[ Edição Nº 83] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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          O mocho ladrou e ficou atónito! Também o cão ficou confuso e hesitou.

Queria ladrar, mas receou que saísse apenas um pio. Mas a curiosidade sobrepôs-se ao medo e o pescoço retesou-se. Projectou o ar pela boca e ouviu o seu ladrar. Afinal ladrava ainda.

“A vida não é assim tão previsível como se pensa. Nem tão simétrica como se deseja. Ainda bem”

– pensou o cão.

De facto, lá porque o mocho ladrou não quer dizer obrigatoriamente que o cão tivesse que piar.

O cão afastou-se satisfeito. A vida continuava igual para si, poderia continuar a ser o que sempre fora. Desapareceu no meio das ervas e saiu desta história.

Pior estava o mocho. Desgraçado, mesmo. Todo o mundo posto em causa, todas as suas referências, o seu passado, a sua consciência de si mesmo. Que era ele afinal? A partir do momento em que ladrara em vez de piar como sempre, o que era ele? Um mocho mutante? Um cão aberrante que só agora se manifestara? Ou algo de novo? Qual o seu papel? Conseguiria ainda voar?

Tinha medo de experimentar pois caso as suas características caninas se tivessem estendido também à locomoção teria, inevitavelmente, que se estatelar lá em baixo. Ponderou o impacto da queda hipotética. Hum… um pouco assustador mas não tinha alternativa. Não poderia ficar eternamente parado naquele ramo. Quanto mais não fosse precisava procurar alimento…

Por pensar nisso, se não pudesse voar… como poderia agora caçar? Tinha mesmo que ser! Tinha que resolver aquela dúvida transcendente. A sua vida dependia disso. Ao menos voar! Depois logo pensaria na sua identidade.

Talvez ao jantar.

Recuou as patas… distendeu as asas… tremeu… hesitou… lançou-se no vazio.

Sentiu uma certa náusea e as penas eriçaram-se. Um segundo depois estava num ramo da árvore mais próxima, para onde o mocho apontara o arriscado voo. Voava, afinal! Ah, que felicidade! Não perdera tudo!

“A vida não é, afinal, tão modelar como se pensa! Há sempre margem para as variações e misturas. A vida é flexível! Ainda bem!”

– pensou o mocho e, sem querer sair da história, permaneceu no ramo da árvore esperando o jantar. Talvez o ratito que saía agora da sua toca, a uns metros dali.

O rato não sabia de nada, pois tinha estado fora de todo este drama, talvez a dormir. Por isso saiu, como sempre, atento ao piar de um mocho, ao vulto furtivo de um gato. Em movimentos rápidos e trajectos curtos, de abrigo em abrigo como um guerrilheiro, o ratito procurava o petisco. O coraçãozito deu um salto e o corpo estacou quando ouviu o ladrar mas logo acalmou. Era um cão, não havia problema de maior. Apenas evitar o contacto mas não era preciso regressar à base.

Claro que o rouxinol, que entretanto assistira a toda a história desde o início e que acompanhava, curioso, o evoluir dos acontecimentos, calculou o que poderia vir a acontecer. E aconteceu.

“Não há dúvida que a vida é mesmo previsível e que estamos todos condicionados! Somos apenas uma sequência de automatismos”

– pensou o rouxinol, não sem deixar de se admirar com a profundidade dos seus pensamentos, mais próprios… de um mocho, por sinal. De um mocho?!

Por acaso o mocho não pensou nada de especial enquanto debicava aquelas febrinhas de rato. Apenas constatava que sentia o seu desejo satisfeito.

O ratito, esse… a sua última intervenção nesta história foi ter ouvido aquele au au. Seguiu-se uma pancada seca na cabeça e o nada. Por isso não posso aqui registar as suas impressões sobre a vida. Mas não há dúvida que ilustra o inconveniente de se estar por fora da história. Há que estar informado pois quem não sabe é como quem não distingue o mocho do seu piar.

Ou, como diz o outro: Cão que ladra não morde, excepto se for um mocho esfomeado.