Edição Nº 86 • 23/08/1999 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(Saneamento da administração e processo de auto-gestão da Sogantal) |
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48 jovens contra mercenários, no Montijo Operárias da Sogantal expulsaram administração Durante cerca de um ano e meio, as operárias da fábrica de têxteis da Sogantal, no Montijo, geriram a empresa e venderam o produto do trabalho para pagarem os próprios salários. 25 anos depois, Fernanda Cardoso, que liderou o processo de expulsão dos administradores e dos mercenários que queriam retirar as máquinas e a produção, recorda a luta que terminou com o encerramento da fábrica de fatos de treino. |
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Fernanda Cardoso – Estava em casa mas preocupada com as instalações da fábrica onde trabalhava, a Sogantal, que tinha sido encerrada. Nós, trabalhadoras, continuávamos lá dentro durante o dia e depois íamos para casa. Esse dia 24 de Agosto coincidiu com um sábado e, embora a fábrica estivesse vigiada por um guarda, de vez em quando uma ou outra trabalhadora passava por lá, para ver como andavam as coisas. Foi já ao final do dia quando passei junto à fábrica, que descobri que as instalações tinham sido ocupadas. Olhei para as janelas dos escritórios e vi um grande cartaz onde se dizia: “Interdita a entrada. Não nos responsabilizamos pelos danos causados. Cães polícias”. Aquilo chamou-me a atenção e fui a casa das colegas para as alertar. O caso começou a espalhar-se e deu um alarido tal, que a própria população do Montijo acabou por concentrar-se à porta da fábrica. Arrombámos as portas, fomos recebidos com balas simuladas, mas conseguimos entrar e descobrimos pessoas barricadas dentro do escritório. SR – Identificaram as pessoas que estavam barricadas? FC – Era o patrão, o gerente e uma série de mercenários, contratados para levarem o material e as máquinas. Dentro da fábrica, deparámos com as máquinas desmontadas e com os fatos de treino empilhados e atados, prontos para o embarque. E a uns quilómetros de distância da fábrica, para não dar nas vistas, estavam alguns camiões para transportar o material para França. A intenção era levar tudo o que pudessem, sem nos darem satisfações nem os salários em atraso nem a indemnização pelo encerramento da fábrica. Então, os dirigentes sindicais exigiram negociações e ficou decidido que eu entrava no escritório acompanhada de um dos elementos do sindicato para darmos início às negociações. Mas não houve grandes possibilidades de diálogo porque a população, que estava quase incontrolável, invadiu logo os escritórios. Entretanto, lá de fora avisaram-nos que algumas pessoas estavam a transportar gasolina dentro de capacetes para incendiarem os escritórios e obrigarem a administração a sair. De repente, alguém alertou que eu e o dirigente sindical estávamos dentro dos escritórios e que um fogo posto iria colocar as nossas vidas em risco. O gerente, que era português, percebeu o sucedido e traduziu para o patrão e só sei que ainda levei com gás lacrimogéneo em cima. Não sei como é que saí e quem é que me transportou, só me recordo de estar sentada no meio dos fatos de treino, com imensa gente à minha volta. SR – Com essa acção, conseguiram salvar o material? FC – Sim, pelo menos conseguimos que eles saíssem da fábrica e não levassem nada. A seguir apareceu a Rádio Renascença para cobrir o acontecimento, e logo depois aparece o MFA, que entretanto foi alertado para o que se passou. Foi tudo muito rápido, desde a nossa entrada na fábrica até à chegada do MFA passaram apenas duas horas. Quando chegaram, os soldados apontaram as metralhadoras à população e levaram os franceses com eles, para sua própria protecção. É que, com os ânimos exaltados e a revolta que as pessoas sentiam naquele dia, se o MFA não os levasse dali a população matava-os. Exigimos acompanhá-los para saber para onde os levavam e fomos também para o quartel militar, com algum receio, acompanhados de um militar que nos tratava como se nós fossemos os fascistas e os outros os explorados e oprimidos. Embora compreenda que a intervenção do MFA foi benéfica, dadas as circunstâncias, não aceitámos muito bem o facto dos militares terem protegido demasiado aquela gente e, posteriormente, os terem enviado para França sem qualquer tipo de castigo. Entretanto, ficámos sem máquinas montadas para produzir. O que nos valeu foi a solidariedade de vários mecânicos de outras empresas, que nos ajudaram a montar algumas das máquinas. Continuámos a produção mas não foi fácil porque não tínhamos dinheiro para peças novas, nem para as agulhas, para as linhas ou para a própria electricidade. SR – A partir dessa data, tomaram posse da fábrica? FC – A partir dessa altura começámos a dormir dentro da fábrica. Éramos 48 operárias e fazíamos piquetes, enquanto umas trabalhadoras ficavam na fábrica outras iam vender a produção a diversas empresas e escritórios em vários pontos do