[ Edição Nº 100] – Plenário dos trabalhadores da Torralta e pedido de intervenção do Estado na empresa.

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Edição Nº 10029/11/1999
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Plenário dos trabalhadores da Torralta e pedido de intervenção do Estado na empresa)

Para evitar a falência da Torralta
Trabalhadores pedem a intervenção do Estado

          No dia 5 de Dezembro de 1974, cerca de mil trabalhadores do complexo turístico da Torralta, em Tróia, reuniram em plenário para discutirem os problemas da empresa e as reivindicações salariais. Dadas as perspectivas de continuação dos salários em atraso, aprovaram um pedido de intervenção do Estado, o que veio a verificar-se ainda durante esse mês. A medida terá sido crucial para a manutenção do empreendimento, garante Joaquim Pires, um dos mentores da organização dos trabalhadores da empresa. 25 anos depois, este dirigente do Sindicato de Hotelaria e da Feshot, Federação de Sindicatos de Hotelaria e Turismo, dá por bem empregue a luta da Torralta, na medida em que permitiu o salvamento da empresa e de muitos postos de trabalho.


Setúbal na Rede

– Onde é que estava no dia 5 de Dezembro de 1974?

Joaquim Pires

– Estava no complexo da Torralta, em Tróia, onde trabalho deste 1971. Nesse dia participei num plenário de trabalhadores para exigir a intervenção do Estado, no sentido de resolver as dificuldades financeiras que a empresa liderada por Agostinho da Silva estava a atravessar. Por um lado, a empresa já não tinha condições para satisfazer os compromissos com os cerca de 26 mil pequenos accionistas, que foram os que realmente criaram a Torralta, e por outro, perspectivava-se a falta de dinheiro para pagar os salários em atraso. Além disso, adivinhava-se já o risco da empresa, que foi fundada em 1968, vir a sofrer muitos revezes e até ‘afundar’ por causa dos problemas financeiros. No plenário participaram mais de mil funcionários e vários sindicatos a que estavam ligados, desde os rodoviários, ao electricistas, passando pelos metalúrgicos e pela hotelaria. Mas sem dúvida alguma que o grande propulsor do plenário foi o Sindicato de Hotelaria, de que eu fazia parte, por ser maioritário na empresa.

SR

– Quem é que convocou o plenário de trabalhadores?

JP

– Foi de uma forma expontânea e decorreu um pouco da força dos sindicatos que estavam a emergir, agora com uma outra organização. Nessa altura a organização sindical já se fazia sentir com força em Tróia, tal como a organização dos trabalhadores em comissões e firmemente representados. No plenário, que decorreu no refeitório da empresa, abordámos ainda a questão do aumento dos salários que eram baixíssimos, dos subsídios de férias, que não existiam, para além da exigência da intervenção do Estado para evitar a derrocada do projecto Torralta. E resultou porque o Estado interveio logo.

SR

– De que forma é que ocorreu essa intervenção?

JP

– Foi pouco tempo depois da nossa decisão. Nós fomos a Lisboa para solicitar ajuda e as coisas foram rápidas porque, naquela época, as organizações dos trabalhadores tinham a entrada facilitada junto dos governantes. Lembro-me que o próprio Conselho da Revolução esteve envolvido no assunto, tal como o então Ministério do Turismo. A empresa foi ‘agarrada’ e apoiada por ser muito grande e com um projecto muito viável, para além de garantir um total de cerca de três mil postos de trabalho nas várias unidades implantadas no país. Poucos dias depois do início da intervenção, a 13 de Dezembro, recebemos a notícia de que os administradores da Torralta, os irmãos Silva, tinham sido presos. As informações que tivemos indicavam que essa prisão teria ocorrido por uma alegada ‘importação’ de divisas estrangeiras destinadas a pagar os salários de Novembro. Prisão essa que demorou cerca de quatro anos, tendo eles saído em 1978.

SR

– Apesar da intervenção do Estado, a empresa não foi nacionalizada?

JP

– Não foi nacionalizada, tendo continuado uma empresa privada nas mãos dos irmãos Agostinho que, apesar de estarem presos, continuavam administradores. O Estado criou comissões administrativas, começou a trabalhar no projecto e a fazer investimentos na ordem dos três milhões e meio de contos. E independentemente do que possa dizer, muitas das coisas que estavam inacabadas foram terminadas durante a intervenção do Estado. Foi o caso de muitas ‘bandas’ que estavam por acabar, torres que ficaram por terminar e muitas infra-estruturas de que o complexo não dispunha. E isto tudo, mantendo os postos de trabalho e os salários em dia. No entanto, com o evoluir da situação política as coisas começam a tomar outros contornos e no primeiro Governo Constitucional, que foi chefiado por Mário Soares, a empresa volta a ser entregue aos irmãos Silva.

SR

– Como é que os trabalhadores encararam esta mudança?

JP

– Dada a amplitude da intervenção do Estado e as boas relações entre os trabalhadores e a administração, com quem reuníamos para decidir a política da empresa, e dada a manutenção dos postos de trabalho, o aumento dos salários, a atribuição dos subsídios de férias e, ao mesmo tempo, a constatação de algum crescimento, surgiu um movimento que defendia a criação de uma empresa mista, com capitais privados e do Estado. Isto muito antes da entrega da Torralta aos irmãos Silva, já que estes assuntos eram muito discutidos entre os trabalhadores que, com as comissões administrativas, estavam profundamente envolvidos no crescimento da empresa.

