[ Edição Nº 63 ] – João Joanaz de Melo, dirigente do GEOTA.

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barra-5326552 Edição Nº 63,   15-Mar.99

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Dirigente do GEOTA acusa Estado português de crime
Para Joanaz de Melo a ponte Vasco da Gama foi uma burla

           A decisão da localização da ponte Vasco da Gama e a concessão do monopólio à Lusoponte constituíram a maior burla de que o povo português já foi vítima. João Joanaz de Melo, dirigente do GEOTA, Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, e representante das associações de defesa do ambiente na Comissão de Acompanhamento da Obra, questiona-se sobre como foi possível o Estado celebrar este contrato. O ambientalista defende ainda que a nova ponte não oferece nenhuma utilidade e que os impactes negativos não tiveram tanto a ver com a sua estrutura física, mas sobretudo com questões que se prendem com o desordenamento do território.

          Setúbal na Rede – Um ano depois da inauguração, qual o balanço que se pode fazer dos impactes ambientais da ponte Vasco da Gama?
          João Joanaz de Melo
– Verificaram-se os impactes que estavam previstos. O primeiro impacte que se verificou foi a não resolução dos problemas de transportes das populações que se deslocam diariamente para Lisboa a partir da margem sul do Tejo. Esse problema está por resolver, tal como estava há dois ou três anos atrás, com a agravante que é as pessoas terem agora uma portagem mais cara para pagar uma obra que não usam. Bem podemos dar os pêsames aos moradores dos concelhos de Almada, Seixal e Sesimbra, que são os grandes pagadores da nova ponte sem terem nenhum usufruto dela. Depois há o impacte mais grave estrategicamente, que é a tremenda pressão urbanística induzida sobre a margem sul. A Península de Setúbal sempre teve problemas complicados de ordenamento de território e isso foi brutalmente ampliado com a nova ponte, principalmente na zona de Montijo e Alcochete, o que condiciona todo o modelo de desenvolvimento da Área Metropolitana de Lisboa para os próximos 50 ou 100 anos. Isto já era esperado em 1992, pois o que estava em jogo eram duas opções de modelo de desenvolvimento em que uma se baseava numa certa racionalidade do sistema de transportes e na qualificação das áreas urbanas existentes e a outra num modelo de crescimento que privilegiava o betão. Foi, no entanto, a segunda que venceu.

          SR – Mas a Câmara do Montijo e a de Alcochete são unânimes em considerar que a ponte não trouxe problemas em termos de ordenamento do território, pois essas situações estavam previstas no Plano Director Municipal, e defendem que o desenvolvimento tem sido sustentado.
          JJM
– Desenvolvimento sustentado quer dizer que não há degradação de recursos e tem havido ocupação de terrenos agrícolas com urbanização. No caso mais evidente, que é o de Alcochete, temos uma área designada como de crescimento urbano que permite quintuplicar a população do concelho em 10 anos, o que é completamente inacreditável. Ainda por cima quando não há uma programação rigorosa desse crescimento, sendo feito ao sabor dos especuladores imobiliários.
          SR – Esse problema de ordenamento não é uma consequência directa da nova ponte. Acusa por isso alguém de não ter tomado as precauções necessárias para precaver essa situação?
          JJM
– As câmaras não tomaram essas precauções e é evidente que houve uma estratégia das autarquias de promover o crescimento pelo crescimento. A razão é simples, pois é daí que vem o seu orçamento. O nosso sistema de finanças locais faz com que a principal fonte de receitas dos municípios seja através da promoção do crescimento, seja ele de que tipo for. Depois é evidente que falta o dinheiro para fazer as infra-estruturas. Mas isso já se esperava e não se pode condenar a opção tomada por povoações que tinham uma posição perfeitamente marginal em termos do tecido social da área metropolitana, quando confundem desenvolvimento com crescimento. É evidente que foram definidas algumas regras, mais rigorosas até que noutras zonas do país, mas ao nível da restrição e não do ordenamento. Não se definiu, por exemplo, quais as áreas que vão crescer prioritariamente, quais os índices máximos de crescimento demográfico para que se vai apontar nem qual a requalificação a fazer em zonas urbanas já existentes de forma a evitar a fuga da população dos centros urbanos para os subúrbios. É óbvio que o primeiro responsável neste capítulo tem que ser o Governo, que é quem determina a política de ordenamento do território.
          SR – Foi criado, no entanto, o decreto-lei 9/93, que obrigava todo o tipo de construções nas áreas envolventes da ponte a um parecer da Comissão de Coordenação Regional (CCR) de Lisboa e Vale do Tejo.
          JJM
– É bom que se diga que esse decreto não define regras urbanísticas nem de ordenamento. A única coisa que esse decreto faz é atribuir ao poder central, através da CCR, o direito de veto sobre as decisões camarárias em matéria de edificações urbanas.
          SR – Quer dizer que esse decreto não resolveu problema nenhum?
          JJM
– Teve uma única virtude, que foi garantir que dentro dessa zona todas as obras que se fizeram passaram pelo crivo da CCR. Diga-se de passagem que a CCR não usou esse poder para coisa nenhuma, mas que pelo menos essa informação existe de forma organizada, que é coisa que não há para as outras áreas afectadas pela ponte. De resto, esse decreto, enquanto peça legislativa, é uma miséria. A CCR não usou da prerrogativa que tinha para controlar de forma mais rigorosa o crescimento urbano, com o argumento de que se limitava a verificar a conformidade com os Planos Directores Municipais (PDM). Ora, os PDM’s são extremamente permissivos e, sobretudo, faltam regras à escala regional, ou seja, não há uma lógica coerente de transportes, nem de ocupação urbana, nem de corredores verdes, nem de equipamentos urbanos. Como é evidente, uma gestão casuística município a município tem falhas que não se resolvem ao nível do PDM. O próprio Estudo de Impacte Ambiental (EIA) da ponte apontava para uma série de medidas de minimização dos impactes que passavam por regras de ordenamento muito claras que não estão a ser cumpridas nos PDM’s nem no Plano Regional de Ordenamento, que não existe. De acordo com o EIA o Plano Regional de Ordenamento devia estar em pleno vigor à data da abertura da ponte e passado um ano ainda está a ser cozinhado.
          SR – Falando em termos mais específicos da localização da ponte Vasco da Gama, em plena Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo, qual o balanço que se pode fazer do impacte naquela área protegida?
          JJM
– Houve alguns efeitos negativos, mas foram mais ou menos controlados. O maior impacte, extraordinariamente negativo e com consequências que são impossíveis de avaliar, foi o lançamento ilegal de dragados contaminados no meio do estuário do Tejo, uma situação denunciada pelas associações ambientais e que foi motivo de um sério contencioso entre o Estado português e a Comissão Europeia. O Estado acabou por multar a Lusoponte que não aceitou a multa e o processo ainda está em tribunal, sem que a Lusoponte tenha sido sancionada, apesar da ilegalidade ser absolutamente flagrante, com provas completamente inquestionáveis. De resto, houve alguns impactes sobre a avifauna mas, tal como se previa, o impacte é razoavelmente controlado e sem efeitos danosos irreversíveis. Mais graves são, de facto, os problemas de expansão urbanística e humana sobre uma área que é extremamente sensível.
          SR – Isso já se faz sentir?
          JJM
– Ainda não se começou a sentir de forma muito significativa, mas também é muito difícil de avaliar este tipo de coisas num prazo tão curto porque há variações naturais que fazem com que haja flutuações dos fenómenos que podem não ser imputáveis à ponte. O que se pode ter a certeza é que uma pressão humana muito grande como a que está a acontecer, provavelmente vai ter consequências negativas sobre esses valores naturais e isso é directamente proporcional ao desordenamento do território que existia. Há uma série de efeitos indirectos que, a prazo, serão mais importantes que os efeitos directos dos pilares da ponte.
          SR – Mas pode-se já avaliar os efeitos directos do impacte da estrutura da ponte, das luzes e do ruído que lhes estão associados, no normal desenvolvimento da avifauna da região?
          JJM
– Não há ainda uma análise de dados suficientemente rigorosa que permita calcular esses efeitos. De qualquer forma, posso garantir que esses efeitos serão sempre menos importantes do que o efeito indirecto do crescimento urbano e da poluição. A importância que se deu à travessia da Zona de Protecção Especial teve uma razão de ser, pois era a única coisa que era protegida por legislação comunitária. Era o único argumento que podia servir à União Europeia como motivo para cancelar o financiamento da ponte e foi por isso que essa questão foi sobrevalorizada. Contudo, não nos enganemos, porque a Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo é uma das 10 zonas húmidas mais importantes da Europa e talvez a mais importante em Portugal, o que significa que o seu valor ecológico e o seu valor económico-turístico é provavelmente mais interessante que os magros lucros da urbanização forçada que se anda a fazer em Alcochete e Montijo, e só isso seria razão suficiente para a proteger. Mas, neste caso, essa não é a questão fundamental. As questões de ordenamento de território e de problemas de transportes são aqui tão graves que se tornam mais importantes.
          SR – Então quer dizer que, depois de todas as acusações que foram feitas à Lusoponte durante o processo de construção da ponte, não é ela a maior culpada dos impactes negativos daquela estrutura?
          JJM
– A Lusoponte tem responsabilidades muito sérias nesta questão, nomeadamente nos desacatos e nas ilegalidades que cometeu. O lançamento dos dragados contaminados no meio do estuário foi uma ilegalidade vergonhosa com o objectivo único de ganhar dinheiro e sem nenhum escrúpulo. Eu diria que a Lusoponte teve um comportamento vergonhoso nesta matéria. Agora, comparando esses impactes directos da obra em si com os impactes da envolvência à escala regional, é evidente que as principais responsabilidades têm que ser imputadas ao Governo que decidiu construir a ponte ali. Esta obra não cumpre os objectivos para que foi criada, que era descongestionar a Ponte 25 de Abril e para constituir uma travessia Norte-Sul. Temos assim uma obra que foi um investimento directo de 180 milhões de contos, que na prática custa ao contribuinte e aos utentes da Ponte 25 de Abril 400 milhões de contos, que foram os 400 milhões de contos mais mal gastos neste país. Há aqui um aspecto de gravíssima má gestão dos dinheiros públicos e esta responsabilidade é inteiramente do governo que decidiu fazer a ponte neste sítio. Também há alguma responsabilidade do actual governo que, não só continuou aquele disparate como ainda deu cobertura a alguns dos desacatos provocados pela Lusoponte.
          SR – Parece-lhe então inevitável que agora se parta para a solução de construir uma nova ponte entre o Barreiro e Chelas?
          JJM
– Eu não acredito que essa ponte se faça nos próximos 30 anos. A opção era entre dois modelos de transportes opostos, em que a opção do Barreiro era compatível com uma solução rodo-ferroviária que permitia substituir na Ponte 25 de Abril o comboio pelo metropolitano.
          SR – Era a que lhe parecia ser a opção ideal?
          JJM
– Quase todos os especialistas de transportes e de ordenamento do território deste país, a maioria das câmaras, a maior parte do próprio Governo, todos eram a favor dessa solução alternativa. A decisão final foi do primeiro-ministro Cavaco Silva que terá invocado que, sendo uma ponte, seria feita onde o ministro das pontes queria e que o projecto tinha uma engenharia financeira brilhante que se pagava a si própria sem precisar de dinheiro do orçamento do Estado. A engenharia financeira viu-se no que é que deu. Neste momento o Estado está a pagar qualquer coisa como 5 milhões de contos por ano para compensar o facto de as portagens não terem subido aquilo que estava previsto. Portanto temos este cenário de demência decisória, porque nada disto fez alguma vez sentido à escala nacional. É claro que no ponto de vista das câmaras de Montijo e Alcochete isto era interessante na altura. Acontece que o contrato que foi estabelecido com a Lusoponte tem uma cláusula em que a Lusoponte tem o monopólio das travessias rodoviárias a jusante de Vila Franca de Xira, o que significa que, se o Governo decidisse agora construir uma nova ponte a meio do estuário do Tejo, tinha que a pagar por