país. Levávamos comunicados para divulgarmos a nossa luta e, nisso, éramos apoiadas pelos diversos sindicatos. Gerou-se uma solidariedade tal que, apesar de não necessitarem dos fatos de treino, muitas pessoas compravam o produto só para nos ajudarem. E esse dinheiro todo junto, dava para pagar os nossos salários. Conseguimos manter a fábrica durante mais de um ano e, entretanto, surgiu a hipótese da auto-gestão, ou seja, outras empresas darem-nos trabalho e nós utilizarmos a fábrica para produzir. Mas não conseguimos chegar a esse ponto porque não tivemos grandes apoios, não havia condições para o transporte e não tínhamos dinheiro para investir, embora muita gente estivesse disposta a levar e a trazer os materiais. Mas não conseguimos pagar dívidas como a luz e as outras despesas habituais da fábrica, e na altura em que o sector têxtil entrou em crise, devido às diversas lutas em todo o país, as coisas começaram a piorar. Tentámos tudo para salvar a fábrica, e inclusivamente fizemos um teatro na Praça de Touros do Montijo para angariar dinheiro e divulgar a nossa luta, antes e depois do 25 de Abril. Num acto de solidariedade, vieram trabalhadores de empresas de todo o país, com cartazes nas mãos para apoiarem a nossa luta. SR – Quando é que começou a luta da Sogantal? FC – Menos de um mês após o 25 de Abril, apresentámos um caderno reivindicativo à administração, ao qual a empresa não deu o menor crédito. Então como as nossas reivindicações não foram satisfeitas, decidimos trabalhar a meio tempo e baixar a produção. Trabalhávamos devagarinho, sem qualquer ritmo, nós que estávamos habituadas a trabalhar ao prémio de produção. Para a administração, isto foi o mesmo que parar e fazer greve. Então diziam que não podíamos fazer greve e que a luta era ilegal. Entretanto, contactámos o Sindicato dos Têxteis que nos garantiu ser possível a redução da produção e que, se quiséssemos fazer greve também podíamos. E enquanto trabalhávamos a meio tempo, acompanhávamos o trabalho com uma canção que dizia que não faríamos a produção normal. Mais tarde, esta canção veio a ser substituída pelo hino da fábrica. Então começámos a ver o gerente francês, de mãos na cintura, a olhar para nós e a ver aquela cantoria toda que punha as operárias satisfeitas. Éramos todas muito jovens, entre os 15 e os 20 anos, estávamos na idade da irreverência e as coisas começaram por aqui, sem nos percebermos sequer das proporções que poderiam atingir. É que a luta começou com algumas reivindicações que achávamos serem mais que justas, e que eles nos poderiam dar se quisessem. Como não atenderam as reivindicações, o processo desenrolou-se de tal maneira que acabámos por ocupar a fábrica. SR – Que consequências imediatas teve a baixa de produção? FC – Deixaram de pagar os salários e diziam que se não produzíssemos não ganhávamos. Então foi aí que as coisas se complicaram e passámos a reunir no refeitório. Mas haviam duas chefes que estavam do lado do patrão e uma delas chegava mesmo a escrever para França a contar tudo o que se passava na fábrica e tudo o que se decidia nas reuniões. Quando descobrimos, expulsámos essa chefe e proibimos a sua entrada na fábrica, e foi nessa altura que a luta se agravou. A administração regressou a França e nós começámos a gerir a fábrica com a ajuda do sindicato. Foi a partir daí que começámos a fabricar e a vender, e a tentativa de ocupação da fábrica deveu-se precisamente ao facto deles terem tido conhecimento disso. É que, quando foram para França, eles estavam convencidos que nós parávamos e que a fábrica parava. Acho que a intenção era mesmo provocar o encerramento e depois virem cá buscar o material. SR – Não houve dificuldades no escoamento dos produtos? FC – No início tivemos algumas dificuldades pois, tendo saído de um regime fascista e entrado num muito mais aberto, havia uma grande anarquia e muita gente que se aproveitava de muita coisa. Inclusivamente nós cometemos muitos erros, como era natural, porque éramos inexperientes e a única coisas que sabíamos era trabalhar. Então, quando começámos, muita da população do Montijo não aceitou bem a nossa luta. Muitos achavam que não queríamos trabalhar e que queríamos dinheiro fácil, não compreendiam porque é que estávamos a querer vender aquilo que não era nosso. Foi bastante difícil faze-los compreender a situação, mesmo com a ajuda de diversos partidos políticos que divulgavam comunicados e explicavam às pessoas as razões da nossa luta. Depois de algum tempo a lançarmos comunicados, as pessoas começaram a ficar mais informadas e, a partir daí, aceitaram muito bem a luta. Aceitaram tão bem que, quando foi a ocupação da fábrica, veio gente de todo o lado para nos ajudar. SR – Os partidos tentaram tirar proveitos políticos da vossa luta? FC – Sem qualquer dúvida, iam aparecendo para dizer que eles é que defendiam a classe trabalhadora. Diziam todos o mesmo e atacavam-se mutuamente, o PCP era isto, o PS era aquilo, o PPD e o MDP/CDE também. Ou seja, com eles