[ Edição Nº 85] – Luta dos trabalhadores da Signetics.

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Edição Nº 8516/08/1999
25abril2-4930110

MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Luta dos trabalhadores da Signetics)

Trabalhadores de Setúbal contra multinacional

Signetics lutou pela manutenção da fábrica

          A luta dos trabalhadores da Signetics, em Setúbal, encheu as páginas dos jornais de 1974 e muitos dos noticiários da televisão portuguesa. Dispostos a não deixarem sair de Setúbal a fábrica de componentes electrónicos, fizeram greve, piquetes e cordões humanos contra a decisão da administração. As máquinas não saíram e os trabalhadores obtiveram o que pretendiam. Mas a empresa americana trocou-lhes as voltas e acabou por fechar no final do ano. Fernanda Idália dos Mártires foi a líder da luta na Signetics e, 25 anos depois, continua a dizer que tudo valeu a pena. Isto apesar de ter ficado ‘marcada’ no mundo do trabalho e de nunca mais ter conseguido emprego.

 
Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 16 de Agosto de 1974?

Fernanda Idália dos Mártires

– Estava a trabalhar na Signetics, uma fábrica americana de componentes electrónicos instalada em Setúbal. Fui fazer o turno da tarde e, quando lá cheguei, as colegas avisaram-me que a administração estava a tentar tirar as máquinas todas da fábrica. Queriam aproveitar o facto da maior parte dos trabalhadores estarem de férias, para despedir mais de metade dos cerca de 1300 funcionários.

Então, nós que estávamos de serviço decidimos que faríamos piquetes por turnos, durante 24 horas, para não deixar sair as máquinas. E foi muito tempo, com as colegas todas agarradas às máquinas, nas linhas de montagem, sem deixarem passar ninguém. Foi uma coisa muito expontânea da nossa parte e, na altura deu resultado. Todos os turnos fizeram isto e não conseguiram levar nem um parafuso.

SR

– Porque é que a administração queria retirar as máquinas?

FIM

– A intenção era desmontar tudo e levar a fábrica para a Coreia, onde, segundo eles, a mão de obra era mais barata do que em Portugal. Antes do 25 de Abril éramos nós que tínhamos a mão de obra mais barata, mas mesmo assim, uns meses antes da revolução eles reuniram connosco no refeitório para anunciarem que a fábrica ia para outro sítio. Na altura não pudemos fazer nada porque eles estavam bem com o antigo regime, de quem receberam incentivos para se instalarem e explorarem as pessoas. A partir dessa reunião, começou a gerar-se um descontentamento entre os funcionários, particularmente entre as mulheres da linha de montagem, porque dissemos algumas verdades à administração. O resultado foi que, no dia seguinte, eu e outras colegas fomos despedidas. No meu caso, alegavam que eu era cabecilha de uma greve. Ora, nem havia greve nenhuma nem eu sequer sabia o que isso era.

SR

– A greve surgiu na sequência da decisão da administração?

FIM

– Sim, a 16 de Agosto, altura em que eu tinha acabado de voltar depois do despedimento. É que, logo que se deu o 25 de Abril as coisas mudaram e as funcionárias despedidas na reunião com a administração foram convidadas a regressar, a pedido da Comissão de Trabalhadores que, entretanto, foi formada. Assim que entrei na fábrica, ingressei na Comissão de Trabalhadores e aí começou a luta da Signetics.

A greve que se seguiu foi em defesa das máquinas, que eles queriam tirar porque depois da revolução sentiam-se menos apoiados em Portugal. Defendemos os postos de trabalho e exigimos a redução do trabalho em 50%, mas sem qualquer despedimento, ordenados iguais para todos e o saneamento de alguns dos chefes e administradores.

SR

– Foi fácil mobilizar os trabalhadores para a greve?

FIM

– Apesar da nossa razão em fazer a greve que durou cerca de 15 dias, houve muita gente que teve medo de participar. É sempre muito difícil unir todos os trabalhadores mas, neste caso, foi ainda pior porque eram muitas mulheres e, em muitos casos, estavam lá famílias inteiras. Para além disso, muita gente tinha medo do que poderia vir a acontecer porque, tal como acontecia no tempo da ditadura, a fábrica era guardada pela GNR, que, do alto do monte que rodeava a fábrica, vigiava todos os movimentos.

Os americanos sempre tiveram este e outros benefícios do Governo português e, mesmo depois do 25 de Abril, continuavam a tê-lo. Aliás, durante a ditadura, a fábrica também era vigiada pela PIDE e foi numa dessas ocasiões em que espiavam de câmara de filmar em punho, que me filmaram durante cerca de meia hora. Apesar de, antes do 25 de Abril, não ter feito nada em defesa da fábrica, eles achavam que eu era perigosa pelo simples facto de falar mais alto que os outros e de não me calar em certas ocasiões.

SR

– Os trabalhadores conseguiram as regalias que exigiram?

FIM

– Sim, mas o processo foi muito desgastante, quer para a Comissão de Trabalhadores, que não era lá muito bem compreendida, quer para os operários que estavam em greve. Por isso, houve muita gente que desistiu a meio. No entanto, depois de muitas idas a Lisboa, para negociar com o Ministério do Trabalho, conseguimos obter o que queríamos e passámos a ganhar um salário mínimo, foi-nos garantido que não havia despedimentos na sequência da redução do trabalho e que só saia quem quisesse negociar a saída. Foi ainda garantida a redução das chefias e alguns saneamentos, embora isso não se viesse a verificar mais tarde.

