Edição Nº 89 • 13/09/1999 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Plenário de trabalhadores na Setenave) |
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Por mais direitos e regalias Setenave mobilizou milhares de trabalhadores
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Teresa Rosa – Estava na Setenave, de cujo Conselho de Trabalhadores fazia parte. Fui um dos elementos que convocou o plenário desse dia, com o objectivo de discutirmos os problemas com que se debatiam todos os trabalhadores portugueses. Tinha havido a convocação de uma manifestação fascista para esse mesmo dia, e receava-se que a revolução fosse abafada perante esse movimento que teve origem no norte do país. Daí, a necessidade de convocar os trabalhadores para, em conjunto, reflectirmos sobre o que estava a acontecer e sobre as dificuldades com que os trabalhadores portugueses se deparavam, uma vez que muitos empresários tentavam descapitalizar e abandonar as respectivas empresas. SR – Como é que ocorreu um plenário deste tipo, numa empresa que não costumava mobilizar-se por razões exteriores à fábrica? TR – De facto, naquela altura a Setenave não era muito exemplar nas questões da solidariedade com os outros trabalhadores porque ainda não havia uma consciência operária desenvolvida. A maioria das pessoas tinha vindo do trabalho rural, muitas tinham acabado de chegar do serviço militar nas ex-colónias, e entraram na empresa sem terem uma consciência colectiva da situação do operariado. A excepção eram os que tinham vindo da Lisnave e da CUF, no entanto alguns deles vieram com uma certa ambição de promoção e, por vezes, isso levava-os a ficarem calados. Aquilo que se passava na Setenave era como que um prolongamento do que se passava na Lisnave, já que esta era a grande empresa do operariado revolucionário e reivindicativo. Acompanhávamos esse movimento com uma grande admiração pelo operariado da Lisnave e, simultaneamente, com uma grande mágoa porque os da Lisnave desprezavam um pouco os trabalhadores da Setenave. Achavam-nos retrógrados e reaccionários e essa mágoa dificultava uma unificação maior. Por outro lado, as pessoas estavam ainda muito centradas nos seus problemas internos, e foi a partir daquele dia que a Comissão de Trabalhadores começou a trabalhar para solidificar a consciência operária, partindo dos problemas concretos da empresa. Isto aconteceu em muitas empresas, na altura, e foi um trabalho posterior de algumas elites operárias que levou a que esta consciência se alargasse e que abarcasse o proletariado em geral. SR – Uma vez que a Setenave entrou em funcionamento pouco antes do 25 de Abril de 1974, pode dizer-se que os problemas laborais não eram muito significativos? TR – Tivemos alguns problemas, como foi o caso dos salários, e as reivindicações salariais mobilizaram muito os trabalhadores. Havia um leque salarial bastante grande e, por outro lado, o trabalho era muito violento porque não havia quaisquer condições. A seguir aos mineiros, o trabalho da reparação naval é o mais violento e naquela altura as pessoas tinham condições de trabalho muitíssimo duras. Pelo facto da empresa ser nova, os trabalhadores não se conheciam e tinham um certo receio quanto à forma como se deviam comportar perante os outros. Isso causou algumas dificuldades em criar hábitos de trabalho na empresa, que as pessoas não tinham. SR – Tendo sido uma das primeiras pessoas a entrar na Setenave, acompanhou todos estes problemas de perto? TR – Quando fui trabalhar para a Setenave, havia cem trabalhadores e uns anos depois já existiam sete mil. Entravam cerca de trinta por semana e era eu que os acolhia e lhes falava sobre o sindicalismo. A empresa estava interessada em que os trabalhadores começassem a ter algum activismo sindical porque era difícil dialogar com uma massa anónima. Tinha havido um primeiro movimento interno por causa dos horários e, nessa altura, a empresa deparou-se com uma dificuldade muito grande porque não sabia com quem dialogar, o que é que os trabalhadores queriam e como é que havia de responder. Portanto, eu tinha entrado para a empresa com o objectivo de fomentar a sindicalização e o trabalho sindical. SR – A vontade de fomentar o sindicalismo foi anterior ao 25 de Abril. Como é que se explica