[ Edição Nº 88] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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          Imagine-se uma mulher que tem como “hobby” a escrita. Escreve pequenos contos, poemas, histórias de tudo e de nada, coisas transparentes, directas e muito diversificadas.

A partir de certa altura, contudo, os seus textos passam a ter, claramente, um outro conteúdo mais subtil e mais constante. Surgem temas ligados a vidas duplas, relações problemáticas, nascem personagens vivendo amores ilícitos, há valores postos em causa, questões que ficam em aberto no final dos contos.

– Porquê este tipo de textos agora?

Esta pergunta fez-lhe o seu marido, incapaz de ocultar por mais tempo a suspeita.

– Os teus contos são sobre ti? Esses personagens existem? És tu quem vive essas histórias?

– Não sei responder-te!

– terá dito ela.

O marido achou esta resposta um absurdo! Não era a prova de que ela lhe ocultava algo, que era mesmo ela quem levava uma vida dupla e que sentia necessidade de a registar nos seus escritos? Como era possível não saber responder a uma questão tão simples? Apenas sim ou não! Ou os contos eram baseadas na sua realidade ou não. Como não sabia responder? Acaso era e não era ao mesmo tempo?

– Exactamente! É e não é! Mas não é por isso que não te sei responder. É a tua pergunta que não faz sentido porque não pode existir! Eu oiço a tua pergunta e eu penso que ela não se dirige a mim. Mas como insistes e eu vejo que queres mesmo uma resposta eu não sei que te dizer.

– Diz só sim ou não!

– Porque nunca perguntaste isso antes?

Será apenas porque agora não te reconheces em nenhuma parte da história? Porque agora te sentes excluído quando sempre exiges ser o herói do que escrevo mesmo que eu nem sequer pense nisso? Com que direito? Com que direito condicionas a minha liberdade de desenhar os mundos que eu quiser? De colorir mundos com as cores que me apetecer?

– Podes pintar o que quiseres e como quiseres mas preciso saber se és a mulher pintada nos braços do amante! Só isso!

– O que tu não entendes, querido, é que, independentemente do meu valor artístico, eu crio, invento. Se acaso eram reais as histórias em que peguei, quando as escrevo deixam de ser as que eram, deixam de ser as histórias de quem as viveu. Passam a ser novas histórias inventadas.

Se eu tiver que responder a perguntas dessas não saberei mais como inventar. Terei sempre medo do que possam julgar de mim mesma.

É certo que eu não crio do nada mas também não sou eu quem está nos contos. É e não é! Podem alguns personagens ser os meus sonhos! Ou os meus pesadelos! Mas é atroz perguntar isso ao criador, pelo menos com a intenção com que o fazes.

É tabu.

Muitos meses depois esta mulher, escritora de fim-de-semana, deixou um bilhete de despedida na almofada do sofá do marido. Até hoje ele não sabe para onde ela foi. Tentou todos os locais prováveis mas não lhe encontrou qualquer rasto.

Por fontes que não vêm ao caso, vim a saber que ela viajou para o Cairo para se encontrar e passar a viver com o seu novo amor.

Mas não. Não pensem que este homem era um dos heróis das suas novas histórias, Também o marido abandonado pensou adivinhar que ela teria corrido para os braços de um desses personagens, confirmando as suas suspeitas.

Não. Na verdade, ao contrário, este homem entrou na vida dela depois de ter lido alguns desses seus textos e de estes, possivelmente, lhe terem revelado uma alma feminina pela qual se apaixonou.

Sei que vivem ainda no Cairo e que, ao que parece, ela continua a escrever mas agora fazendo disso profissão. Não sei é se escreve o mesmo tipo de contos.

Sei que foi assim que as coisas se passaram. Ou pensam que estou a inventar?

De facto, ao contar esta história já algumas pessoas me perguntaram:

– Acaso não és tu o personagem? Ou não és tu o marido de que falas?

– Não sei responder-te!

– respondi sempre – Essa tua pergunta não faz sentido porque não pode existir! Eu oiço a tua pergunta e eu penso que ela não se dirige a mim. Mas como insistes e eu vejo que queres mesmo uma resposta eu não sei que te dizer.

Como diria o outro se lesse isto: detesto histórias sem um beijo no fim!