[ Edição Nº 87] – Homenagem a Allende no Entreposto.

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Edição Nº 8730/08/1999
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Homenagem a Allende no Entreposto)

Toques de sirene em memória de Allende

Trabalhadores desafiaram administração

hbexiga1-2693402           No dia 11 de Setembro de 1974, mais de 900 trabalhadores da fábrica Entreposto, em Setúbal, desafiaram a administração da empresa para homenagearem Salvador Allende. Apesar da reacção negativa dos patrões, os trabalhadores pararam as máquinas, fizeram um minuto de silêncio e tocaram a sirene. A partir daí, nada foi como dantes no Entreposto porque os operários tomaram as rédeas da fábrica de automóveis.


Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 11 de Setembro de 1974?

Hélio Bexiga

– Estava a trabalhar no Entreposto, uma empresa de montagem de automóveis. Na altura fazia parte da Comissão de Trabalhadores had-hoc, que foi formada logo após o 25 de Abril. Por isso, nesse dia a Comissão aplicou a decisão tomada dias antes pelos trabalhadores e tocou a sirene da fábrica em memória de Salvador Allende. Apesar dos problemas criados pela empresa, acabámos por tocar a sirene e fazer uma paragem simbólica com um minuto de silêncio na fábrica, durante o período da manhã. Nós éramos muito activos e tínhamos uma grande força, por isso a homenagem realizou-se e a administração ficou a observar sem poder fazer nada.

SR

– Que tipo de problemas é que a administração criou?

HB

– Apesar de lhes termos comunicado com antecedência as nossas intenções, quando chegou o dia de tocar a sirene a administração opôs-se porque pensava que ainda era a autoridade dentro da fábrica. A administração achava que os trabalhadores não tinham legitimidade para tomarem este tipo de decisão e chamou-nos para pôr em questão a nossa atitude. Nós não vimos qualquer mal no acto, dissemos que não abdicávamos da decisão mas eles continuavam a dizer que tal acto necessitava de autorização superior. Entre uma discussão e outra, as coisas foram andando e, quando chegou a hora determinada um trabalhador foi até à sirene e tocou. Ainda hoje não sei quem foi, mas não tem qualquer importância porque, na altura, estávamos tão unidos que todos sabiam o que devia ser feito e fazíamos as coisas em nome de todos os trabalhadores.

Claro que a administração não gostou, mas pouco mais pode fazer do que dizer-nos que cometemos um acto de indisciplina. Não tiveram coragem de nos admoestar nem de nos castigar e as coisas ficaram por ali.

SR

– De alguma forma, a administração receava os trabalhadores do Entreposto?

HB

– Acredito que sim, porque nós éramos muito unidos e tínhamos muita força. O clima dentro da fábrica era efusivo, as pessoas eram muito activas e queriam mudar as coisas dentro da empresa. Éramos gente nova numa fábrica nova e o grupo que constituiu a primeira Comissão, ainda em Abril, era composto por pessoas relativamente informadas e que mereciam a confiança de todos os trabalhadores. Muitos de nós frequentávamos o Circulo Cultural onde podíamos discutir os nossos problemas e mobilizar as pessoas para a luta pela democracia. Por isso, desde os operários da linha de montagem ao pessoal da sala de desenho, a que eu pertencia, tínhamos todos o mesmo ideal. A Comissão de Trabalhadores had-hoc, que veio a transformar-se numa comissão eleita pouco tempo depois, foi criada precisamente para elaborar um caderno reivindicativo que acabámos por ver concretizado pela administração.

SR

– Numa empresa em que se ganhava mais que na maioria das fábricas de Setúbal, que tipo de reivindicações foram apresentadas?

HB

– O caderno reivindicativo foi o primeiro acto da Comissão had-hoc porque, apesar de sabermos que não estávamos mal, continuávamos a ter problemas graves ao nível dos salários. Os ordenados eram atribuídos consoante as negociações com cada um dos trabalhadores e isso resultava em que, no mesmo serviço, as pessoas ganhassem de forma diferente. Para além disso verificava-se um grande acto de discriminação para com as mulheres que, mesmo fazendo trabalho igual ao dos homens ganhavam muito abaixo deles. Depois defendemos ainda a reformulação das categorias profissionais e um conjunto de regalias que passavam pela construção de um bairro social e de uma creche.

SR

– As negociações foram favoráveis aos trabalhadores?

HB

– Acabaram por sê-lo, à excepção do bairro social e da creche, que eram projectos a médio prazo e que acabaram por não ser aplicados por questões técnicas e devido à complicação do processo negocial. As negociações duraram até Maio, altura em que fizemos uma greve. Nessa altura, a administração aceitou a maior parte das exigências do caderno reivindicativo, os salários foram logo aumentados e as carreiras reformuladas.

SR

– Foi com esse processo que terminou a discriminação salarial em função do sexo dos trabalhadores?

