[ Edição Nº 86] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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fcameira1-7253305 É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico
e músico do grupo In-Situ)

Sereia na piscina

          Era nítida a excitação em que tinha ficado após a surpreendente revelação que me fizera. Garantia-me ele sem tirar os olhos da estrada que era mesmo verdade, embora ele compreendesse que eu duvidasse. Ele tinha uma sereia na sua piscina. Uma sereia mesmo, das verdadeiras, das que se vêem nos filmes, de que se fala nos livros.

Como reagiriam vocês a uma revelação destas? Pois não deveria ser muito diferente de como eu reagi. Incrédulo, tentei adivinhar qual era o jogo dele. Esperei, ouvindo de sobrolho franzido, boca arrepanhada, ar de troça. Sim, ele que não me tomasse por parvo. Concerteza não estava à espera que eu acreditasse nessa peta da sereia.

Isso é uma anedota? – perguntei para abreviar.

Não, não. Eu sei que só vendo vais acreditar por isso logo ao fim do dia vais lá a casa.

Ver uma sereia de plástico para o miúdo brincar… – disse eu, com esperteza, mostrando que já decifrara a piada.

Bem, se logo vires na minha piscina, dentro da água, uma sereia real, nadando… passando o tempo todo lá em baixo sem emergir para respirar… olhando para ti… para mim… sorrindo… que concluirás?

– Mmmm… que perdeste a cabeça e gastaste uma fortuna a comprar um robot só para te divertires a pregar essa partida aos amigos.

Ai é? Então fazemos melhor e aí quero ver o que me dizes depois: levas calção de banho e vais ter com ela, tocá-la… enfim… com cuidado! Ela perceberá o que queres mas convém não abusar. Também as sereias têm a sua honra, acho eu. Como te digo é um conhecimento recente.

– Está bem! Então logo vou engatar uma sereia

– condescendi já um pouco farto de tanta insistência numa história de que, afinal, parecia mesmo querer convencer-me.

O resto da viagem a caminho do emprego foi um confuso arrazoado sobre o que o meu amigo pensava da insólita situação: afinal existiam sereias, teríamos que reler os escritos em que elas eram mencionadas e que apenas víamos como criação literária, de onde teria vindo, porque tinha ficado ali, como chegara lá…. que fazer com ela… como se iria alimentar… e por aí fora. Uma conversa sem pés nem cabeça em que eu até comecei a temer pela minha segurança pois poderia estar a ser conduzido por um amigo enlouquecido subitamente. Ou então era mesmo uma brincadeira extremamente idiota, dada a insistência no assunto.

Durante o dia lembrei-me várias vezes daquela viagem e sentia uma espécie de náusea, uma pena difusa do meu amigo. Porque fosse qual fosse a verdadeira explicação daquela conversa irracional… era um sinal inequívoco de que ele não estava bem.

“…Uma sereia na piscina… não há dúvida que é de uma imaginação! Tenho ouvido falar de indivíduos ricos, excêntricos.. que têm golfinhos nas suas piscinas de água salgada ou até fazem piscinas só para lá terem crocodilos! Agora uma sereia..! Mas que era uma bela imagem… era! Um sonho, mesmo. Melhor que levar a namorada à piscina era ter sempre lá a namorada, sem necessidade de combinar encontro. Era chegar e… Será que as sereias são sempre belas e de corpos esculturais? Enfim… aquela metade humana…Ah, que parvoíce!”

De facto, sem me dar conta até já estava a imaginar a situação como sendo real. Caramba! Como uma pessoa se pode deixar levar pelo pensamento e pela imaginação!

Teria sido isso que acontecera com ele? Teria acordado demasiado confuso e, apressado como ele sempre é de manhã, teria confundido os reflexos da água… e engendrado depois aquela fantasia que acabara por se apoderar da sua mente?

Ou tratava-se de uma patologia ligada à sua recente separação matrimonial?

Já me roía a curiosidade de ir localmente tirar a limpo o enigma. Mal podia esperar pelo fim do dia.

A água estava transparente e de um azul lindo. Os reflexos do sol que ainda se suspendia acima do horizonte faziam o efeito lantejoula que sempre fascina pelo seu quê de imagem de tesouro. Na beira da piscina o meu amigo sentado, pés dentro da água, copo de whiskey na mão, sorria-me com a felicidade estampada no rosto e nos olhos.

Com a outra mão chamava- me e apontava o local para me sentar também.

– Serve-te e vem até aqui.

Mas os meus pés não obedeciam. As pernas pareciam ter sido enchidas à pressão com cimento pois apenas sentia que estavam duras e pesadas. No estômago sentia um formigueiro intenso ou qualquer coisa desse tipo… não, talvez uma labareda. As mãos tremiam-me e os braços pareciam ter que ser erguidos por guindastes. Percebi isso quando tentei acenar para eles. Quis sorrir por cortesia mas só consegui um esgar qualquer que imagino poder ter tido qualquer aspecto menos o de um sorriso. Talvez tivesse dado a imagem de que estava a ser vítima de uma trombose porque o meu amigo deu um salto, correu para mim e segurou-me pelos ombros com os olhos arregalados:

– Mas porque estás assim? Sentes-te mal? Mas tu nem sequer punhas a mínima hipótese de ser verdade ou… ou ela mete-te medo?

Tudo isto se passou há duas semanas. Visito-os de vez em quando e constato como parecem viver um romance idílico. Algumas modificações surgiram na casa, por força da inédita relação:

– o peixe passou a ser um prato proibido, não só por ser chocante para ela ver um semi-congénere ser devorado no prato mas também pelo mau gosto involuntário de comentários que inadvertidamente poderiam surgir junto dela, como sejam: “Que belo peixinho!” ou “Então vamos comer um peixinho na brasa?”.

– as refeições passaram a ser servidas em mesas flutuantes e, de um modo geral, tudo o que o meu amigo pôde adaptar a esse novo meio lá era feito. A água da piscina passou a estar repleta de objectos flutuantes, de plástico e de borracha, desde cadeiras a suportes para todo o tipo de aparelhos com blindagens e cabos isolados: televisão, computador, frigobar, etc.

Toda a vida do meu amigo passou a desenrolar-se na piscina, desde que tecnicamente possível. Naturalmente acabei por lhe perguntar… como passavam as noites…

– Muito simples. Até às três… quatro da manhã… eu durmo na piscina num colchão de praia. Quando sinto o frio da noite, a humidade a encharcar-me o pijama… vou para a cama.

Não há dúvida que deve ser fabuloso ter a companheira sempre disponível na piscina! Mas será que ele vai aguentar muito tempo aquele estilo de vida?

A última vez que passei por lá, ao despedir-me dele, notei como a sua mão não só não apertava a minha como parecia ter uma consistência viscosa… como pele de cobra … ou de pescada….

Na! Prefiro uma cama vazia a um pijama encharcado. Mas é discutível, admito. Porque, como diz o outro, a propósito: “O hábito não faz o monge mas… ao longe parece”.