Entretanto, aconteceram coisas que só de lembrar dá vontade de chorar, e agora que passou tanto tempo já podemos falar disso. Durante o Dia de Trabalho para a Nação, em que todos trabalhámos de graça para ajudar o país, conseguimos arrecadar uma boa quantia. Pois o indivíduo do Ministério do Trabalho, com quem negociámos o caderno reivindicativo, fugiu com o dinheiro dos trabalhadores e nunca mais ninguém o viu.

SR

– Depois das conquistas, continuaram a lutar pela empresa ou desmobilizaram?

FIM

– Houve uma desmobilização muito grande após a greve porque as pessoas ficaram demasiado cansadas do esforço dos piquetes e de dormirem na fábrica noites a fio. Começaram a perguntar se valeria a pena tanto sacrifício e, aos poucos, acabaram por desistir. Mas houve um factor que deu ainda mais força à desmobilização e que decidiu o encerramento definitivo da fábrica, precisamente numa altura em que conseguimos obter tantas conquistas juntas.

No meio disto tudo, a administração foi continuando a minar o pessoal, não desistiu da intenção de fechar a fábrica e, como não podia fazer muito mais do que já tinha feito, afixou papéis nas paredes a convidar os funcionários a despedirem-se. E depois explicavam que, quem se despedisse até tal dia levava uma certa indemnização para casa e, quanto mais tempo levavam a sair menos dinheiro iriam receber. Ou seja, foi uma forma de pressionar as pessoas que acabou por funcionar. Com o passar dos meses, o pessoal foi aceitando a saída, mas eu fui a última despedir-me. E saí porque tinha consciência de que já não havia forma de salvar a fábrica.

SR

– O que é que aconteceu aos 1300 trabalhadores que saíram da Signetics?

FIM

– Foram quase todos direitinhos à Control Data, em Palmela, que os aceitou de imediato porque eram pessoas muito especializadas na indústria dos componentes electrónicos. Inclusivamente foram para lá alguns dos chefes que nós chamávamos de fascistas e que queríamos ver saneados. Nunca chegaram a sê-lo porque, por um lado a administração da Signetics não aceitou e, por outro, eles foram os primeiros a saber que a fábrica ia mesmo fechar. Por isso, foram os primeiros a abandonar a fábrica e a conseguir lugar na Control Data.

No final de 1974, quando saí da fábrica, também fui à Control Data mas, para meu espanto, não me aceitaram. Nem me deixaram preencher os papéis, souberam quem eu era e disseram-me que já não havia vagas. Ou seja, depois da luta da Signetics fiquei completamente ‘queimada’, não consegui emprego em mais lado nenhum porque era conhecida por ser uma dirigente sindical. Isto, depois do 25 de Abril, o que é significativo do medo que, em alguns sítios, havia dos sindicalistas e das comissões de trabalhadores.

SR

– Valeu a pena a luta dos trabalhadores da Signetics?

FIM

– Mesmo tendo saído prejudicada, acho que vale sempre a pena, nem que tenha sido só por uns meses, porque tínhamos que lutar pela nossa dignidade. Foi o que fizemos enquanto pudemos e isso deu-nos força para enfrentar o futuro. Hoje, mesmo desempregada, não me deixo levar por situações que me prejudiquem e, quando acredito numa coisa, vou em frente para lutar pelos meus ideais. A luta da Signetics foi um exemplo para muita gente, embora muitos colegas se tenham deixado arrastar pelo imobilismo. E apesar de ter sofrido muito, quer por ter ficado marcada ao ponto de não conseguir emprego, quer pelo facto do trabalho de sindicalista não ter sido compreendido por toda a gente, que achava que andávamos a passear em vez de trabalhar, acho que voltaria a fazer a mesma coisa. É que há um sentido de justiça que faz parte da natureza das pessoas, e entendo que esse sentido de justiça e essa ideia de liberdade devem ser defendidas.

SR

– 25 anos depois, como é que vê a situação laboral no país?

FIM

– Na Signetics não havia propriamente repressão, mas o clima não era dos melhores porque tínhamos chefes à perna, os tais fascistas que nos davam cabo da cabeça. E hoje em dia, embora não se possa falar em repressão nas empresas, continuam a existir os mesmos métodos utilizados antes do 25 de Abril, especialmente nas multinacionais. Na Signetics havia o jornal da empresa, onde se publicava a fotografia do empregado do mês, sendo esta uma forma reaccionária de criar divisões entre os trabalhadores e obrigar as pessoas a aumentarem a escravidão para ficarem bem vistas perante a administração. É o que acontece na Auto Europa, na Ford Electrónica e em muitas outras empresas. Ora, se eu era boa empregada não precisava que o pusessem no jornal nem me dessem a fita para usar no braço, e recusei sempre fazê-lo, mesmo sabendo que era obrigatório.

Depois era o controle das idas à casa de banho e das idas ao refeitório para beber água. É tal e qual o que acontece hoje nas multinacionais, 25 anos depois do 25 de Abril. As pessoas são escravizadas, trabalham quase sem direitos, a contrato, sem subsídios e com muita sobrecarga horária. No distrito, muita gente trabalha sem quaisquer tipo de condições, obrigada a estar de pé, numa linha de montagem durante mais de oito horas, e sujeita a todo o tipo de doenças profissionais que as respectivas administrações dizem não conhecer. É assim que vai a democracia, tantos anos depois da luta dos trabalhadores portugueses. Embora hoje exista muita gente com força para lutar, a maioria das pessoas já não tem a capacidade reivindicativa que tinha e muitas delas estão-se borrifando para os direitos e para a dignidade. A vida está de tal modo que ficam satisfeitas desde que tenham um salário.

Entrevista de Etelvina Baía
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