por Jaime Pinho (Dirigente do PSR)
Sobressalto
NOTA: Esta crónica sobre Tróia foi escrita há três semanas. Entretanto, Timor submergiu tudo. O pensamento não consegue desligar-se do genocídio.
Decidimos entrar em greve de fome por
Timor, durante 24 horas. Aqui estou desde as 10 da manhã, na Praça do Bocage, com a Manuela, o Alfredo, o Carlos e o Pisco. Tento escrever raiva, vergonha, hipocrisia: Clinton, Blair, Jospin, Schröder, João Paulo II, Guterres (o tal que trata os líderes europeus por tu…)
Cito de memória o poeta timorense:
“Pedem-me um minuto de silêncio por Timor. Por Timor nem 1 minuto me calarei.”
A meio caminho em direcção à Comporta, situa-se o empreendimento SOLTRÓIA. Protegido por redes e arame farpado, só com autorização dos “seguranças” se pode entrar naquele domínio privatizado. Vivendas de um e dois pisos, rodeadas de relvados artificiais e muros, substituíram as dunas.
Caterpilars e escavadoras atiram-se às frágeis construções de areia feitas pelos ventos, fixadas pela vegetação, e num ápice fazem crateras para as fundações de novos edifícios, rasgam valas para enterrar infra-estruturas ou sustentar mais vedações. A ondulação dos cordões de areia é nivelada, arrasada, subjugada aos imperativos e às regras do betão.
A flora dunar é selvaticamente sacrificada aos interesses e à ignorância arrogante dos patos-bravos, que estrebucham alarvemente quando alguém lhes fala da importância de plantas como o ESTORNO para o equilíbrio daquele ecossistema.
A SOLTRÓIA é bem o laboratório do megaprojecto que a SONAE, com o nome de IMOAREIA, pretende implantar em toda a península. Contemplando o espectáculo natural formado pela Arrábida, pelo Sado e pela Tróia. Acorre-nos a imagem de um gigantesco tapete rolante que devora a serra, a transforma em cimento e a despeja do outro lado, esmagando os areais…
A pretensão da SONAE em triplicar o número de habitações da actual TORRALTA (numa primeira fase!) representa um rude golpe para a natureza. O ecossistema ficaria seriamente danificado. A pressão humana arrastaria o esgotamento rápido da água potável, já escassa, o saneamento básico provocaria a degradação generalizada das praias do rio e da costa, os muros e vedações inviabilizariam o habitat das espécies animais residentes ou migratórias.
Os projectos de arrasar as dunas de Tróia, travestidos de investimentos turísticos são, no fundo, descarados projectos imobiliários. O que estas empresas pretendem (SOLTRÓIA, SONAE, PESTANA), ao fim e ao cabo, é construir e vender depressa antes que os problemas e os protestos se façam sentir. O que pretendem é vender gato por lebre. Basta atentar no “escândalos” que se sucedem ao longo da costa portuguesa, com o estado a acorrer de emergência, com paredões e muros de protecção, tentando remediar, procurando pateticamente travar a erosão que o betão e o alcatrão aceleraram.
Ao pretender impedir o livre acesso da população a Tróia, acabando com as carreiras regulares de barcos, a SONAE faz uma clara provocação e uma ameaça à cidadania. Como se atreve Belmiro de Azevedo a insinuar que nós não temos “qualidade” para frequentar Tróia? Como é possível que a Câmara de Grândola (PCP) se transforme numa agência de relações públicas de um empresário? E o silêncio da Câmara de Setúbal (PS)? Turismo? De qualidade?
Não há qualidade devorando santuários da natureza. Não há turismo de qualidade nem paz social quando se separam populações, visitantes autóctones, quando se consideram “indesejáveis” as próprias pessoas!
Temos razões para não desesperar. À indignação popular, que se ouve e se sente, podemos acrescentar esses inesperados aliados que, pelo menos por uma vez, sepultaram nas areias de Tróia os vestígios de império romano: os ventos de areia e as investidas do mar.