começámos a aprender o que eram os partidos e quantos existiam, porque até então não conhecíamos nada. Apesar das tentativas, todos os partidos ficaram completamente afastados porque a luta da Sogantal era única e exclusivamente decidida por nós, com a orientação do Sindicato dos Têxteis que não estava partidarizado. É que embora o sindicato contasse com elementos de diversos partidos, nenhum deles representava a maioria e nenhum deles tinha qualquer influência nas decisões. Inclusivamente fazia parte desse sindicato, enquanto presidente da direcção, o falecido Manuel Lopes, da CGTP, que foi quase um pai para nós. SR – Como é que uma jovem sem qualquer experiência política, aparece integrada num sindicato logo após o 25 de Abril? FC – Graças às proporções da luta, já na fase de auto-gestão, fui convidada a entrar na lista candidata à direcção do Sindicato dos Têxteis. Fiquei na dúvida mas disseram-me que tinha uma grande consciência de classe. Por isso acedi e posso dizer que aprendi muito com muita gente. Hoje penso que foi difícil entrar naquela engrenagem que eu não conhecia e para a qual não estava preparada politicamente, mas lembro-me que na altura foi-me tudo muito fácil. Eu já lá estava na fábrica e a idade da irreverência ajudou muito. Foi uma aprendizagem no dia a dia, estava ávida de conhecimento e aquilo passou a ser a minha vida. Sempre fui uma pessoa muito revoltada contra as injustiças e contra a pobreza porque vinha de uma família numerosa e muito pobre, onde só se comia sopa e pão, e onde tudo o que se conseguia era a pulso e à custa de sermos muito explorados. SR – Como é que terminou a luta da Sogantal? FC – Com a impossibilidade de promover a auto-gestão, devido à falta de meios e aos poucos apoios que tínhamos, o processo começou a degradar-se uma vez que estava no fim o stock de produtos para venda. Das 48 operárias, restavam agora apenas 15 porque as outras foram desistindo quer devido a pressões familiares quer porque já não aguentavam a situação. Neste grupo restrito fui das primeiras a sair, por também já não conseguir aguentar. Depois começaram a surgir vários problemas porque umas já não queriam ir à fábrica, tendo em conta que o dinheiro da venda já não dava para completar os salários. Mas não queriam perder o direitos e apareciam de vez em quando, e isso gerou uma certa revolta junto das colegas que permaneciam no local, a sacrificarem-se pela fábrica. Então surgiu a desunião e a luta começou a desintegrar-se. SR – 25 anos depois, como é que vê aquela época? FC – Vejo-a com muito respeito, pela irreverência e força que tivemos e acho que, na altura, éramos capazes de morrer pela causa que defendíamos. E havia uma enorme solidariedade e união entre os trabalhadores, coisa que hoje não existe. Agora, olho para trás e vejo que tudo isso se perdeu porque, 25 anos depois, a realidade é outra. Durante esse tempo aprendi muito e consegui deitar para fora toda a revolta que não conseguia exteriorizar por palavras, e embora não tenha partido, na altura convivi com gente como Augusto Mateus, Ferro Rodrigues e João Cravinho. Eram formados e talvez tivessem algum passado de luta, mas na altura estavam na universidade e hoje estão no topo. Portanto, a Sogantal foi uma experiência muito rica e voltaria a vivê-la se fosse preciso. Hoje, admito que a situação não podia continuar como estava porque havia uma grande anarquia e tinha mesmo que se pôr ordem em determinadas situações que, na altura, nós não conseguíamos ver. No entanto, acho que se pôs demasiada ordem porque hoje restringe-se salários, restringe-se ideias e parece-me que estamos a regressar ao passado. E se tivesse que voltar a fazer o mesmo, fazia sem qualquer dúvida e com a experiência que hoje tenho, fá-lo-ia com mais método e de certeza que teria resultado. SR – Quando olha para as pessoas que lutaram ao seu lado e que hoje estão bem, sente que também poderia ter seguido esse caminho? FC – Não tenho estudos para isso porque fiz apenas a 4ª classe, era só o que podia fazer porque a minha família era muito pobre. Podia ter continuado no sindicalismo, se quisesse, mas o que aconteceu foi que me desiludi muito, senti-me usada e lesada por diversos organismos. Hoje podia ter uma carreira sindical ou política, mas não a tenho porque me senti usada e humilhada por algumas pessoas em muitas ocasiões, como foi o caso do MES, onde muitas vezes me sentia a proletária coitadinha. Era apenas um símbolo para mostrar que o MES era mesmo um movimento dos operários. Tanto que até tinha uma trabalhadora nas suas fileiras. E houve outros casos que me deixaram desiludida, como o do PCP do Montijo que nos emprestou as instalações para guardar o produto do trabalho e que, depois queria que pagássemos o favor com a nossa filiação. No entanto, há muita gente dessa época, em todos os partidos, que eu respeito imenso, quer pelo que fizeram quer pelo que têm feito ao longo dos últimos anos. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |