Militares de Abril e a madrugada da revolução
Carlos Beato recorda os passos para a liberdade
Na coluna do capitão Salgueiro Maia, toda ela composta por jovens do serviço militar obrigatório, vinha o alferes miliciano Carlos Beato que veio a revelar-se uma das peças chave da tomada do Terreiro do Paço e da rendição de Marcelo Caetano, refugiado no quartel do Carmo. Vinte e cinco anos depois da madrugada do 25 de Abril de 1974, o agora líder da bancada socialista na Assembleia Municipal de Grândola recorda todos os passos e as angústias daqueles 240 rapazes que entregaram o poder ao povo.
Setúbal na Rede – Onde é que estava na madrugada de 25 de Abril de 1974?
Carlos Beato – Estava de partida da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, comandado pelo grande militar que foi Salgueiro Maia. Éramos 240 jovens e partimos numa coluna militar com carros blindados e uma grande esperança de devolver Portugal ao caminho da liberdade e da democracia. Felizmente as coisas correram como desejávamos e, quando chegámos ao Terreiro do Paço, por volta das cinco e meia da manhã, fomos os primeiros a chegar e ainda não nos tínhamos apercebido bem que era à nossa coluna militar que o poder se ia render e que Marcelo Caetano, na altura refugiado no Quartel do Carmo, iria sair na nossa Chaimite para a Pontinha, onde estava instalado o posto de comando do Movimento das Forças Armadas, e que Santarém e as suas tropas viriam a ter a importância que tiveram.
SR – Que papel lhe tinha sido destinado para o golpe militar?
CB – Tínhamos por missão controlar o Banco de Portugal, junto ao Terreiro do Paço, a Rádio Marconi e os acessos à Praça do Município. Nessa altura vieram contra nós carros blindados do regimento de Cavalaria 7, da Calçada da Ajuda, eram carros de combate com grande poder de fogo e potência para arrasarem tudo. Foram momentos de grande tensão e angústia que penso que foram resolvidos por duas razões: primeiro porque Salgueiro Maia era um grande líder e foi, de facto um grande comandante operacional no Terreiro do Paço e no Carmo, e por outro porque o regime estava realmente caduco e as pessoas estavam fartas de Portugal viver orgulhosamente só e em condições em que os portugueses não se reviam. E quando o comandante das tropas dos carros de combate, o Brigadeiro Reis, mandou disparar contra Salgueiro Maia e os seus homens, os jovens militares não obedeceram. Acredito que foi este o grande momento do 25 de Abril e que passa por aqui a vitória em toda a acção militar, porque se do outro lado tivessem disparado talvez o 25 de Abril não se tivesse cumprido. Entretanto saiu frustrada uma das missões de outros militares que deviam estar lá antes de nós mas que chegaram depois, que era prender os ministros da Defesa, do Exército e da Informação e Turismo. Isso levou a que fugissem por um buraco que conseguiram abrir na parede de um pátio que dava para o Ministério da Marinha.
SR – Quando é que sentiu que o golpe estava completo?
CB – Nós éramos todos muito jovens, na casa dos vinte anos, éramos pessoas muito determinadas e sabíamos que ali podíamos voltar uma página importante da história do Portugal contemporâneo. Tínhamos um comandante de grande lucidez, dinamismo e liderança, o que foi determinante para todo o processo. Por isso, quando viemos do Terreiro do Paço para o quartel do Carmo, a nossa ideia era que o 25 de Abril estava ganho. Apesar de não termos ainda a rendição do chefe do Governo, Marcelo Caetano, a ideia era a de que, quando ganhámos a luta com os carros de combate, quando viemos naquela caminhada vitoriosa Rua Augusta acima, Rossio, Rua do Carmo e Largo do Carmo, sempre com o povo a envolver-nos e a dar cravos e comida, vínhamos com a sensação e a convicção nítida de que o 25 de Abril já estava ganho. Mas era preciso que Marcelo Caetano, o líder e o rosto do regime, se rendesse e ficasse às nossas ordens. Devo confessar que esse processo deixou-nos muito preocupados porque demorou cerca de quatro horas com todos nós no Largo do Carmo sem que as coisas se revolvessem. Assim tivemos de fazer fogo sobre a fachada do quartel do Carmo, no sentido de fazer ver que não saíamos dali sem a rendição, nem que para isso tivéssemos que rebentar com o quartel. Tínhamos fogo e potencial de carros blindados para isso mas é claro que queríamos evitá-lo a tudo o custo. Essa era uma das prioridades do MFA e as instruções foram todas no sentido de não provocar mortos e muito menos um banho de sangue. Depois de muitas horas de angústia e de cerco que nos foi feito pelos militares que defendiam o regime, as coisas correram para o nosso lado e Marcelo Caetano acabou por se render por volta das seis da tarde. E numa das chaimites da EPC de Santarém foi conduzido, mais o seu governo, à Pontinha onde funcionava o posto de comando do MFA. Pena é que, logo após a rendição do regime sem qualquer derramamento de sangue, a PIDE tenha disparado em posições instaladas no telhado do seu edifício, o que provocou a morte de dois jovens manifestantes e ferimentos noutros cinco. Mesmo depois de tudo resolvido a nosso favor, num último acto de loucura mais uma vez foi a PIDE que manchou aquela jornada de libertação do nosso povo.