que, no antigo regime, uma empresa tenha este tipo de preocupação? TR – A Setenave surgiu da Lisnave e a administração tinha tido uma experiência muito dura com a greve de 1969, da qual resultaram grandes prejuízos para os trabalhadores e para a empresa. E este tipo de relações também não era bom para a gestão da empresa, sobretudo numa gestão que se queria liberal e moderna. E esta ideia vinha já dos anos 60 porque nessa época já existiam comissões de trabalhadores. Foi o caso da CUF, e embora muitos trabalhadores não tivessem confiança na Comissão, por acharem que era uma entidade fantoche, mais tarde tive oportunidade de falar com alguns dos seus elementos que me disseram que já faziam um trabalho importante naquela época. O presidente do Conselho de Administração era o José Manuel de Mello, que tinha já alguma experiência neste tipo de situação, pelo que não queria encontrar problemas como os que tinha encontrado na Lisnave na greve de 1969, onde não se sabia o que se queria nem se podia dialogar com as pessoas. Mas esta abertura não ocorria só na Lisnave, porque antes do 25 de Abril havia já uma tendência entre alguns empresários, no sentido de caminharem para o liberalismo económico. SR – Com uma gestão que tentava ser moderna e operários que não tinham ainda consciência de classe, como é que se viveu o 25 de Abril dentro da Setenave? TR – Com uma enorme alegria porque as pessoas ouviam falar muito em liberdade. A liberdade era muito importante para quem tinha medo de falar e as pessoas tinham a consciência disso. E esse medo também se sentia na Setenave porque quem sabia do espírito mais aberto da administração não eram os operários mas sim alguns trabalhadores, e entre eles estava eu, que era assistente social da empresa. Portanto, eles tinham medo de qualquer medida da administração, até porque associavam a empresa ao Salazar e à PIDE. O 25 de Abril provocou uma enorme alegria pela liberdade e, ao mesmo tempo, algum medo do que poderia vir a seguir e quem é que constituía o movimento que fez o golpe militar. Mas nessa altura as pessoas estavam muito individualizadas, ainda não havia muita consciência colectiva. Ao nível dos partidos, havia o PCP que tinha alguns elementos na empresa mas eles próprios não tinham uma consciência política e social muito desenvolvida. Pouco se conheciam, distribuíam o Avante e o Militante e pouco mais faziam. SR – Que mudanças é que o 25 de Abril provocou na Setenave? TR – O 25 de Abril também significava viver melhor, pelo que os trabalhadores partiram para as reivindicações. Um dia ouviram contar que tinha saído um comunicado do general Spínola a dizer que ia acabar a possibilidade de fazer reivindicação salariais, e de imediato concentraram-se todos na praça central da fábrica para exigir aumentos salariais. Esta foi a primeira grande movimentação dos trabalhadores da Setenave que durante 15 dias fizeram greve e ocuparam a empresa. Esta luta foi muito difícil porque não havia organização nenhuma e a administração não podia conversar com cerca de mil pessoas. No entanto, lá apareceu um operário que se conseguiu impor à massa anónima de trabalhadores, e pelo facto de ter vindo da Lisnave, de ter já uma experiência nestas coisas e de ter um bom relacionamento com os colegas, conseguiu dar início ao diálogo. Era Fernando Almeida, que mais tarde veio a ser um grande líder dos trabalhadores. Ele conseguiu impor-se e, em conjunto com outros trabalhadores, negociou as reivindicações. No entanto, as reivindicações ficaram dependentes daquilo que se viesse a negociar na Lisnave. Foram feitos contactos com os trabalhadores da Lisnave, no sentido de coordenarem as reivindicações e ficou assente que o que fosse negociado para a Lisnave ficasse também negociado para a Setenave. SR – Foi aí que nasceu a primeira Comissão de Trabalhadores? TR – A administração propôs a criação de uma Comissão de Trabalhadores, que acabou por ser aceite. Todavia, ela durou pouco mais de um mês, porque um sector da empresa ficou descontente quanto ao facto da composição da Comissão ter sido sugerida pela empresa. Com o apoio do PCP, criou-se um movimento para destituir a Comissão e criar outras noutros moldes e que obtivesse maior confiança dos trabalhadores. Assim, em Julho de 1974 foi criado