[ Edição Nº 103] – Luta na Siderurgia Nacional contra as gratificações atribuídas aos quadros.

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Edição Nº 10320/12/1999
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Luta na Siderurgia Nacional contra as gratificações atribuídas aos quadros)

Pela igualdade salarial e regalias sociais
Siderurgia desencadeia luta contra gratificações

          No dia 17 de Dezembro de 1974, a Comissão de Trabalhadores da Siderurgia Nacional, no Seixal, desencadeou uma luta laboral que levou à divisão dos trabalhadores da empresa. Tratou-se da exigência da anulação das gratificações aos quadros superiores e médios e a sua distribuição por todos os funcionários. Entre os que não entendiam a luta estava Adriano Matoso, sindicalista e membro do PCP, que no entanto se diz satisfeito com o desfecho do caso. E recorda que as reivindicações acabaram por se ‘virar’ contra alguns dirigentes oriundos de pequenos partidos de esquerda, que por isso acabaram por abandonar a empresa e dar espaço à maioria comunista na Siderurgia.


Setúbal na Rede

– Onde é que estava no dia 17 de Dezembro de 1974?

Adriano Matoso

– Estava a trabalhar na Siderurgia Nacional mas esse não foi um dia normal de trabalho porque foi despoletada uma luta contra a habitual entrega de prémios monetários aos quadros médios e superiores da empresa. Esta não era uma questão fácil porque, tal como hoje acontece, a questão dos envelopes é utilizada pelas empresas para gratificar alguns trabalhadores. O que nos parece é que os abrangidos são os primeiros a serem discriminados porque cada um deles recebe percentagens diferentes.

Na luta da Siderurgia, que teve contornos nada pacíficos, houve dificuldade em convencer os trabalhadores abrangidos a abdicarem da gratificação até porque, sendo este um hábito muito antigo, eles tinham a perspectiva de receber os envelopes. Ao mesmo tempo, a administração invocava argumentos, que hoje ainda são utilizados, de que eram trabalhadores isentos de horário e não sujeitos a horas extraordinárias. Ora, logo aqui os trabalhadores eram discriminados e explorados porque, à sombra da isenção de horário faziam horas extraordinárias e não recebiam como tal. Depois levavam uma gratificação que por vezes nem pagavam as horas que fizeram.

SR

– Quem é que desencadeou a luta na Siderurgia?

AM

– Essa luta não partiu de quem beneficiava das gratificações mas sim da Comissão de Trabalhadores que pretendia que as gratificações fossem distribuídas por todos. A comissão acabou por não ver bem aceite esta ideia que, inclusivamente, foi rejeitada pelos beneficiários e por muitos outros trabalhadores da empresa que não beneficiavam dos envelopes. Eu próprio não entendi muito bem esta luta, embora percebesse que era necessário encontrar uma forma de ultrapassar esta discriminação. De qualquer maneira não me parecia bem esta forma de luta porque estava a colocar os trabalhadores uns contra os outros. E como sabemos, uma luta laboral só é justa e só poderá vencer se unir a maioria dos trabalhadores.

SR

– A luta chegou mesmo a dividir os trabalhadores da Siderurgia?

AM

– Chegou a dividir as pessoas porque nem mesmo os que não recebiam gratificações perceberam a luta. Mas a situação foi ultrapassada e, mesmo sem concordarem com a forma de luta, muitos dos trabalhadores que recebiam a gratificação resolveram abdicar dela e mantiveram-se na empresa a colaborar com os colegas. Portanto, mesmo com vozes discordantes, a luta foi em frente e desenvolveu-se porque os que não abdicaram das gratificações não podiam entrar na empresa. A situação tornou-se complicada e prolongou-se por cerca de 15 dias.

Acredito que entre os que não abdicaram terão estado alguns dos que eram considerados quadros-chave da empresa, ou seja, os que dominavam a complexidade das principais tarefas. O grupo de trabalhadores da Siderurgia, com o qual me identifico, tem um historial de luta muito grande e muito anterior ao 25 de Abril. E lembro-me de diversas acções anteriores ao 25 de Abril em que, inclusivamente, participou um camarada de luta recentemente falecido: José Manuel Figueiredo, que exercia o cargo de vereador na Câmara da Moita. Ou seja, este colectivo de trabalhadores tinha um enorme conhecimento do trabalho na Siderurgia e sabia como pôr tudo a funcionar na empresa.

SR

– A proibição de entrada aos que não abdicaram da gratificação colocou em causa o funcionamento da Siderurgia?

AM

– Podia ter comprometido, mas afinal tudo correu bem, porque até os quadros intermédios que abdicaram do dinheiro colaboraram em todas as tarefas. O resultado é que a empresa esteve a laborar sem grandes problemas durante cerca de 15 dias e não dispunha do núcleo dos melhores quadros da empresa. Lembro-me até de uma ocasião em que surgiram técnicos estrangeiros para consertar umas instalações e na fábrica não havia ninguém que os acompanhasse e desse apoio. A Comissão de Trabalhadores contactou um dos engenheiros da empresa que não abdicou da gratificação e a única coisa que ele disse foi: “vocês puseram-me na rua, agora desenrasquem-se”. Então, contactaram um outro engenheiro que tinha abdicado da gratificação e ele prontificou-se logo a ajudar.

SR

– Como é que terminou o processo das gratificações?

AM

– Foram realizadas diversas reuniões entre a administração, os trabalhadores e o Ministério do Trabalho, tendo a empresa decidido suspender o pagamento das gratificações. Mais tarde, veio então a ser encontrada uma outra solução para o caso. Assim, da ideia inicial de que o dinheiro poderia reverter a favor de todos os trabalhadores, surgiu a decisão de criar um fundo social na empresa para o usufruto de todos os trabalhadores, sempre que necessitem de empréstimos. Esse fundo social ainda hoje existe, embora já com outros contornos porque, entretanto, a empresa também evoluiu.

SR

– Essas foi uma solução, de certa forma, inovadora para a época?

AM

– Foi, sem dúvida, porque criámos um fundo social para todos, mesmo com os problemas provocados pelas incompreensões de muitos dos trabalhadores. E os problemas foram de tal ordem que durante muitos anos verificaram-se alguns problemas de relacionamento entre alguns quadros e os outros trabalhadores da Siderurgia.

SR

– Este terá sido o maior problema da Siderurgia, ou foram desenvolvidas lutas mais abrangentes?

AM

– Esta não foi a primeira reivindicação nem o maior problema dos trabalhadores da Siderurgia, uma vez que existiam diversos problemas de fundo. Quer antes do 25 de Abril, quer logo após e em muitos dos anos que se seguiram, verificaram-se lutas muito mais importantes que a das gratificações. Recordo-me que, em 1968, numa altura em que a greve era proibida, os operadores de instalações vitais da empresa paralisaram essas instalações e toda a produção da fábrica. Isso ocorreu numa noite de Natal, precisamente porque queriam passar o Natal com a família. A partir daí, a empresa cedeu e esse direito foi conquistado. Lembro-me de outra luta em 1969, altura em que o Barreiro estava ligado ao Seixal por comboio. Por interesses dos Champallimaud, a ponte sobre o rio foi destruída e os trabalhadores da Baixa do Banheira e do Barreiro deixaram de ter ligação ferroviária para a zona da Siderurgia.

Foram colocados autocarros mas isso fez aumentar os preços dos transportes, razão pela qual os trabalhadores iam para as paragens mas sem entrarem nos autocarros. Estiveram nisto durante três dias, o que obrigou a empresa a fazer um acordo com a Belos Setubalense, em que se passaria a pagar um bilhete semanal por metade do preço. Mas a Siderurgia não gostou nada da luta e muitos trabalhadores pagaram isso com o desemprego. Em 1971, os trabalhadores da Siderurgia desencadearam uma outra luta, desta vez através de elementos integrados numa lista para o Sindicato dos Metalúrgicos, em Setúbal, o que resultou em aumentos salariais e na revisão dos estatutos, bem como numa maior democratização do sindicato, àquela época ligado à entidade patronal.

SR

– Depois de um passado histórico de luta laboral, como o da Siderurgia, o que é que mudou com o 25 de Abril?

AM

– Mudou muita coisa, nomeadamente a consciência política e social dos trabalhadores. Durante todos esses anos conquistámos muitos benefícios, incluindo as despensas, que eram dias fora das férias mas apenas concedidos aos quadros superiores. Em finais de 1974, desencadeámos uma luta que durou mais de um ano para reivindicar a aplicação, na Siderurgia, do contrato colectivo de trabalho dos metalúrgicos. Era uma questão de consciência de classe e, nós, como metalúrgicos, não queríamos ficar de fora desta convenção nacional. Embora tenha durado mais de um ano, esta nossa luta não resultou e não conseguimos ser abrangidos.

Devo dizer que no primeiro governo do PS, em 1976, durante uma reunião com o então secretário de Estado, ficámos a saber que podíamos partir a Siderurgia e podíamos fazer o que nos apetecesse porque os trabalhadores da Siderurgia nunca iriam ser abrangidos pela convenção dos metalúrgicos. Claro, era mais uma grande força laboral a integrar o contrato colectivo e, por isso, o Governo decidiu, por despacho, a realização de um novo acordo de empresa. Mas a luta da Siderurgia não se ficou pela empresa, uma vez que, quotizando-nos para arranjarmos dinheiro para a compra de três tractores e várias bombas de rega, demos uma grande manifestação de solidariedade à reforma agrária.

SR

– Na sequência dessas lutas, chegou a verificar-se alguma tentativa de tomada da gestão da empresa?

AM

– Essa ideia nunca se esboçou entre os trabalhadores. O que pretendíamos era controlar a gestão e, ao mesmo tempo, reivindicámos a nacionalização da empresa, o que veio a ocorrer em Abril de 1975. Depois, durante o processo das nacionalizações, onde era permitido aos trabalhadores elegeram um representante para a administração, elegemos exactamente um dos quadros que tinha estado envolvido na luta das gratificações e que foi dos primeiros a abdicar daquele dinheiro. No entanto, nunca lhe deram posse, apesar disso ser previsto pela lei.

SR

– A Siderurgia não conseguiu obter o contrato colectivo e o representante na administração. Isto quer dizer que as coisas não eram tão fáceis como se esperava?

AM

– As coisas nem sempre foram fáceis para os trabalhadores. E diria até que, depois do 25 de Abril todas as nossas regalias foram conquistas porque todas elas foram obtidas com muito esforço. E algumas delas não conseguimos mesmo conquistar. Depois de 1976, as coisas começaram a complicar-se e chegou mesmo a verificar-se a perda de algumas das conquistas dos trabalhadores. Aqui há responsabilidades a apurar e é preciso dizer que o retrocesso começou com o primeiro governo constitucional do Partido Socialista.

SR

– Enquanto empresa com tradições de luta laboral, a Siderurgia chegou a ver-se assediada pelos partidos políticos durante o período revolucionário?

AM

– Sim, embora tal como hoje, a grande força política na Siderurgia seja a do PCP. Logo após o 25 de Abril foi criada uma Comissão de Trabalhadores provisória cujas funções seriam reivindicar o acordo colectivo de trabalho e criar condições para promover eleições para a Comissão de Trabalhadores a sério. As eleições realizaram-se em Julho de 1974 e nas listas candidatas não apareceram quaisquer quadros partidários. A Comissão foi eleita e nela estariam todos os partidos, talvez com um papel mais preponderante dos pequenos partidos de esquerda, como a UDP e o MRPP.

A luta das gratificações acabou por criar uma grande divisão na própria Comissão de Trabalhadores e passados dois ou três meses já não existiam vestígios dessas pessoas. Alguns dos elementos dessa comissão acabaram, mais tarde, por aderir ao PS e outros ainda abandonaram a empresa. Portanto, deixaram de existir os elementos desses pequenos partidos de esquerda na Siderurgia. Neste quadro da Siderurgia, o PCP é o partido com mais força e, recordo que só nas instalações do Seixal o PCP chegou a ter mais de 1300 militantes num total de 3000 trabalhadores. Hoje a realidade será diferente, até porque a empresa tem muito menos trabalhadores, mas na altura o PCP foi o partido com maior influência na Siderurgia.

SR

– Como é que vê a actual situação da Siderurgia?

AM

– As coisas estão mal porque não ouviram os trabalhadores que, em 1975, reclamaram a criação de um plano siderúrgico nacional com o aproveitamento de todas as reservas de minério existentes em Portugal e que davam para permitir o funcionamento da Siderurgia por mais 80 anos. Esse plano foi aprovado e procurou-se desenvolvê-lo, mas os retrocessos verificados na política nacional a partir de 1976, levou a que tudo fosse esquecido e a empresa sofreu um retrocesso. Em 1979, durante o Governo de Mota Pinto, foi decidido abandonar o plano e ficou-se apenas por um plano de expansão dos produtos do Seixal. Em 1982, o Governo solicitou uma reavaliação deste plano e decidiu-se apenas por um plano de modernização.

Em 1986, deu-se a adesão à Comunidade Económica Europeia que, tendo excesso desta actividade, condicionou o sector em Portugal. 1987 abandonaram este plano e aprovaram outro para a restruturação da Siderurgia, tendo depois em 1993, durante o executivo de Cavaco Silva, é ‘dado à luz’ o chamado plano estratégico de restruturação global da Siderurgia. Ou seja, de plano em plano foram abandonando os projectos de interesse nacional para se concluir com o processo com este plano de restruturação global, que conduziu ao desmembramento da empresa. Foi partida em três e privatizada, pelo que a continuar assim, o Governo está a tomar medidas para acabar com a Siderurgia em Portugal.

SR

– 25 anos depois, com a Siderurgia desmembrada e postos de trabalho perdidos, acha que valeu a pena da luta dos trabalhadores?

AM

– Todas as lutas valeram a pena e ainda hoje elas valem a pena, embora já num outro quadro por causa das novas empresas. A Siderurgia de hoje é composta por três empresas autónomas, duas privatizadas e uma estatal, tendo o Estado português perdido com o negócio com os privados estrangeiros que as compraram. Por outro lado, a Siderurgia que chegou a ter mais de seis mil trabalhadores, na década de 80, hoje resume-se a cerca de 1500 nos dias de hoje.

Por isso, os trabalhadores continuam a lutar pela manutenção dos postos de trabalho e, mais do que isso, lutam pela manutenção dos direitos que adquiriram com a revolução e que hoje estão todos postos em causa. A mobilização continua a ser a mesma, embora de forma diferente uma vez que a Siderurgia transformou-se em três empresas diferentes. O último exemplo dessa mobilização foi dado ao longo deste ano, com a realização de greves que duraram vários dias por melhores horários, aumentos salariais e regalias sociais.

Entrevista de Pedro Brinca
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