Enquanto passavam na televisão imagens de pessoas acossadas como coelhos, num país distante, minúsculo e insignificante, porque após duas décadas de lutas e mortes acabava de expressar inequivocamente pelo voto (controlado por representantes de oitenta e tal nações) o que antes se vira obrigado a expressar pelas armas, ouvi este diálogo na churrasqueira em que me encontrava (quase de saída com o frango assado no saco de plástico), entre um casal de clientes e o empregado:
Cliente – Mas para que é que querem ser independentes? Estes gajos matam-se uns aos outros!… Olha para aquilo!… É pá! São uns selvagens! Eu tenho menos pena destes gajos do que do cãozinho que tinha lá em casa, que morreu atropelado, coitadito!
Empregado – Pois foi, o seu (não sei quê)… eu já tinha dito muita vez: qualquer dia fica debaixo dum carro…
Etc., etc.
Se eu fosse um historiador de renome, tudo faria para que estas palavras ficassem registadas para a posteridade, sobretudo as do dono do feliz cão que um dono destes tinha.
Seria este o meu contributo pela causa de Timor.
Mas não sou essa pessoa capaz de registar frases históricas. Por isso limito-me a manifestar a minha solidariedade como posso, como sinto, entupindo o e-mail de alguns presidentes ou espalhando palavras.
Gostaria muito de ser clarividente para saber o que fazer!
(- Timor? Já estava tudo planeado há muito tempo. Essas acções, agora, é só para tapar os olhos à malta)
Acontece sempre isto.
No calor de uma acção de grandes repercussões, seja para fazer face a uma calamidade natural ou económica, seja para recuperar uma zona destruída pelas cheias ou para dar casas dignas a quem morava em infernos de droga e marginalidade, nestes momentos surgem sempre certos clarividentes que nos abrem os olhos para o engodo destas actuações. São o que chamo “clarividentes da ocasião”.
(- Timor? Porque não se fez nada antes? Eles querem saber tanto de Timor como eu de caranguejos!)
Este tipo especial de clarividentes são pessoas superiormente elucidadas, detentores de uma quantidade invejável de informação oculta ao comum dos mortais, possuidores de uma argúcia raríssima que só a eles permite ver, no momento, a falsificação onde todos viam o brilho do ouro.
(-Timor ? Andam para aí com isso tudo mas é só por causa das eleições!! )
Os clarividentes do momento são peritos em detectar intenções eleitoralistas, jogadas de influências, objectivos obscuros, conspirações hediondas, interesses económicos inimagináveis, planos secretos… enfim, toda uma panóplia de instrumentos de acção que eles conhecem de trás para a frente, como as suas mãos.
Por isso surgem nas ocasiões críticas chamando à razão os ingénuos cidadãos que facilmente embarcam em apelos humanitários, em ideais de justiça ou em qualquer acção de massas, de cúpulas ou de bastidores quando está em causa algo que lhes toque o coração.
(- Timor? Onde é que já se viu apelar ao uso de roupa branca? De que serve isso? Vocês acham que vai resolver alguma coisa?)
É que os clarividentes não gostam de misturar o coração com os documentos oficiais. Governo é governo, humanismo é humanismo.
Isso é muito bom porque evita que as pessoas se desgastem em acções inúteis, percam tempo em coisas sem futuro quando podiam estar em casa a descansar.
Os clarividentes são muito úteis à economia nacional.
(- Timor? As eleições foram a única forma de resolver o problema de vez, pois já se sabia que era isto que ia acontecer e era isto que interessava para acabar de vez com a viabilidade da independência. A própria ONU se não sabia… devia saber. Foi tudo uma farsa!)
Chamo-lhes clarividentes do momento porque antes de surgirem as criticadas acções, eles não costumam pensar nesses assuntos, não se manifestam pedindo para que seja feito isto ou aquilo.
São pessoas simples, cidadãos comuns preocupados com as coisas práticas da sua vida pessoal, à margem dos dramas abstractos que são os que se passam com as pessoas que não conhecem ou povos de que eles não fazem parte.
O seu génio está em que, apesar desta aparente distanciação do mundo, mal é noticiada uma acção política ou social eles percebem, num ápice, o verdadeiro sentido da coisa, o sentido oculto que escapa aos indivíduos medianos.
(-Timor ? Oh pá! Foi tudo mal feito desde início! Não há hipótese.)
Mas… “helas”! Não há vela sem senão. A única qualidade que normalmente falta aos clarividentes do momento para serem seres perfeitos, governantes ideais, é que ao contrário das sua capacidades inultrapassáveis para detectarem o que está errado, não possuem a capacidade de saber o que está certo.
É uma pena. Não se sabe se é um problema biológico. Sabe-se apenas que raramente são capazes de mostrar às massas enganadas qual seria a acção correcta.
Nem sequer perguntam “Que fazer?”, como o outro. Parece até que não se preocupam com isso.
Decididamente, são peritos em crítica de arte mas não são artistas.
E é só por isso que, apesar da sua clarividência, as suas palavras caem muita vez em saco roto. É uma injustiça, claro… é uma pena! Mentes tão brilhantes assim desprezadas! Mas que fazer, se as pessoas preferem mostrar ao mundo a revolta que sentem e pedir socorro, mesmo sabendo que quem pode socorrer não o quer fazer, do que assistir no sofá à matança de toiros em Barrancos? Perdão, de pessoas em Timor?
Mesmo quando sabemos que não há nada a fazer… que a morte já lá vem… não será compreensível pedirmos, pelo menos, o milagre de que “algo” possa acontecer? Mesmo sendo ateus?
É como diz o outro: “Tens muita razão e falas muito bem, filho, mas para te ouvir não posso fugir do leão”.