aquilo a que se chamava Conselho de Trabalhadores da Setenave. SR – A actividade reivindicativa dos trabalhadores da Setenave durou até quando? TR – Com plenários e moções durou todo o tempo em que lá estive, ou seja, até 1985. No entanto, os plenários mais selvagens e aguerridos foram até aos finais de 1975. A partir daí, entraram comissões de trabalhadores mais ligadas a partidos políticos e as coisas mudaram um pouco. SR – Foi difícil gerir o equilíbrio de forças entre os partidos dentro da Setenave? TR – Bastante difícil e vim mesmo a sofrer algumas consequências dessa luta partidária. Nesse conjunto de trabalhadores que formou o Conselho nem todos eram do PCP, e mesmo os comunistas que lá estavam não tinham ainda uma actividade partidária significativa. Prevalecia uma mentalidade revolucionária quase pura, era a altura da luta pela emancipação dos trabalhadores. Mas houve uma altura em que se deu uma ruptura da Comissão de Trabalhadores com o PCP e isso veio a causar grandes problemas. A ruptura ocorreu quando a Comissão entendeu que era altura de criar um sindicato para a construção naval, mas como essa tinha sido uma iniciativa do tempo dos Mello na Setenave, muito combatida pelo Sindicato dos Metalúrgicos, o PCP entendeu a ideia como um retomar das intenções dos Mello e não gostou. Decidimos fazer uma reunião alargada para discutir a ideia mas notámos que as pessoas encarregues de marcar as reuniões não o faziam. Exigi que me dissessem o que se estava a passar e um dos elementos, que era do PCP, disse que o Partido Comunista os tinha proibido de dar andamento às reuniões e tinha também proibido esses elementos de o comunicar à Comissão de Trabalhadores. Gerou-se a desconfiança, exigiu-se uma tomada de posição desses elementos e isso levou a que seis deixassem o PCP. Foi uma ruptura enorme e a partir daí, o PCP passou a atacar-nos muito. O PS não tinha credibilidade nenhuma na altura e o PPD ainda chegou a fazer um comunicado mas foi o último porque não tinha qualquer expressão. Entretanto, os gestores fizeram uma reunião e, mais uma vez, mostraram-se solidários com a Comissão. Os trabalhadores tinham assumido um enorme protagonismo na empresa e os gestores estavam conscientes disso. SR – Esse poder foi-se perdendo com o tempo? FR – Foi desaparecendo aos poucos e lembro-me bem de que, naquela altura o nosso poder era tão grande que a empresa não tomava uma única decisão quanto à gestão sem consultar os trabalhadores. Mais tarde, esse poder foi-se perdendo e a segunda Comissão já não era como a primeira, era constituída por representantes de vários partidos da extrema esquerda e mesmo um pouco anárquica. Entretanto, as pessoas tinham-se filiados em diversos partidos e andavam todas a fazer a política dos partidos a que pertenciam. Cada um achava que tinha a sabedoria toda e isto veio a provocar grandes divisões internas e um certo enfraquecimento dos trabalhadores. Quando ocorreu o 25 de Novembro, a Comissão de Trabalhadores já estava enfraquecida e as pessoas ficaram receosas e desmotivadas. E o PCP, que sempre tentou tomar a Comissão, conseguiu mesmo toma-la. SR – A 25 anos de distância, como é que vê os acontecimentos? TR – Foi uma época de grande entusiasmo e de uma enorme capacidade de trabalho. Foi também uma época desgastante e traumatizante que me atirou para a cama durante cerca de sete meses. E estou convencida de que o facto de ter ido parar à prisão, em 1984, durante seis meses, como suspeita de pertencer às FP 25 de Abril, está relacionado com este período e com as acusações que me foram feitas. Foi uma época com pouca racionalidade, com uma grande dose de emotividade mas também com muita generosidade e espírito de sacrifício para que os trabalhadores pudessem ter direitos e serem seres humanos completos. SR – Está arrependida de ter participado na luta dos trabalhadores da Setenave? TR – Apesar de todos os problemas que isso causou, não estou nada arrependida. Antes disso, tinha sido sindicalista e sofri com a repressão e a prisão de muitos colegas. Não estou nada arrependida do que fiz, mas se soubesse o que sei hoje talvez tivesse feito coisas um pouco diferentes. Mas, com o que sabia naquela época provavelmente faria o mesmo. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |