê como presidente da Assembleia Geral mas sim como ex-presidente da Quercus e, principalmente como a cara da Quercus. Portanto, a questão essencial não é ter sido presidente da Assembleia Geral porque só um número muito restrito de pessoas é que o sabia. A questão essencial é o José Manuel Palma, a cara da Quercus, ser defensor da co-incineração. Portanto, sendo assim, devíamos ter acabado com isto há mais tempo, devia ter deixado de ser presidente da Assembleia Geral logo quando eu o pedi, no início o ano. E assim punha-se a questão no seu verdadeiro plano, que é termos uma pessoa que foi presidente da Quercus a defender a co-incineração e a ser consultor da empresa que quer implantar em Portugal a co-incineração. Portanto, o que se passou é que as pessoas da Quercus estavam a sentir-se um pouco desconfortáveis, e eu também, devido a estas misturas. Mas isso não era o essencial porque a maior parte das pessoas nem sabia o que eu fazia na Quercus. Ou seja, a situação essencial vai manter-se: uma pessoa que continua a ser ambientalista, que é consultor e professor universitário e que apoia a co-incineração. Ou seja, vou continuar a ser exposto porque, mal ou bem, continuo a ser a cara de um certo ambientalismo em Portugal.
          SR – Mas continua a ser representante da Quercus noutras matérias?
          JMP
– Sim, sou representante da Quercus na Europa, nomeadamente na Federação Internacional de Transportes. Ou seja, antes da resolução aprovada na reunião, sobre incompatibilidades entre funções profissionais e cargos directivos, já nem eu tinha funções directivas e muito menos falava das matérias em que trabalhava, como é o caso dos resíduos industriais.
          SR – Sente que a população de Setúbal não está do seu lado?
          JMP
– Eu tenho ouvido coisas completamente idiotas e até ofensivas, como por exemplo a que diz que eu agora teria passado para o inimigo e que queria matar as pessoas de Setúbal. Mas não me ofendo porque compreendo as motivações e, sendo um estudioso dessa matéria tenho a obrigação de perceber porque é que as pessoas reagem assim. E reagem assim porque, basicamente, têm uma alta percepção de risco e este é um projecto cuja noção de risco é elevadíssima. E porque é que, apesar dos riscos das incineradoras de resíduos urbanos instaladas em Lisboa e no Porto, quase não se falou do assunto, e em relação aos resíduos sólidos industriais tivemos mais reacções? Porque temos duas coisas: um nome “resíduos industriais perigosos” com uma enorme carga emocional porque o nome associa ao risco. Em segundo lugar porque pensamos que estes lixos são muito esquisitos, que não os produzimos. Mas não é verdade porque os lixos tóxicos são as coisas que temos nas nossas casas, por exemplo uma tinta e um diluente é um lixo perigoso, o fuel e a gasolina são bastante tóxicos. Portanto, todas estas razões, para além de outras mais, levam as pessoas a considerar que uma co-incineração de resíduos industriais perigosos é perigosa. E depois as pessoas têm razão do ponto de vista individual pelo seguinte raciocínio: o país vai ser beneficiado porque vamos tratar dos resíduos, mas vamos tratá-los ao pé da nossa porta. Isto significa que os benefícios do tratamento são espalhados pelo país todo mas que os malefícios, se houverem, são concentrados ao pé da minha porta. Ou seja, do ponto de vista individual, é sempre mais racional dizer que não do que dizer que sim. Do ponto de vista colectivo é sempre mais irracional dizer que não do que dizer que sim. Mas acredito de facto, na bondade deste projecto e nunca disse que não tinha riscos, aliás já os enumerei publicamente, mas são riscos controlados. Aliás, Setúbal está a ser envenenada com partículas que estão a ser emitidas pela queima discriminada e isso revela uma hipocrisia de certos responsáveis políticos que instrumentalizam os legítimos e fundados receios da população, que têm de ser explicados, para pura e simplesmente ganharem mais um voto.
          SR – Como é que vê a recente decisão do presidente da Câmara de Setúbal, de se pronunciar contra a co-incineração?
          JMP
– Não estava à espera disso e parece-me que terá a ver com pressões políticas porque a posição que o presidente Mata Cáceres detinha até agora, era provavelmente, insustentável e temos de compreender isso, apesar de me desiludir. Neste momento há muita pressão ao nível dos seu companheiros autarcas, o exemplo da presidente da Câmara de Vila Franca de Xira e o exemplo de Coimbra, ambos do Partido Socialista, terão levado a que Mata Cáceres estivesse isolado nesta matéria. E isto é uma questão política porque a co-incineração na Arrábida foi diabolizada. Ou seja, há argumentos completamente idiotas que merecem ser rebatidos ponto por ponto, como por exemplo, alguém ter dito na audiência pública que queimar resíduos na Arrábida é fazer com que a Sécil fique cá mais tempo. Isto é uma coisa completamente idiota porque, sendo a co-incineração a substituição de parte do combustível a Sécil deixa de estar cá quando acabar a pedreira, quando não puder explorar mais. Ou seja, só má fé de certos cidadãos influentes e responsáveis é que pode justificar isto. Digo também que eu sempre fui contra a Sécil na Arrábida, não gostava de a ter lá, mas como ela está o que interessa é que funcione bem e diminua a poluição. Mas contrariamente ao que se tem dito nos últimos tempos, eu não estou a ser ‘a mulher de César’, estou a ser aquilo que sempre fui: uma pessoa empenhada e que acredita nesta solução. Também sou de Setúbal, também quero o melhor para Setúbal, também tenho filhos e também quero ir passear descansado para a Arrábida.
          SR – Acha positiva a iniciativa legislativa do deputado social democrata, Cardoso Ferreira, de fazer com que Governo mande elaborar estudos de impacte ambiental sobre matérias determinantes para o ambiente, como é o caso?
          JMP
– O Cardoso Ferreira que vá dar uma volta ao bilhar grande porque, quando eu era presidente da Quercus propus ao Governo e a todos os grupos parlamentares que os estudos de impacte ambiental deviam ser por concurso público, pagos pelo proponente e quem decidia era a comissão de acompanhamento. Mas ninguém quis aceitar esta proposta, portanto não brinquem comigo porque a Scoreco fez aquilo que, toda a gente e o próprio Governo PSD de então, instituiu e que também se faz na Europa, que é simplesmente o dono da obra adjudicar o estudo. Portanto dizer outra coisa é má fé, é simplesmente não perceber nada de ambiente, nunca perceber nada do que se costuma fazer.
          SR – Está magoado com Setúbal?
          JMP
– Não, porque compreendo as motivações das pessoas, da população em geral. É meu dever interpretar e compreender estes fenómenos. Também não estou magoado com outras pessoas, porque algumas delas acreditam, e sentem mesmo aquilo que estão a dizer. E é importante referir que toda a gente concorda com as coisas em abstracto e que toda a gente discorda das coisas, em concreto. Toda a gente concordava com a co-incineração há três anos, em abstracto, para ultrapassar o problema da incineração. Agora já se quer fazer a incineração porque a co-incineração é uma coisa concreta, está aqui e não foge. Agora reconheçam-me, ao menos, uma verdade: eu defendia a co-incineração em abstracto e defendo-a em concreto. Portanto, se há alguém que é coerente neste processo, sou eu.

Entrevista de Etelvina Baía     

seta-1397176