SR – Desde quando estava a par desta operação militar?
CB – Soube disso em Novembro de 1973, quando regressei de Moçambique onde tinha feito a comissão militar obrigatória. Soube disso porque o capitão Salgueiro Maia veio falar comigo e disse-me que ia haver uma acção qualquer para ver se se acabava com o estado de coisas a que se tinha chegado em Portugal, que ele estava metido nisso e que precisava de jovens militares com experiência e capacidade de comando. Eu era alferes miliciano, tinha acabado de chegar de Moçambique e disse-lhe que alinhava nessa acção. Disse que sim porque Salgueiro Maia era uma pessoa arrebatadora, um homem de convicções, de confiança e de projectos, um exemplo para todos. Portanto, quase que diria que a Salgueiro Maia não se dizia que não. Mas isso foi em 1973 e depois nunca mais se falou no assunto embora se soubesse que, de vez em quando se faziam umas reuniões. Mas como já tinha havido tantas coisas ao longo de tantos anos, e algumas delas frustradas, tínhamos algumas dúvidas quando a uma acção em concreto. Até que num dia, às onze e meia da manhã e em plena parada, o capitão Salgueiro Maia e o então capitão Correia Bernardo vieram dizer-me baixinho, ao ouvido: “é logo à noite”. Quando me disseram isso, confesso que fiquei gelado. Mas tínhamos que ir em frente e fazer os contactos com os militares que cada um de nós iria levar sob o seu comando, portanto lá fomos.
SR – Enquanto preparava o golpe, lembrou-se da acção frustrada de 16 de Março?
CB – Lembrei-me do 16 de Março apenas durante as duas horas de caminho entre Santarém e Lisboa, que me pareceram vinte e duas horas, tal era o nervosismo e a ansiedade. Foi aí que me passou tudo pela cabeça, a família, os amigos, a oposição, a PIDE, a polícia de choque e o que é podia vir contra nós. E lembrei-me que o 16 de Março tinha corrido mal, que alguns desses nossos camaradas estavam presos e outros tinham sido muito maltratados. Essa imagem passou pela minha cabeça de tal maneira que ainda hoje a guardo como uma das coisas mais martirizantes que me aconteceram naquela madrugada.
SR – Contou o que se iria passar a todos os militares que desafiou para o golpe?
CB – Contactei uns durante todo o dia de 24 e outros na própria noite de 25 de Abril. Contei-lhes o que se iria passar mas não lhes podia dizer tudo. Aliás nem eu sabia tudo porque a acção do 25 de Abril só iria ter lugar se, nessa noite os Emissores Associados de Lisboa passassem a canção “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, às onze da noite, e a Rádio Renascença passasse à meia noite a “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso, que era a ordem para arrancar. As pessoas sabiam que iam participar numa acção militar para fazer cair o regime e não houve ninguém que dissesse que não. No entanto, houve militares de carreira, portanto não eram milicianos, que era suposto aderirem ao processo mas que no dia do golpe encolheram-se.
SR – Como é que foi feita a preparação do pessoal e dos meios no quartel, sem que ninguém desse por isso?
CB – Foi uma loucura porque tínhamos de o fazer sem dar nas vistas, já que o comandante, o segundo comandante e os oficiais que detinham o poder no quartel desconheciam esta operação. Portanto, nós tínhamos que desafiar os militares a virem connosco, preparar as viaturas, os armamentos, as fardas e as rações de combate com eficácia durante o dia 24. Algumas das viaturas já andavam a ser preparadas para sair, num processo que durou muitos meses sem que ainda se soubesse o dia da acção. Entretanto fomos desafiando algumas pessoas para a acção e outras só as desafiámos depois de ouvirmos a “Grândola Vila Morena”. Todos os oficiais estavam no quarto do capitão Salgueiro Maia para ouvir a passagem da canção que era o sinal para avançar e, portanto, ouvimos a “Grândola” quando estávamos a distribuir as diversas missões por cada um de nós. Nessa altura estávamos muito tensos porque a canção devia ter passado à meia noite e acabou por ir para o ar à meia noite e vinte. Durante esses vinte minutos chegou a passar-nos pela cabeça que já não ia haver 25 de Abril. Mas a canção veio e fomos logo acordar o pessoal, reunimos todos, demos a conhecer a situação e dissemos: “quem quiser fazer parte desta operação forma lá fora, na parada”. E para nosso espanto toda a gente quis ir, o que colocou logo um problema porque éramos mais de 800 e só podiam ir 240. E foi uma tristeza para os que tiveram de ficar no quartel. Mas no dia seguinte, alguns deles vieram a cumprir missões importantíssimas como a ida à Legião Portuguesa e à PIDE, para fazerem as prisões. Outros ainda foram incumbidos das acções de esclarecimento à população sobre o que se tinha passado. Portanto a sua atitude foi também foi uma atitude nobre e revolucionária.
SR – Vinte e cinco anos depois, acha que valeu a pena?
CB – Sinto um grande privilégio por ter participado numa acção deste calibre, em que Portugal passou a ser mais Portugal e em que a liberdade e a democracia passaram a fazer parte do dia a dia do nosso povo. Estes 25 anos foram uma aprendizagem, um percurso que ainda está longe de chegar ao fim. Foram anos de importantes conquistas, de recuperação dos atrasos em relação a outros países, mas embora já se tenha feito muito não é em 25 anos que se recupera tudo o que nos foi negado durante a longa noite do fascismo. Estes anos representam ainda o consumar de grandes conquistas para o novo povo, em particular o poder local porque, se há coisas que foram conseguidas neste país e que tiveram uma grande utilidade e onde se viu que o povo foi o grande beneficiário directo e inquestionável, uma destas coisas foi o poder local. Nos 305 concelhos deste país, os autarcas têm sido grandes obreiros da consolidação do Abril e da liberdade que nós começámos há 25 anos. Não obstante alguns excessos e desvios, que existem sempre nestes processos, não obstante algumas coisas que deviam ter sido feitas e ainda não foram, não tenho dúvidas nenhumas ao dizer que 25 anos depois tenho a convicção de que o 25 de Abril tem um saldo positivo e que valeu a pena porque não há preço que pague a liberdade de um povo. E vejo com mágoa o facto de algumas pessoas tentarem apagar a importância do 25 de Abril porque mesmo algumas dessas pessoas, que são tão críticas ou são menos benevolentes para com os militares de Abril e para com tudo o que Abril nos trouxe, de uma maneira geral também foram elas beneficiárias do próprio 25 de Abril. Mas há pessoas de memória curta e ela não é boa conselheira, por isso o que desejo é que ponham a mão na consciência e vejam que, quem veio por Abril veio por bem e os resultados estão à vista. E o capitão Salgueiro Maia, que eu considero o capitão dos capitães de Abril, foi o exemplo mais nobre e mais puro de quem veio para servir e não para se servir. Essa é a grande mensagem que Abril nos trouxe e 25 anos ainda não é tempo suficiente para fazer toda a história daquilo que Portugal seria sem Abril. Nem esses críticos a podem fazer porque criticar é fácil, o que é difícil é fazer melhor.
SR – Se hoje fosse necessário um novo golpe de Estado, fá-lo-ia outra vez?
CB – Sem dúvida que o fazia. Se quando disse que sim a Salgueiro Maia, em 1973, disse-o sem grande maturidade e consciência política, agora que são passados 25 anos e, tendo tido oportunidade de viver o que vivi em liberdade e em democracia, não só diria que sim uma vez mas diria que sim as vezes que fossem necessárias. Porque a liberdade de um povo é impagável e insubstituível.