HB

– Foi a partir daí que homens e mulheres passaram a ter salários iguais para funções iguais. Mas o mais curioso é que isto não agradou a algumas mulheres que ficaram a ganhar tanto ou mais como os respectivos maridos, consoante trabalhassem no mesmo sector ou não. E assim que se soube que iam ganhar tanto como os homens, um grupo de trabalhadoras veio ter connosco e pediu-nos por favor para arranjarmos maneira de lhes baixar os ordenados, nem que fosse só um pouco, para que os respectivos maridos continuassem a ser os ‘chefes de família’.

Um episódio destes dá mesmo para ilustrar como eram as coisas na altura porque, apesar da revolução, as pessoas continuavam a ter uma mentalidade virada para o masculino, onde o homem prevalecia. E de acordo com esta mentalidade, as mulheres pediam para ganhar menos só para evitarem problemas em casa com os maridos. Logicamente que isso não pode ser concretizado porque não fazia sentido e o que aconteceu foi que a Comissão de Trabalhadores exerceu um acto pedagógico e informativo junto desse grupo de mulheres ao explicar-lhes que a revolução de Abril foi feita precisamente para acabar com as discriminações e que, a partir daí, nada seria como foi durante a ditadura.

SR

– Foi difícil à empresa assinar o acordo com uma comissão não eleita?

HB

– Foi difícil, quer por isso quer pelo teor das exigências e as negociações duraram meses. Mas as coisas parecem ter ficado mais fáceis depois da intervenção do MFA porque, como a administração da empresa deu a entender que duvidava da nossa legitimidade em representar todos os trabalhadores e temia que as reivindicações que fazíamos não tivessem sido decididas por todos, lembrámo-nos de convidar um elemento do MFA para um plenário de trabalhadores.

A ideia era mostrar como tudo se passava e sossegar a administração da empresa, porque na altura a presença de um militar dava logo uma maior segurança quanto à honestidade dos processos. Assim, resolvemos ir ao Regimento de Infantaria 11, em Setúbal, e pedir a presença de um militar em nome do MFA. Não tivemos qualquer problema e a resposta foi imediata. Assim, no dia do plenário reunimo-nos com um militar a observar o plenário para garantir que tudo corria como devia correr.

SR

– A que é que se deveu o desaparecimento do Entreposto, na altura considerado um empreendimento moderno e promissor?

HB

– Teve muito a ver com o crescente desinteresse do patrão em investir na fábrica de Setúbal, aquilo parecia-nos mesmo uma sabotagem e então sugerimos algumas medidas para uma melhor gestão. Como não houve qualquer resposta, pedimos a intervenção do Estado para evitar o encerramento da fábrica ou o despedimento de pessoal. Por isso, em meados de 1975 decidimos suspender a administração e solicitar a intervenção de um representante do Estado. Avisámos os directores, formámos piquetes e ninguém entrou na fábrica. Alguns ainda tentaram voltar mas dissemos que não no responsabilizávamos pelo que lhes iria acontecer e acabaram por desistir.

Entretanto, como a decisão do Governo demorava o seu tempo, decidimos avançar para a auto-gestão e foi isso mesmo que se verificou durante cerca de quatro meses. As coisas decorreram sem problemas até chegar o representante do Estado que, quando assumiu funções, tomou o assunto nas mãos. Mas foi difícil porque os representantes da administração que passaram a reunir com o representante do Estado não gostaram muito da ideia. Nesse espaço de tempo, surgiu a hipótese de se fabricar frigoríficos e a empresa aceitou. Vendo que as coisas estavam melhores, o representante do Estado saiu de cena e passámos a trabalhar nos produtos de frio e na metalomecânica. Tempos depois, passámos para os frigoríficos e arcas e a empresa passou a chamar-se Valfrio. Este projecto acabou por falir nos finais dos anos 90, deixando mais de mil trabalhadores no desemprego.

SR

– Durante o período revolucionário, os trabalhadores sentiram-se influenciados ou manipulados por parte dos partidos políticos?

HB

– Nunca se deu por qualquer influência desse tipo. Na fábrica e na Comissão de Trabalhadores havia gente ligada aos mais diversos partidos e as coisas sempre correram bem porque primeiro estavam os interesses dos trabalhadores do Entreposto. No entanto, em 1975, perto do Verão Quente, começam a surgir tentativas de fixação de uma outra corrente mais à esquerda, como a UDP e o MRPP. No entanto, nada disso influenciou o nosso trabalho nem as nossas reivindicações.

SR

– 25 anos depois, acha que a luta do Entreposto valeu a pena?

HB

– Tudo valeu a pena porque as pessoas ganharam direitos e regalias. Tínhamos consciência dos nossos direitos e da nossa força e durante muitos anos estivemos unidos na defesa dos nossos postos de trabalho. É pena que, hoje em dia, as coisas não estejam como deviam e como todos esperávamos há 25 anos atrás, com regalias e direitos garantidos e com as empresas a respeitarem os trabalhadores. O que hoje se vê é a ilegalidade por parte de muitas empresas, particularmente as multinacionais, que não respeitam os trabalhadores nem as leis do trabalho. E como o desemprego e a instabilidade é muita, graças às medidas tomadas pelos sucessivos governos, as pessoas acabam por ter de se sujeitar ao trabalho sem direitos.

Entrevista de Etelvina Baía
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