[ Edição Nº 53 ] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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barra-6668170 Edição Nº 53,   04-Jan.99

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É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ)

Nevoeiro

          Um nevoeiro cerrado escorreu pelas árvores e pelas paredes dos prédios da praceta, esbatendo as figuras e depois as silhuetas de tudo o que nela se encontrava até as eliminar quase por completo. O horizonte era agora um circulo de chão com o centro nos meus sapatos e uns dois metros de raio entaipado por um muro de vapor cinzento esbranquiçado ou branco-acinzentado se a luz dos faróis dos carros nele se projectassem. Acabara de sair de casa.           Um nevoeiro cerrado é sempre um ambiente estranho e algo deprimente, passada a primeira reacção de curiosidade e admiração infantil:

          – Tch! Ina, pá, ca ganda nevoeiro que está na rua!!!

          O que é facto é que depois de uns minutos de desvios abruptos face aos obstáculos que surgem de repente no caminho, de ouvidos super-atentos aos ruídos denunciadores de possíveis perigos invisíveis, de olhos mais esbugalhados ou contraídos que costume para conduzir em segurança, de percursos a passo de tartaruga, o nevoeiro começa a ser irritante e ansiamos que levante o mais breve possível.           Não gostamos de ambientes difusos, não gostamos de sombras dúbias, não gostamos que as coisas surjam do nada quase em cima de nós, em suma, não gostamos do desconhecido. O nevoeiro cerrado, se pensarmos bem, é todo um mundo desconhecido que de repente se instala à nossa volta. Em locais que não conhecemos tornamo-nos crianças brincando à cabra-cega, orientando-nos pelos sons dos veículos, pelas vozes das pessoas, pelos ruídos da loiça de um possível café. Ruas que nos são familiares como as palmas das mãos, tornam-se então quase outras ruas, embora saibamos de memória como dirigir os nossos passos. O problema é que não vemos o conjuntos das coisas que formam o retrato mental das nossas ruas, dos nossos percursos, as bóias que sinalizam a nossa navegação que, só agora, percebemos não ser tão automática quanto pensávamos. Apesar da atenção redobrada quase passamos a nossa porta, a tabacaria que nos parecia tão perto parece-nos agora mais longe e só o clarão do reclamo luminoso nos dá uma noção mais exacta de onde nos encontramos. É que mesmo quando parece que não estamos a ver, quando julgamos que estamos a dirigir-nos a um local habitual de forma mecânica, a nossa visão periférica está a fazer de piloto automático. Quando as imagens faltam a memória tenta um pouco desastrada e nervosamente tomar o seu lugar mas revela-se menos eficiente nessa matéria.           E se a desorientação atingir um certo grau de gravidade também o medo do desconhecido se pode agravar e a noite de nevoeiro pode transformar-se num cenário de mais um caso de Jack Estripador.           Se vamos de carro ou mesmo a pé a um local que conhecemos mal, por exemplo a casa de um amigo onde só tínhamos ido uma vez há já um certo tempo:

          – Afinal não é aqui, será por ali? Eu sei que havia uma paragem de autocarro como esta mas a fachada do prédio era azul e esta parece vermelha… Vamos voltar atrás e experimentar virar ali à esquerda…

