Edição Nº 103 • 20/12/1999 |
É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ) O prazer (ou o sexo?) Meus amigos e, se possível, leitores: Esta crónica é muito importante para mim por várias razões: é a última, pelo menos desta série (e agora que chego ao fim é que me parece que tinha muito mais sobre o que gostaria de escrever. É sempre assim, não é?); sendo a última, atrevo-me a fazer-vos um pedido: gostaria que abrissem um pouco a cortina que nos separa e se dessem ao trabalho de me oferecerem um qualquer comentário sobre este meu contributo para a causa mundial da comunicação. É a prenda de Natal que vos peço, desavergonhadamente. Antecedendo a quadra de Natal, não vou falar desse “must”: não de santidade e salvação mas de pecado e perdição. |
Eu avisei na semana passada. O prazer é o meu tema de despedida. O prazer, esse tabu que permanece ainda nestes tempos que temos a mania de dizer abertos, livres, sem limites. Qual quê!!! Acreditam mesmo que já não temos preconceitos mesmo referindo-nos àqueles que gostam de quebrar barreiras? Expliquem-me então porque o prazer, sendo uma manifestação bio-psíquica com que a natureza nos dotou como com muitas outras, continua a ser um dos poucos temas que raramente é abordado por si mesmo? Explico melhor. Na literatura, no cinema, nas artes em geral, o tema de uma obra pode ser o amor, a felicidade, as relações sociais, os conflitos pessoais, a morte, a solidão, tanta e tanta coisa que faz parte das nossas vidas. Tudo, aliás! Tudo pode ser tema de uma obra e já foi tratado inúmeras vezes por inúmeros autores. Mas O Prazer… para além de um reduzido acervo ainda tem que se debater com polémicas à imagem dos tempos em que a Moral levantava o dedo para classificar um artista, uma obra, uma manifestação, um debate. Não acreditam? Leiam o que diz a contracapa da “Casa dos Budas Ditosos” do João Ubaldo Ribeiro. Mas há que fazer um reparo: o prazer é muito abrangente, vai do prazer da comida ao de cheirar uma flor, dos sentidos à contemplação interior, dos factos às ideias. Alguns destes aspectos estão livres desse estigma a que me refiro. Mas o mesmo se não passa com o prazer dos sentidos, essa coisa que nos pode colocar ao nível dos animais, e menos ainda com o prazer carnal e mental do sexo. Pronto! Agora é que vão ser elas. Será que o director me autoriza a falar aqui de sexo? Esta é a primeira questão, com a qual nunca me preocupei nas anteriores crónicas, nas quais falei do que quis e como quis. Pode ser que seja autocrítica infundada, que seja eu que me estou a censurar. Mas por alguma razão eu tacteio para ver como abordar o sexo (salvo seja). Aliás, do mesmo modo que quando procuro literatura erótica numa livraria, não o faço com o exacto mesmo à-vontade que quando procuro a “História Concisa de Portugal”. Não tanto porque me sinta mal com isso mas porque, normalmente, essas obras estão numa pequena secção menos visível, de acesso mais difícil, porque se presume que é só para um pequeno segmento de público. Conclusão: toda a gente atenta e conhecedora sabe que estou a consultar a secção erótica (o que já me faz sentir um tanto psicopata) ao passo que eu não faço a mínima ideia do que estão a consultar os restantes clientes.. Já para não falar de quando tenho que me dirigir à caixa e colocar no balcão “os Infortúnios da virtude” de Sade, na frente da senhora que vai pagar a “Culinária Regional” ou do senhor que exibe o filosófico “Fim da História” de Fukuyama, para compreensão do futuro objectivo do Homem. Não, não me digam que isso não é significativo e que é apenas um resíduo de condicionamento em vias de extinção. Não nos sentimos à vontade neste campo, perante os outros.
Outro exemplo: numa exposição de pintura, onde sabemos que estamos entre visitantes com uma formação mínima e uma apetência pelas necessidades mais além das telenovelas, não se costuma demorar o mesmo tempo frente a uma mulher de Egon Schiele, de pernas abertas masturbando-se, como numa tela de assunto “limpo”, nem que seja a Alfama de Maluda. No entanto, quantas Alfamas já vimos em telas e quantas mulheres a masturbar-se? Ao menos pela invulgaridade do tema tratado… de si. Mas? pois! Com o sexo é diferente!
O sexo é uma coisa que só se fala para o melhor amigo… e mesmo assim… há que ver o que se conta! Se é para provar o quanto somos bons na matéria, como conseguimos dar a volta à gaja ou ao gajo… tudo bem. Falar com o parceiro, o marido, a mulher… também não é sem mais nem menos: a gente faz amor e tal… mas falar não! Podemos dizer como amamos o outro, falar de flores e de universo, que é o único ou a melhor de sempre, que é até à morte, porque és meiga ou compreensivo, porque me fazes sentir feliz ou cócegas na barriga… Sim, explicar como e porque se ama, tudo bem. Mas falar sobre como se tem prazer, que espécie de prazer, o que se gostaria de fazer, o que sentimos ao olhar para aqui ou para ali, que sonhos nos evocam…. Nah! É uma coisa meio desconfortável, como se nos estivéssemos a confessar uns lascivos, uns libidinosos, uns ordinários, em suma.
Não dá jeito e no calor da situação ainda podíamos descobrir alguma coisa desagradável, saber de segredos inesperados, desejos inconfessados… fantasias inaceitáveis naquele que achamos sempre ser diferente dos outros. Sim, e este é outro aspecto interessante do sexo, porque os outros, as outras… achamos normal que façam e aconteçam, sobretudo se nós pudermos gozar de alguma maneira com o assunto… como no caso dos amantes. Mas no nosso parceiro… já a coisa não parece ficar bem. É diferente. Tal como diz o marido ou a mulher do nosso amante! Ahahaha! Será que eu não devia mencionar os amantes como se fossem seres comuns?
Bem… conclusão: ninguém devia ser diferente porque todos os maridos e mulheres são diferentes. Somos todos iguais, irrepreensíveis e moderados, sadios como manda a lei.
Vá, digam lá que não estão a achar toda esta conversa um tanto um tanto… desconfortável…
A ideia não era essa. Resvalou para aqui porque fui atrás das palavras.
Mas, como diz o outro, já que aqui cheguei aqui fico.
Um conselho para despedida: mantenham-se vivos e críticos perante a sociedade; Até um dia.