[ Edição Nº 103] – Dom Gilberto Canavarro dos Reis, Bispo de Setúbal.

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Edição Nº 10320/12/1999

Com um apelo solidário à parceria
Bispo de Setúbal confia no progresso do distrito

        Nomeado Bispo de Setúbal há cerca de um ano, Dom Gilberto Canavarro dos Reis confessa-se surpreendido com a qualidade e as capacidades da população do distrito. Em 1999 diz ter visto o progresso da região e as tentativas para resolver os problemas sociais de exclusão e pobreza, por isso diz estar optimista quanto ao ano que se avizinha. No entanto, lança o aviso de que as coisas não mudarão sem investimentos na solidariedade e na parceria para ajudar os mais carenciados. Mas como a exclusão tem origens mais profundas que a do desemprego, Dom Gilberto adverte que o investimento maior deve ser feito na família e no seu papel de formadora de pessoas.


Setúbal na Rede – Que balanço faz do ano de 1999 no distrito de Setúbal?

Gilberto Canavarro dos Reis

– Foi um distrito que, como muitos outros, teve problemas sociais e de vária ordem, tendo conseguido ultrapassar muitos deles. Quando fui nomeado para Setúbal tentei saber um pouco mais sobre esta terra e pelo que soube e o que me contaram é uma terra de gente de valor. E quando cheguei fiquei surpreendido, uma vez que era ainda melhor do que me tinham dito e do que eu tinha lido. Tenho confirmado isso ao longo deste último ano porque, apesar dos problemas com que se debate, esta é uma terra de gente com uma grande riqueza humana e cultural e de grande capacidade de resolução dos problemas.

SR

– Parece-lhe que Setúbal estará a tentar resolver os problemas sociais e económicos com que se tem deparado?

GCR

– As mudanças levam muitos anos, mas pelo que tenho visto o distrito de Setúbal tem-se esforçado por evoluir. Verifica-se agora um período de grande transformação e de enquadramento nos novos desafios do desenvolvimento. E estes desafios são particularmente interessantes em Setúbal, na medida em que este foi e é um local de encontro de muitas pessoas de outras regiões em busca de trabalho. Foi aqui que se colocaram muitas das indústrias do país e é aqui que há fortes capacidades económicas ligadas ao rio. É natural que a crise nas indústrias tivesse provocado os problemas com que a região se debateu na década de 80, mas tal como esta riqueza foi a origem da crise também a sua reconversão poderá ser uma das formas de a ultrapassar.

SR

– Pese embora a evolução que diz ter verificado, o desemprego continua a ser superior à média nacional. Isso preocupa-o?

GCR

– Essa é uma grande preocupação, na medida em que o desemprego é sempre gerador de exclusão social. Sendo o trabalho um factor de realização humana e de segurança, o simples facto da pessoa não estar a trabalhar motiva a insegurança e o sentimento de exclusão. Tanto mais que, apesar das mudanças, o desemprego em Setúbal continua a ser o dobro da média do resto do país. É uma situação que me preocupa bastante e, segundo me parece, não haverá ninguém neste distrito que não se preocupe com isso.

SR

– Para tentar acudir aos casos extremos de exclusão, a Igreja tem desenvolvido algumas acções em Setúbal. Isso é suficiente?

GCR

– Nada do que se faça é suficiente porque a tarefa só estará terminada quando não houver exclusão nem pobreza. Tenho visto com muita admiração a obra da Cáritas Diocesana de Setúbal, de apoio aos mais carenciados e aos sem abrigo pois trata-se de um trabalho espantoso feito por uma instituição particular de solidariedade social e o trabalho de muitos voluntários. É um trabalho que consegue ajudar famílias inteiras a ultrapassarem os maus momentos e, ao mesmo tempo, tenta dar meios para que as pessoas sejam capazes de endireitarem a sua própria vida.