          Mas não há maneira de encontrarmos o diabo do prédio e vemo-nos em ruas que nos parecem inexplicavelmente hostis, demasiado silenciosas e constrangedoras, sentimos olhos frios que nos observam, criminosos cheios de vontade de aproveitar a oportunidade de dar aso aos seus instintos sanguinários a coberto dessa quase invisibilidade temporária, os vultos tornam-se suspeitos quando se aproximam demais do carro que só pode andar quase a passo…           Nessa noite de nevoeiro que agora relembro aconteceu-me ter marcado encontro com um amigo num local que apenas conhecia de passagem mas que, por condicionalismos diversos na altura, um dos quais o meu amigo estar sem automóvel, era o que melhor convinha a ambos. Era um pequeno e descuidado largo calcetado, entre prédios velhos excepto num dos lados o qual dava para a avenida, com um redondo relvado e um chafariz no meio. O chafariz era o ponto de encontro. Estacionei o carro nas imediações pois sabia que o largo não permite circulação automóvel e dirigi-me a pé para o local. Como não conhecia muito bem a zona fui andando cautelosamente, com toda a atenção pois embora tivesse a noção que estava mais ou menos no local não tinha a certeza de quão perto estava. De facto logo me apercebi que não estava tão próximo assim pois ainda devo ter caminhado durante uns cinquenta ou setenta metros. O que me começou a preocupar foi que não se via vivalma apesar de serem apenas dez horas da noite e isso, associado ao quase inexistente trânsito fez com que o som monótono dos meus passos na calçada me parecesse amplificado, como se pela primeira vez eu tomasse consciência de que faço barulho a caminhar. Por estranho que pareça senti-me exposto, como um animal ferido que deixa um rasto de sangue que atrairá o seu predador e denunciará a sua localização.           Senti-me apreensivo mas, como pessoa calma e de sangue frio que sou, tratei logo de me pregar um raspanete mental apelando para coisas como a minha idade, racionalidade e coragem, razões suficientes para não me deixar vencer por esses sentimentos infantis e medricas.           Puxei de um cigarro, companheiro reconfortante nas situações de ansiedade, de inquietação e em todas as outras e lá cheguei ao que acabei por reconhecer como a entrada para o largo. Olhei em volta para ver se vislumbrava o meu amigo Mário mas… nada via a não ser aquele estúpido e teimoso leite gasoso que já começava, inclusive, a ensopar-me o cabelo e a entranhar-se-me no corpo. Olhei o relógio, eram dez e oito minutos, o Mário deveria estar a chegar ou já estaria no chafariz pois marcáramos para as dez e ele costuma ser pontual.           Agora era só ir até ao chafariz. Após alguns passos pareceu-me divisar um vulto parado ao fundo mas, à medida que me fui aproximando vi que o vulto se começou a afastar para parar dez ou quinze metros depois. Achei aquilo um pouco estranho. Se fosse o Mário teria percebido que era eu que vinha ao seu encontro e não se teria afastado, lógico. Pensei em chamá-lo mas isso é algo que sempre me custa fazer dada a minha natural timidez. Pensar fazê-lo faz-me logo imaginar milhares de olhos voltados para mim, estudando-me de alto a baixo, avaliando desde a qualidade da minha indumentária até ao meu coeficiente de inteligência, para não falar do meu sex-apeal. Resolvo sempre não correr o risco.           Por isso me inibi de o chamar se bem que, naquele cenário deserto e impenetrável, receasse mais o ridículo de falar sozinho, caso não fosse ele. Pensei dirigir-me a ele mas também me desagradava a ideia de, caso não fosse ele, ter que quase colar a cara a um estranho para depois lhe dizer que pensava ser outra pessoa. Como já disse, sou mesmo muito tímido. E além disso, se ele fosse um daqueles meliantes que aproveitam qualquer pretexto para demonstrarem a sua pujança física e habilidade para resolver conflitos físicos que só eles percebem que despoletámos?           Junto ao chafariz voltei a olhar em redor, esforçando-me por vencer um pouco daquela muralha opressiva de cegueira mas apenas vi de novo aquele vulto parado ao fundo, do meu lado direito.

          – Que chatice – pensei – não me agrada nada aquele gajo ali parado.
          Mas será que não é mesmo o Mário e que não me reconheça por causa do nevoeiro?

          Ganhei um pouco de coragem e dirigi-me na sua direcção mas logo ele se afastou, rodeando o largo, lentamente, mantendo sempre a distancia entre nós

          – Bolas, afinal o gajo deve é estar com medo de mim ou então está a preparar alguma marosca e não quer companhia por perto. Mau, mau, se o Mário demora vou-me mas é embora.

          Consultei o relógio: dez e dezassete. Não era hábito o meu amigo atrasar-se tanto.           O que é facto é que nos dez minutos seguintes apenas passaram por ali duas pessoas, sem parar e eu, sentindo-me cada vez mais incomodado, resolvi regressar a casa.           Ali chegado peguei no telefone e liguei. Não atendeu. Fiquei preocupado mas nada pude fazer.           Atendeu no dia seguinte. Explicou-me então que chegara ao local de encontro ainda antes das dez e que se tinha ido embora por volta das dez e meia pois pensou que eu já não iria.

          – Mas como, se eu estive lá das dez e oito até às dez e vinte e cinco?

          – O quê? Então eras tu? Eh, pá, eu realmente vi um vulto mas não me parecias nada tu e por precaução afastei-me quando o vi chegar; de qualquer modo pensei que se fosses tu havias de me chamar…

          É como diz o outro: com o nevoeiro as pessoas deixam de se ver bem, por isso, como diz ainda o outro, “se está nevoeiro chama tu primeiro”.

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