[ Edição Nº 56 ] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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barra-3075549 Edição Nº 56,   25-Jan.99

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É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ)

O irreal crustáceo

          Toda a gente iria estar animada naquela festa de passagem de ano. Ainda era cedo e ultimavam-se os preparativos gastronómicos: os petiscos e a composição das mesas.           Apesar de ainda não terem chegado os convidados, o ambiente era já de uma alegria antecipada, excepto para as navalheiras que, uma após outra, se debatiam até ao último movimento de vida, envoltas em babas de agonia e agitação de patas, dentro do saco de plástico. Espreitei lá para dentro como quem olha com uma curiosidade mórbida para uma vala comum. Encarei com os olhos estranhamente inexpressivos, mas ao mesmo tempo penetrantes, de uma navalheira que agora se agitava mais, talvez nos últimos estertores vitais. Aqueles olhos de plástico pareciam querer fixar uma última imagem e essa era a do meu rosto, o rosto do seu assassino. Foi assim que senti, numa cena de breves segundos, todo o drama da lei da vida, da necessidade de uns morrerem para que outros vivam, de uns trabalharem para que outros gozem, de uns empobrecerem para que outros prosperem. Aquela navalheira, forma de vida a que não reconhecemos qualquer individualidade, saberia que estava a morrer numa vala comum? Pior que isso, saberia que morria por um motivo tão insignificante como era esta petisqueira?           Mas logo desliguei o interruptor deste cinema surrealista. Voltei à realidade. Fechei de novo o saco para que os bichos morressem de vez e pudessem finalmente ir para a panela de água quente, contribuindo para a animação da nossa noite e para uma entrada em grande estilo no novo ano. Afinal, era para essas ocasiões que elas eram criadas em viveiros ou apanhadas no mar. E, que raio, o que é uma navalheira, um caracol ou uma gamba? Não vamos agora querer ser tão sensíveis que, perante a travessa de gambas escaladas que surgiu por volta da meia-noite, dedicássemos um último pensamento misericordioso e respeitoso a cada uma delas, identificando-as com nomes prováveis, antes de a saborearmos, do tipo:

          – Perdoa, Ritinha, mas tem que ser.

          – Ah, Margarida, que possas reencarnar com mais sorte, na próxima vez.           Claro, não faz sentido, é um exagero de sensibilidade, um sentimento despropositado e, até, anti-natural. Pois, na verdade, se passássemos a dedicar este tipo de afeição a todos os seres vivos estaríamos a condenar a nossa própria existência no espaço de dias. Que comemos nós que não seja vivo? Acaso os vegetais também não são seres vivos, que nascem, crescem, se reproduzem e morrem? Está fora de questão que pudéssemos sobreviver alimentando-nos apenas de minerais.           É evidente que não passei o tempo a pensar neste tipo de coisas. O champanhe é mais forte que a ética, a música sobrepõe-se à filosofia e todo o ambiente de predisposição ao riso e à diversão tem o poder de tornar a vida e a existência as coisas mais simples de entender. Mas, de quando em quando, regressavam-me à memória aqueles olhos da pequena navalheira entre carapaças de cadáveres seus congéneres.

          Por isso demorei algum tempo a perceber se estava com alucinações derivadas desta obsessão ou se era real o que eu via quando, já bem tarde e bem bebido, lá pelas cinco da manhã, senti alguém tocar-me nas costas e, ao virar-me, me deparei com a pinça enorme de uma sapateira que, de olhos meigos quanto podem ser os olhos de uma sapateira, me convidava para dançar. Tinha que ser uma alucinação, é óbvio, mas o problema é que a cena se mantinha real apesar das minhas tentativas atabalhoadas de a fazer esfumar-se. Primeiro fiquei vermelho e com o coração acelerado. Depois abanei a cabeça, esfreguei os olhos, dei estaladas a mim próprio. Nada. A sapateira mantinha-se junto a mim, já dando alguns passos de dança complicadíssimos com todas aquelas patas a revoltear, as pinças dando estalidos ao ritmo da “Little China Girl” do Bowie. Olhei em volta para procurar a ajuda dos meus amigos e convidados. Mas eles dançavam, indiferentes uns, sorrindo-me outros e até fazendo gestos que significariam um – “vai lá dançar, pá! Não dês tampa à miúda…!”

