[ Edição Nº 58 ] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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barra-1275026 Edição Nº 58,   08-Fev.99

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É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico e músico do grupo In-Situ)

A dolorosa falta de assunto digno

          Ultimamente não me ocorre um tema sobre o qual escrever. Digo: escrever especialmente para esta coluna semanal onde tento falar de… outras coisas… de outras formas.           Não é por terem que ser temas importantes que me falta o material ou a inspiração. Às vezes o difícil é reparar nas pequenas coisas que podem ser um ponto de partida para outras ideias, para outras reflexões. E são, sobretudo, essas “pequenas” ou “outras” coisas que procuro destacar aqui.           Já que não tenho um tema para esta semana, porque não falar dessa mesma problemática? (pirueta de escritor meio vigarista para salvar a pele).           Há muitos factos e ideias importantes que diariamente exigem a nossa atenção porque condicionam a nossa vida e a dos nossos filhos. Mas, uma vez que já há muita gente competente, uns mais, outros menos, a pensar em tão transcendentes questões, escolhi para mim o papel daquele que vai dando olhadelas furtivas e ocasionais para o chão, para o lixo espalhado por todo o lado, para as coisas abandonadas por já não servirem ou por não lhe ser atribuído valor, sabendo que sempre acaba por se descobrir algo interessante. Há objectos abandonados que, por vezes, nos cativam. Lixo, sim, mas não necessariamente. Uma certa telha ou um certo pedaço de parede de uma casa em ruínas… um objecto característico de uma época ou que nos evoca certas memórias, certos ambientes… um pedaço de qualquer coisa em que adivinhamos uma história… ou o fim de uma história. Como um triciclo enferrujado e retorcido. Como os restos de um cavalinho de madeira.           Os temas importantes são importantes (eu sei, eu sei que escrevi isso), claro, mas também é bom, também faz falta, também há um lugar para os assuntos mais modestos. Como em todas as coisas, aliás, há que encontrar forma de variar um pouco nas nossas manifestações de vida, sem perder o norte, sem esquecer o que é importante.           Evidentemente que não estou aqui a dar receitas e que cada um tem a sua opinião mas a mim sempre me fez impressão (gosto desta expressão: é como fazer comichão. Não é só um mal-estar psíquico, é também mental), por exemplo, aquelas pessoas que ocupam cem por cento do seu tempo a tomar grandes decisões, a resolver graves problemas, a pensar nos desastres do mundo, a equacionar altas problemáticas, a analisar gráficos e estatísticas, a devorar calhamaços de literatura técnica, a pensar em coisas importantes, em suma.           Não me interpretem mal. Não incluo aquelas situações de necessidade social, de solidariedade, de humanitarismo, etc. Aos que se dedicam a essas causas a tempo inteiro… Altamente! Obrigado. Mas os outros, Senhor, porque lhes dais tanta dor de cabeça, porque trabalham assim? Eu sei que muitos o fazem por gosto, que quem corre por gosto não cansa e que cada um é feliz à sua maneira. Mas não sei até que ponto isso é assim tão verdade… Também um psicopata mata por prazer e não vamos dizer por isso que ele é que sabe.           Não, também não estou a dizer que devíamos prender as pessoas que se dedicam demasiado às causas sérias. Mas faz-me impressão, até um pouco de comichão, sim, que não dêem atenção àquelas coisas mais pequenas, mais insignificantes, mais humildes, mais triviais mas em que, por vezes, há tanta beleza, tanto valor, tanto não sei quê e, até, tantas ideias a explorar. Penso que, muitas vezes, não lhes prestam atenção porque não sabem olhar para essas coisas, porque não sabem lidar com “não sei quê”.           Ah, não se choquem, caramba! Lá por uma pessoa ser muito inteligente e muito competente em áreas especializadas e complexas não implica que tenha que o ser em tudo! Isso é natural, não é nenhuma ofensa! Pois é, um óptimo engenheiro pode não ter jeitinho nenhum para costurar à máquina ou até mesmo para cozer um botão, coisas que qualquer “modesta” mulher do povo faz enquanto vê televisão.

          Então, nessa ordem de ideias, penso que essas pessoas sérias, quando olham para um triciclo velho, enferrujado, meio partido, nos escombros de uma casa em ruínas, não conseguem ver mais que isso mesmo. Não é que devessem ver sempre essas coisas. O problema é que nunca vêm! Ainda que o velho triciclo tivesse em cima um velho homem com os olhos húmidos (imaginemos uma cena, não é?) não sei se não pensariam apenas: “O que é que o raio do velhote estará ali a fazer?”. Porque estas pessoas, normalmente, são muitíssimo objectivas, por isso são eficientes. São tão objectivas que numa imagem apenas vêm uma imagem e, por isso, automaticamente, valorizam as imagens de acordo com uma escala económica em que entram muitas variáveis. E o tempo é uma delas. Para essas pessoas não há tempo a perder com coisas que não têm valor objectivo.

          De facto, a pergunta “O que é que o raio do velhote estará ali a fazer?” está objectivamente correcta pois o lugar de um velho não é em cima de um triciclo!! Claro como água. Uma coisa é o triciclo e outra é o velho.           Se eu consegui escrever com alguma correcção deverão ter compreendido que não estou a condenar essas pessoas. Compreende-se a sua lógica, tão válida como a minha e até, em certa medida, essa lógica foi condição necessária para se tornarem no que são: as tais pessoas competentes, trabalhadoras, que resolvem (ou pelo menos tentam) problemas que nos afectam (pois, também há os que competentemente resolvem os seus problemas, mas já nem falo desses).           O que eu sugiro é que não desprezem as coisas simples só porque são aparentemente simples mas que experimentem perceber se elas também não terão a sua importância para a nossa formação humana e humanista.           Vá lá, não sejam cínicos: não estou a mandar o Sr. Director ir para o campo apanhar florinhas para fazer um arranjo e pôr na jarra. Mas talvez seja interessante, um dia que o Sr. Director repare em certas flores bravias que proliferam, que se distraia um pouco a reflectir porque é que outras flores, bem mais bonitas e subtis, não proliferam assim…           Por exemplo, não é?           É como diz o outro, profundamente: tudo faz parte da vida, mas isso não quer dizer que eu tenha que comer pedras.

           (em itálico: acrescento posterior, citado de memória; pode não estar exactamente conforme ao texto original do Outro)

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