Cansado de compreender
…mas às vezes sinto-me muito cansado! Não são os músculos dos braços nem das pernas, não são as costas nem o corpo em geral. São os músculos da comunicação, aqueles que exercitamos em cada momento de relacionamento com os outros. Por vezes doem de tanto se esforçarem para fazer valer um ponto de vista, para justificarem uma atitude, para tentarem compreender o que os outros pensam, dizem, fazem. Por vezes apetece desistir de estar sempre atento para não perder o norte. Apetece mesmo é perder-se, ficar sem rumo, no ponto zero das relações sociais.
…esta vontade de apanhar o comboio em direcção ao desconhecido, ao anonimato. Sobretudo o anonimato. Para que não me perguntem nada, não me informem de nada, não esperem nada de mim nem me tentem convencer de que devo satisfazer expectativas. Estar só, ainda que no meio da multidão, é visto como uma coisa má. Sim, é verdade, quando não é isso que queremos, quando esse é o estado usual de que tentamos sair e não conseguimos. Mas toda a actividade exige um descanso. Conviver com os outros pode ser desgastante. Desgastante ao ponto de se querer ser teletransportado para a Sibéria e viver aí uma semana numa cabana de madeira, sem televisão, sem jornais, sem opiniões. Sem palavras dos outros. Só com os nossos próprios sentidos.
Ver o mundo como se fosse a primeira vez. Como se fosse um alienígena que aqui desembarca e tenta perceber este mundo, a sua lógica.
A nossa mente é como um computador de alguém que apenas introduz informação mas nunca limpa ficheiros nem desfragmenta o disco. A nossa mente está repleta de milhares e milhões de interpretações diferentes para um mesmo facto, umas actuais, aquelas pelas quais nos regemos, outras antigas, que pusemos de parte mas que por vezes surgem de novo quando as actuais não se ajustam ao que queremos compreender. As nossas opiniões e conceitos são mantas de retalhos, compostos de inúmeros pedaços de ideias próprias e alheias, muitas delas contraditórias. Como custa entendermo-nos no meio de tudo isto, por vezes….
É curioso que na semana passada escrevi sobre a felicidade. Talvez por isso mesmo hoje sinta mais como é difícil perceber certas coisas.
Podem ser vários os motivos para esta vontade de ir para a cama e dormir durante cinco dias para acordar fresco como uma alface ingénua. Aquele que concretamente me fez ditar esta pequena crónica intimista-depressiva foi algo bem prosaico. Quem sabe.. não deveria ser motivo para tanto… mas comigo nem sempre funciona aquela terapia de dar um pontapé no ar ou um murro na mesa. Por vezes, como agora, um facto bem terreno pode ser suficiente para me fazer questionar coisas mais altas; coisas muito comezinhas põem em causa princípios que tenho como adquiridos; acontecimentos pontuais fazem-me dar o pino e ficar numa perspectiva contrária. Valores abstractos e politicamente correctos… são desmentidos por exemplos concretos do quotidiano. É então que fico cansado de, mais uma vez, justificar tudo isso para poder continuar de bem com o mundo. Não! Às vezes já não se consegue. Já custa! Venha o retiro, o degredo. Quero lá saber dos valores, dos outros.
Depois de séculos e séculos de filósofos iluminando a Humanidade, de artistas embelezando a vida, de professores ensinando, de pregadores pregando, depois de séculos e séculos de mártires pelos outros, pelos valores, pelas ideologias… depois de tanto esforço… os homens são melhores hoje que ontem? Há menos guerras porque predomina a diplomacia? As guerras são menos mortais porque existe a preocupação civilizada de só destruir os alvos militares? Há menos violência gratuita? Os hooligans são da Idade Média? Acabaram os linchamentos, as torturas, as mortes a sangue frio? É impensável verem-se na televisão soldados e civis rindo enquanto assassinam inimigos? O Conde Drácula que empalava os inimigos é uma figura sem paralelo na actualidade? Há menos ursos tratados barbaramente na China para que uns tolos humanos possam comprar shampôs e afrodisíacos? Já não se assassinam focas bebés com ganchos espetados na cabeça em presença das mães que choram e já não se esfolam essas focas ainda vivas? É mentira o rapto e tráfico de crianças? A pedofilia violenta não existe? O comércio de órgãos humanos pode ser regulamentado pelo GATT?
Estas são as que perguntas que me ocorreram de repente. Não vale a pena ficar agora a pensar para encontrar mais umas dezenas.
Mas este desalento perante a maldade não me sobreveio de nenhumas imagens de massacre na televisão, não. O que me confunde e até me revolta contra mim mesmo é que eu possa questionar toda a humanidade por causa de um simples facto, tão pequenino à escala do planeta. Mas que querem? Tocou-me a mim. Tocou-me na minha pele. E quando as ciosas se passam connosco… não é o mesmo que ouvir falar, pois não? Quando é com os outros temos sempre uma justificação… ou simplesmente achamos que é um facto pontual, sem importância no geral. Nunca vos aconteceu perceberem como é diferente algo que vos acontece e que pensavam que só acontecia aos outros? Nunca vos deixaram a porta do carro feita num “V” e um bilhetinho no pára-brisas? Já? Mas aposto que o bilhetinho não dizia: “Para a próxima vez que encostares o teu carro que eu não possa abrir a minha porta, ficas com os pneus vazios”.
(Já agora, só para esclarecimento, como poderia esta sincera criatura ter saído antes de eu chegar se eu lhe estava a tapar a porta, como dizia? E se era verdade (não sei como) mas este compreensivo ser humano conseguiu entrar no carro (uma vez que não estava à minha espera) justificava-se este acto?)