          Não sabia o que fazer pois, apesar de admitir que estaria com uma bebedeira bem maior do que pensava, conservava a minha capacidade de raciocínio e sabia que aquilo não poderia manter-se. Porque não desaparecia, então, a imagem daquele bicho que me transmitia uma sensação tão inexplicável que só me ocorria ser a de uma vítima que se prepara para gozar da maneira mais sádica e perversa a sua vingança?           Sim, eu não acreditava que ela quisesse mesmo dançar comigo! Certamente ela tinha em mente um qualquer jogo sinistro e cruel. Mas o quê? E como? Poderia ela fazer-me algum mal com aquele tamanho tão ridículo, qual patego olhando o Cristo-Rei lá de baixo? E ainda que houvesse algum perigo real como ousava ela desafiar-me no meio dos meus amigos? Como podia ela estar tão segura num ambiente tão hostil de comedores profissionais de marisco?           Passados os momentos de todas estas confusas reflexões levantei-me da cadeira em que estava sentado, puxei a minha mulher e um amigo para junto de mim e da minha perigosa parceira forçada e comecei a dançar. Pelo menos sentia-me protegido, para o caso de não ser uma simples alucinação.           O que aconteceu depois foi que dançámos até cansar e animadamente. A sapateira era uma óptima dançarina e demonstrou os seus dotes em fabulosos passos de break dance, rodopiando a carapaça no chão e fazendo malabarismos rapidíssimos.           Já sentados a descansar bebemos mais uns copos de vinho branco, bem fresco, que a Ondina, nome que decidi dar à criatura, parecia não apreciar. Vi-a dirigir-se à cozinha e preparar um copo de água com sal. Depois vi-a encaminhar-se para a bancada e tive um pressentimento que me oprimiu o coração.           A última imagem que retive de Ondina foi a da sua gorda pinça direita fazendo adeus antes de puxar sobre si a tampa da panela. Senti-me agoniado e, de um salto, pus-me em pé e decidi correr para a panela. Foi quando ouvi alguém na cozinha dizer que a sapateira estava pronta. Era uma voz que vinha de muito longe, como se a cozinha, apesar de estar ali a dois passos, estivesse a cem metros. Foi aí que pensei que afinal estava a sonhar… mas não. Eu não estava a acordar de sonho nenhum, eu continuava parado em pé, todas as pessoas nos seus lugares, o gosto do vinho branco ainda na boca.           Que raio ! Isto não podia continuar assim! Eu estava louco, ou bêbado até dizer chega ou alguém me tinha dado alguma coisa a cheirar sem eu saber e estava a gozar o pratinho sem que eu conseguisse aperceber-me disso. Por isso disparei bem alto:

          – Porra! Quem é que pôs a sapateira a cozer?

          Vi toda a gente a olhar para mim com cara de caso. Disse a minha mulher:

          – Então não foste tu há pouco?

          – Eu?! Eu!?!? Então eu não estive ali a dançar com vocês?
          – Sim… mas antes a Otília veio chamar-te para pores a sapateira na panela porque a água estava a ferver! Ou achas que a sapateira podia ir para lá sozinha?
          – A Otília? A Otília ou a Ondina?
          – Ondina?!?! Quem é a Ondina? Tu estás bêbado ou passaste-te?           Tentei disfarçar o embaraço e até simulei que caía para mostrar que estava sob o efeito do álcool. Mandaram-me logo sentar e eu aproveitei para tentar aclarar as ideias. Fechei os olhos. E é tudo o que lembro antes de acordar, com uma sensação desagradável de frio e de humidade, junto a este tanque de lavagantes, nas instalações do viveiro.           Não sei como vim aqui parar. Neste momento nem sei se estive naquela festa, de que tenho apenas uma vaga recordação. O que mais me preocupa é que não tenho a certeza de ser casado e de conhecer aquelas pessoas de que vos falei. Mas sei que não estou amnésico pois recordo-me do meu número de BI, do numero de contribuinte e dos nomes de vários crustáceos que me são mais íntimos.           Também sei que não estou louco porque, para desfazer essa dúvida, recordei como uma ladainha, as sucessivas dinastias de Portugal, os seus rei e cognomes. Sei também quem são os nossos governantes actuais.           Que se passará comigo? Não sei, não consigo perceber. Mas um lavagante muito prestável já se disponibilizou para me ajudar e está a ligar pelo telemóvel para o Hospital Distrital. Para me virem buscar.           Não percebo é porque estão sempre a rir-se, os lavagantes, aqui no tanque, como se estivessem a rir-se de mim.           Mas deve ser impressão minha.

          É como diz o outro: gato escaldado até de um lavagante tem medo!

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