[ Edição Nº 54 ] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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barra-8205517 Edição Nº 54,   11-Jan.99

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É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ)

Amor e facturas

          Um homem sentia-se criança e gostava de se sentir assim. Enquanto pôde exerceu o seu direito a permanecer fiel aos seus princípios, aos seus ideais utópicos, ao seu gosto pelo prazer, pelo gozo. Era uma criança adulta, bem entendido, não um adulto infantil.           É certo que continuava a gostar de mimos, de fazer caretas, de fazer batuque com qualquer tipo de objectos, de ver desenhos animados, de se sentar no chão, de se sujar na terra, de ficar hipnotizado com o fogo. Mas esse era o aspecto menos importante da sua criancice. Esta evidenciava-se, sobretudo, na primazia que ele concedia às emoções sobre a razão, à utopia sobre o realismo político, ao prazer do momento sobre o medo do amanhã, ao dar mais valor ao amigo que ao orgulho do seu ego, ao não aceitar que as lógicas de coisas abstractas compostas por homens, desde empresas a nações, trouxesse sofrimento a esses mesmos homens.           Era tão criança que não percebia como os homens que detêm o poder estão de mãos atadas por uma complexidade de fenómenos e não podem resolver os graves problemas dos seus governados. Perguntava, ingenuamente, porque razão prometiam então sempre os governantes resolver os problemas se depois diziam sempre não ser isso possível. Não sabiam já, antes, que assim era? Então porque mentiam impunemente? E se não sabiam como podiam então prometer?           Esta introdução serve apenas para dar um breve perfil deste homem e melhor se perceber a história que verdadeiramente nos interessa e que se iniciou quando este indivíduo começou a navegar na Internet. Apercebendo-se da facilidade com que podia contactar com milhões de pessoas de todo o mundo, logo a sua mente infantil começou a conceber a facilidade com que poderia desencadear uma revolução mundial. No fundo, sem se querer igualar nas capacidades, ele poderia usar o meio poderoso que faltou aos grandes profetas do Amor, da Paz, da Espiritualidade, para os mesmos fins. Não iria fazer páginas idiotas sobre esses assuntos, que as pessoas não lêem. Não iria divulgar A Mensagem de forma estática como o fazem os cristãos com a Bíblia. Iria fazê-lo como o tal Jesus fez, em comícios, digressões e apostolado, levando a palavra às pessoas e não esperando que as pessoas viessem à palavra. Ora, que melhor instrumento que o correio electrónico, o Internet mail, os News groups, para tal fim? Que seria hoje o cristianismo, o Islão, o Budismo se os seus mentores tivessem ao seu dispor a Internet e a televisão?           Assim pensando, seguro da facilidade com que chegaria a uma grande parte da população mundial, começou a pesquisar endereços e enviar as suas mensagens revolucionárias de Amor para todo o mundo: pessoas individuais, empresas, governos, departamentos de investigação, Vaticano e organizações religiosas, associações de todo o tipo, seitas satânicas e piratas de informática. Já antevia os milhares de mensagens trocadas, as discussões acaloradas, as palavras de ordem, os governos em pânico, as demissões e eleições extraordinárias em todo o mundo, uma nova ordem mundial nascendo de baixo para cima de forma pacífica, pela palavra e não pelas armas.           Dias depois começou a receber respostas mas, contrariamente ao que esperava, um pouco desanimadoras. Primeiro por serem muito poucas, depois porque ou os correspondentes gozavam com os seus textos ou pediam-lhe, pura e simplesmente, que não lhes enchesse a mailbox com lixo. Apenas um punhado se mostrou receptivo mas, desses, poucos apresentavam ideias para colaborar. Uma só pessoa lhe respondeu em sintonia e lhe transmitiu novas ideias e propôs colaboração activa. Uma tal Lia, uma sul americana, da zona do lago Tiahuanaco e que, por isso, o homem passou a designar por Amiga do Lago. Um outro correspondente surgiu depois, João, que com uma linguagem muito simples lhe manifestou todo o seu apoio e se dispôs a trabalhar no projecto. Chamou-lhe João o Simples.           Mas o nosso herói não desanimou. Durante meses e meses escreveu mensagens apelando ao Amor, à Amizade entre os homens, à Greve Total de Mente Fechada a todas as actividades contrárias à felicidade humana. O que pretendia era para ele tão evidente, fácil e eficaz que não compreendia como não obtinha uma adesão mundial total. Tratava-se simplesmente de as pessoas se recusarem a participar ou por qualquer forma incentivar actividades que acarretassem infelicidade directa ou indirecta para alguém.           Durante cerca de dois anos, o Homem, a Amiga do Lago e João o Simples empenharam-se nesta utópica cruzada mundial. Trocavam ideias entre si, delineavam a estratégia dos próximos textos e desencadeavam as emissões massivas da chamada Guerrilha da Felicidade. Chamavam-se a si mesmos, por brincadeira, a Santíssima Trindade: Homem, Amizade, Simplicidade e defendiam ser esse um simbolismo do seu ideal da conquista da felicidade universal, em três fases: humanização do Homem, primazia da Amizade entre todos, Simplicidade nas aspirações.           Mas tudo o que recebiam em troca era a demonstração friamente inequívoca de que a sua mensagem não atingia a alma dos destinatários.           Houve, por fim, um triste momento em que, inevitavelmente, este homem-criança não conseguiu mais continuar a iludir-se e teve que aceitar que tinha perdido a guerra, com tudo o que isso implicou nas suas crenças mais profundas.           Reuniram-se os três, electronicamente, para fazerem uma última tentativa de perceber qual o erro: se seria de fundo ou apenas estratégico. Foi aí que João, o Simples, lhes confessou que sempre previra este final por uma razão… muito simples: que também eles próprios não estavam a aderir à Greve que propunham pela razão… muito simples… de que era impossível. Por exemplo… o simples… facto de enviarem maciçamente e-mails para todo o mundo contribuía nitidamente para o congestionamento da rede em certos pontos ou momentos, com consequentes prejuízos para muita gente, para quem a rapidez da informação é vital. E os seus próprios empregos, não contribuiriam para o desemprego noutros sectores ou para qualquer outra forma de infelicidade alheia?           Assim o homem-criança percebeu, finalmente, como a vida em sociedade é complexa. Afinal, teria que concordar com os homens-adultos, com o que sempre lhes ouvira dizer desde que era criança-criança: para uns estarem bem outros têm que estar mal.           Vencido mas não convencido, o Homem está agora a preparar o lançamento de uma nova campanha, sob a forma de puro desafio intelectual: um “brain storming” permanente, a nível mundial, por forma a constituir um Banco de Ideias para a resolução de todo o tipo de problemas que afligem a humanidade.           Neste momento procura patrocínios de todo o tipo de instituições de utilidade pública e outros agentes com algum poder, para conceder prémios monetários atractivos.

          Desconhece-se em que pé estão as coisas.

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