inteiro porque a União Europeia não ia financiar por pensar que estávamos a gozar ao dizer que afinal ali é que era o sítio indicado, e ainda por cima, as portagens tinham que ser entregues de novo à Lusoponte. A Lusoponte só seria obrigada a avançar com a construção de uma ponte nova se o tráfego na ponte Vasco da Gama saturar, o que é inverosímil nos próximos 30 anos. Há por isso quem defenda que parte do motivo da decisão desta localização terá tido a ver com a expectativa da construção de uma nova ponte. É evidente que do ponto de vista do negócio para a Lusoponte é muito interessante, mas em termos de gestão de dinheiros públicos é um crime. O povo português foi burlado em 400 milhões de contos com esta ponte e o grande beneficiário do disparate é a Lusoponte. A questão é saber como é que a Lusoponte conseguiu negociar um contrato em que é extraordinariamente beneficiada e o Estado português fica com as ‘calças na mão’ com uma obra que serve pouquíssimo.
          SR – O comboio na Ponte 25 de Abril vai ajudar a resolver alguma coisa?
          JJM
– Vai ser um paliativo mas não vai resolver nada. Se as pessoas tivessem o metro à porta para seguir até ao centro de Lisboa, seria bastante funcional. Agora, enquanto não existir o metro de superfície, o comboio vai ter uma utilização muito limitada. Depois, com o metro, depende da qualidade dos interfaces e dos horários. De qualquer forma, essa solução é menos eficaz do que haver duas ferrovias, uma no Barreiro e outra na Ponte 25 de Abril, com características diferentes. Essa era aliás a solução preconizada pelo Plano Regional de Ordenamento do Território, elaborado em 1991, e que foi posto na gaveta porque era contraditório com a decisão da ponte. Foi tudo feito ao contrário, porque o plano de desenvolvimento e ordenamento é que devia dar origem às obras, mas aqui decidiu-se fazer a obra e depois deitou-se fora o plano porque este não condizia com a decisão.
          SR – Voltando à zona onde foi implantada a Ponte Vasco da Gama, as salinas eram um dos pontos principais de preocupação. Um ano depois de terminada a ponte, as salinas ainda não foram recuperadas.
          JJM
– Era suposto a recuperação das salinas estar completa quando a ponte entrasse em funcionamento, mas neste momento ainda há uma série de atrasos, pelo que, de um ponto de vista optimista, espera-se que as obras de recuperação possam estar acabadas lá para o Verão, com um ano e meio de atraso. O mais grave é a indefinição quanto à forma como vão ser geridas. A expropriação das salinas foi feita com o objectivo de garantir que aquela zona serviria de compensação para conservação da natureza, o que é compatível com a actividade salineira. Agora não está ainda definido como é que isso vai ser feito. Foi criada uma missão da qual ainda não se conhece o programa, nem o plano de actividades, nem o plano de ordenamento para as salinas, nada.
          SR – O nome de José Manuel Palma para chefiar essa missão levantou alguma polémica. O que lhe parece a escolha?
          JJM
– Gosto de discutir políticas e não pessoas. O José Manuel Palma é uma pessoa que tem vários méritos e vários defeitos e não vou fazer aqui um processo de intenções sobre se vai fazer ou não um bom trabalho. Vou esperar para ver o plano de trabalho.
          SR – A Comissão de Acompanhamento da Obra (CAO) não devia estar informada sobre os planos para aquela zona?
          JJM
– Faz parte das atribuições da CAO verificar se aquela medida de compensação está de facto em condições de ser aplicada no futuro ou não. O valor das salinas em termos de conservação da natureza depende obviamente do modelo de gestão que for seguido. Até este momento não recebemos qualquer informação por parte da tutela, o que é no mínimo de mau gosto. Não temos, por isso, nenhuma garantia de que tudo vá funcionar em condições, independentemente das pessoas nomeadas.
          SR – Deixando a ponte, falemos de outra obra de grande impacto, quer em termos ambientais, quer de ordenamento do território, e que se perspectiva para a nossa região. Concorda com a construção do novo aeroporto internacional em Rio frio?
          JJM
– Um aeroporto cria muitos apetites económicos em volta e o que nós temos defendido é que essa opção deve ser vista num quadro de uma estratégia de ordenamento para a área metropolitana. Este aeroporto tem uma dimensão nacional, porque é estratégico em termos nacionais, mas do ponto de vista do serviço tem uma vocação essencialmente metropolitana. Por isso, se não houver regras de ordenamento e de controlo do crescimento desregrado antes de se aprovar a localização do novo aeroporto, vai-se repetir em grande aquilo que aconteceu com a nova ponte sobre o Tejo. Assim, o mais importante para já é saber quais são as prioridades em termos de sistema de transportes e quais são as regras de ordenamento do território a aplicar em qualquer um dos sítios, sob pena de um efeito catastrófico. O Governo tem pretendido tomar uma decisão sobre o aeroporto antes do Plano Nacional de Ordenamento do Território, o que consideramos completamente inaceitável.

Entrevista de Pedro Brinca     

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