Respeito este tipo de obra porque exalta o sentido da colaboração e das parcerias porque só em conjunto é que poderemos resolver problemas que atravessam todos. É que a pobreza e a exclusão não dizem apenas respeito àqueles que a sofrem mas sim a todos nós que, de uma forma ou de outra, contribuímos para que isso acontecesse. Sendo o mundo, cada vez mais, uma família, acho que ou nos salvamos todos ou desaparecemos todos. Neste aspecto, Setúbal está no bom caminho ao movimentar a sociedade civil, as associações empresariais e as instituições oficiais, no sentido de criar parcerias para ajudarem os mais desfavorecidos.

SR

– O Rendimento Mínimo Garantido, de cuja aplicação Setúbal foi pioneira, veio mudar alguma coisa na região?

GCR

– É uma iniciativa governamental importante, mas também me parece que é bom estar atento a eventuais fraudes ou má utilização dos subsídios. Mas o mais importante é garantir que o Rendimento Mínimo não faça as pessoas desinteressarem-se pelo trabalho. Sei que a filosofia deste programa é a de promover as pessoas e fazer com que elas sejam integradas no trabalho e deixem de necessitar de ajuda. Portanto, esperamos que isso se verifique ao longo do tempo porque o que é necessário é promover a pessoa humana e levá-la a integrar-se.

No geral, no coração das pessoas há sempre vontade de ultrapassar os problemas, mas por vezes, as condições em que estão inseridas tornam-se tão crónicas e tão chocantes que as faz perder a esperança noutro rumo. E isso, por vezes acontece com pessoas que são ajudadas porque, embora mostrem grande vontade em ultrapassarem os problemas, as dificuldades ‘amarram’ as pessoas e não as deixam mudar. Mas o que importa é continuar a tentar porque a esperança é a última coisa a morrer.

SR

– Sendo a exclusão social um dos fenómenos associados à marginalidade, de que uma parte da população de Setúbal ainda sofre, como é que ela pode ser combatida?

GCR

– É preciso investir muito mais na família e na sua coesão, o pai e a mãe têm de ser mais valorizados no seu trabalho específico de educadores e de formadores de pessoas. Nos primeiros anos de vida, as crianças são profundamente marcadas, no bom ou no mau sentido, pela família e pelos problemas que inconscientemente apreendem no pai ou na mãe. A desintegração social vem desses problemas e dessas vivências, um caso de droga ou de marginalidade não nasceu aos 20 anos, foi-se formando com o tempo e despoletou de repente.

Por isso, onde se deve apostar é na família e na sua coesão, ajudar os pais no seu papel de educadores, de modo a que levem os seus filhos a sentirem-se integrados e apoiados, a terem uma vontade forte e uma consciência grande da solidariedade e do seu lugar no mundo. A escola é importante, e devemos dar passos no sentido de termos uma escola mais educadora e menos transmissora de conhecimentos. Tal como os pais, a escola deve transmitir uma educação que envolva a pessoa em todas as suas dimensões, no entanto nunca será como a família porque esta é um meio insubstituível. No século XII, São Tomás de Aquino dizia que o futuro do mundo passa pela fé e pela família.

SR

– O que é que espera para Setúbal na viragem deste século?

GCR

– É pena, mas as pessoas não mudam por mudar o calendário. O coração das pessoas é como é, sempre um coração rico de virtualidades mas também sujeito ao pecado a todos os limites. Vejo este próximo ano que inicia um novo século como um outro ano qualquer, no seguimento da evolução que temos vindo a verificar na região. Vejo sempre as coisas com muita esperança e espero que o próximo ano seja melhor, tenho esperança de que as pessoas e as instituições sejam mais co-responsáveis na mudança do mundo.

Às vezes pensa-se que o mundo muda com os outros, ou seja, é natural que os outros – os governos ou as instituições – tenham um papel na ajuda às mudanças mas o certo é que o mundo muda comigo e com cada um dos homens e mulheres. Tenho esperança que as coisas mudem e acredito que o sonho de um mundo melhor seja acompanhado de um esforço e de um comprometimento de todos nós numa atenção muito grande aos outros, numa atitude de respeito, de solidariedade e partilha porque não há liberdade se não houver também solidariedade.

Entrevista de Etelvina Baía
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