O curioso é que foi através das discussões sobre o futuro da Torralta que nasceu a empresa pública que hoje se designa por ENATUR. Ao mesmo tempo gerou-se junto dos trabalhadores um movimento contrário que defendia a entrega da empresa aos irmãos Silva e, quando chegou a hora de decidir, acabou por vencer esta corrente, embora a outra tivesse um peso muito maior. E a ideia de entregar a empresa venceu apenas por uma decisão política do primeiro Governo Constitucional que, contrariando todas as deliberações dos plenários, em 1978 pura e simplesmente entregou a empresa ‘de mão beijada’.

SR

– Parece-lhe ter sido a decisão errada?

JP

– Sim, porque daí para a frente a empresa não só não cresceu como perdeu património e postos de trabalho. E isto apesar de todo o apoio que o Estado lhe deu entretanto. Os administradores regressaram com projectos de crescimento e foram ajudados pelo Governo que lhes concedia, periodicamente, um conjunto de avais para a manutenção dos postos de trabalho, para o crescimento da empresa e a sua adaptação à realidade que se ia vivendo. Mas nada disso se verificou e nunca percebemos porquê, embora tenhamos a certeza de que se verificaram graves erros de gestão.

SR

– Com o regresso dos administradores foi alterada a correlação de forças entre a empresa e as organizações representativas dos trabalhadores?

JP

– Isso verificou-se, embora mantivéssemos uma relação institucional relativamente correcta e positiva, com reuniões periódicas de trabalho. Tínhamos minimamente algum controlo da gestão e de actividades importantes da empresa. Mas o certo é que nas grandes questões de fundo, nos projectos de investimento e de desenvolvimento já não éramos chamados e fomos afastados do processo. Ao longo desses anos o que vimos foi a ajuda governamental sem resultados na empresa e nenhum dos projectos dos irmãos Silva vingou seja por incapacidade ou negligência.

SR

– A situação chegou a gerar conflitos laborais?

JP

– Sim, especialmente quando tentámos unificar as relações de trabalho em todas as unidades da empresa. Para conseguir isso houve uma certa agitação que, no entanto, não pôs em causa o seu funcionamento. Contrariamente ao que se possa dizer, isso nunca aconteceu em toda a história da Torralta porque os trabalhadores estiveram sempre com a empresa, defenderam o projecto e contribuíram para a sua grandeza. Isto verificou-se durante a gestão do Estado, na segunda administração dos irmãos Silva, e a partir de 1989, quando a venderam a um grupo ligado à Lactolusa, tendo como administrador Albino Moutinho. O projecto não vingou e perderam-se postos de trabalho. Em 1993, com a empresa em falência técnica, confirmámos o nosso grau de consciência ao defendermos a Torralta através da solicitação da lei da protecção contra as falências.

E isso foi um exemplo para muitos trabalhadores de outras empresas, no sentido de salvarem os projectos e os postos de trabalho. A luta de muitos anos, com salários em atraso, despedimentos e o risco de falência, culminou em 1997 com a aprovação do plano de recuperação da SONAE, em assembleia de credores. Com tudo isto, dos mais de mil trabalhadores restam agora cerca de 150 em Tróia. De referir que a nossa luta de anos gerou um movimento de solidariedade pelo país fora. Especialmente dos trabalhadores do distrito e das autarquias comunistas da região, com grande destaque para a Câmara de Grândola que nunca nos abandonou.

SR

– Depois de quase três décadas de luta, como é que vê o actual estado da empresa?

JP

– Neste momento ainda não conseguimos ver grandes coisas neste projecto da SONAE. De facto, foram feitos alguns benefícios no empreendimento mas são manifestamente insuficientes para aquilo que se pretende. Segundo dizem, há complicações porque alguns dos projectos carecem de estudos profundos tendo em conta a sensibilidade ambiental da península de Tróia. Ou seja, estamos a ficar um pouco atrasados em relação ao calendário previsto para a aplicação dos projectos, uma situação que já começa a preocupar os trabalhadores da empresa.

SR

– 25 anos depois do plenário que iniciou a luta sindical na empresa, acha que valeu a pena o esforço dos trabalhadores da Torralta?

JP

– Valeu a pena em todos os sentidos, apesar de alguns revezes que temos tido ao longo dos anos, como é o caso da destruição sistemática de postos de trabalho na empresa. Valeu a pena, até para os que foram pressionados a sair porque, se não houvesse uma grande resistência dos trabalhadores para a manutenção da Torralta, eles não teriam saído com indemnizações. Embora tenha sido mau saírem, pelo menos tiveram indemnizações e não ficaram à espera, como muitos trabalhadores de outras empresas da região, que ainda hoje estão à espera de receberem os salários em atraso e as respectivas indemnizações. Outro factor negativo diz respeito a alguns casos de trabalhadores com acções em tribunal por não terem recebido aquilo a que tinham direito, mas continuamos a lutar por isso e a tratar permanentemente do assunto com a administração. Por outro lado valeu também a pena para os trabalhadores que não quiseram sair e que puderam lutar por isso, mantendo-se ainda hoje na empresa que, se hoje existe é muito graças ao esforço de todos nós.

Entrevista de Etelvina Baía
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