[ Edição Nº 90] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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Edição Nº 9020/09/1999
fcameira1-8854643 É COMO DIZ O OUTRO
por Fernando Cameira (artista plástico
e músico do grupo In-Situ)

Neologismo
– ainda TIMOR LORO SAE

          Sem darmos por isso uma nova palavra universal surgiu e ainda está quente, ainda se vê o brilho da sua explosão. Infelizmente não é o brilho de uma estrela que nasce mas o da explosão de uma estrela que morre.

Poderia continuar a explorar esta metáfora mas nem sequer tenho paciência para tal, mesmo sendo esse um dos meus papeis ao pretender fazer algo parecido com literatura. Preciso explicar já as coisas em que penso muito claramente.

Timor é uma estrela que morre. Não quero fazer o discurso fúnebre de uma nação. A nação Timor vai sobreviver, com dificuldades imensas mas vai sobreviver. O país Timor também. Sem dúvida. Mas o ideal que Timor representava, a última oportunidade de acreditarmos em certos valores, esses morreram definitivamente.

Porque num processo de libertação, talvez o mais exemplar a todos os titulos, falham da maneira mais vergonhosa os mecanismos mais básicos com que nos pretendem convencer que já não vivemos no Império Romano.

Porque foi um processo de libertação exemplar?

  • Porque em Timor, quando finalmente o mundo chama a si a responsabilidade de aplicar os mecanismos da democracia e os aplica, os timorenses mostram de um modo inequívoco que não é um bando de libertários armados que quer a independência mas a sua população (e não me venham dizer que não votaram 100% na independência pois esse número não existe em votação alguma sobre assunto algum).

Perante tudo isto, perante um processo em que ninguém de boa fé poderá apontar um dedo a este povo, aos seus homens armados, à sua luta (fale-se de qualquer outro movimento de libertação, na ETA, no IRA, no Arafat, etc., etc.. e logo surgem as opiniões mais diversas) que reserva o mundo a quem acredita nas promessas de protecção para jogar limpo, aceita, arrisca a vida e ganha o jogo democrático? Como foi a festa naturalmente esperada?

Um espectáculo de circo romano, visto pelos olhos molhados de todo o mundo, em que os cristãos vestidos de timorenses pagam o preço do seu acto corajoso estraçalhados pelas garras e dentes das feras vestindo peles de milícias, numa arena chamada Timor, perante os aplausos e risos dos romanos fardados de exército indonésio.

Os que se diziam a autoridade do mundo, garantes da justiça, com credenciais firmadas em outras arenas, baixam os braços perante a fúria do mau perdedor. De novo a Indonésia marimbando-se para o mundo. Para a democracia. Para os valores. Para as promessas. Para o jogo limpo.

A Indonésia mandou o resto do mundo à merda! E o resto do mundo foi! E ainda está a ir, hoje mesmo, quando o todo-poderoso até já deu autorização para que o mundo avance. O mundo que tanto clamou, está em reunião para saber como vai avançar. Ao contrário do que acontece quando o mundo quer, quando tudo está preparado mesmo sem se saber se virá a ser necessário.

Dizem que não podem fazer nada sem o consentimento da Indonesia. Pedem à Indonésia que os deixe intervir. Tradução: Dizem que não podem defender os crucificados sem autorização dos crucificadores. Pedem ao assassino para chamar a polícia.

Note-se: eu até sou uma pessoa de boa-fé. Até posso fingir que acredito na validade destes formalismos jurídicos do direito internacional, que não vou repetir porque todos conhecem. Sim senhor, digamos que não se podia mesmo fazer o que se impunha, aquilo que todo o mundo pedia, que milhões de pessoas no mundo exigiam com gritos, com panos brancos, com velas, com e-mails, com tudo e mais alguma coisa, numa das mais fantásticas e emocionantes demonstrações de solidariedade, de unidade num ideal, já vistas. Digamos que por muito que custasse não se podia legalmente fazer nada.

Mas então, meus senhores… isso só prova que afinal… a democracia, a justiça, a segurança… não está nada garantida. Não funciona quando deve mas quando se quer. Porque quando se quer… há sempre bons advogados que dão a volta ao texto da lei. Não se poderia ter inventado uma rede de cocaína gigantesca na Indonésia? Ou umas bombas nucleares em subterrâneos? Depois da intervenção pedia-se desculpa, e tal… que afinal não havia nada mas parecia mesmo que havia…

Pelo amor de Deus! Continuamos a depender, em última instância… de um ou dois homens no mundo. Como no Império romano.

Por isso Timor é agora um neologismo. Em qualquer língua do mundo esta palavra, sempre a mesma, escrita da mesma maneira, veio simplificar a comunicação pois passa a significar frases como:

Armadilha bem pensada e disfarçada Ingenuidade que se paga com a vida Vergonha pelo que se faz em nosso nome Impotência perante a arrogância Gritar por socorro ao protector e este não se mexer Não poder responder, vendo morrer, para não fazer o jogo do assassino O mundo é dos grandes Falhar no momento da verdade Negação de um ideal A vida dos pequenos não tem valor Que me dás para te defender? O dinheiro fala mais alto que a justiça Mesmo para evitar um genocídio há que respeitar a lei

Para além de passar a ser sinónimo de palavras simples como:

activas: Traidor, Vergonha, Criminoso, Ódio, Assassino, Animal, Primitivo, Bárbaro, passivas: Traído, Perplexo, Sofrido, Morto, mistas: Impotente, Cínico, Estratega, Burocrático, Inoperante,

Ao contrário do que diz o outro: Uma nova palavra vale mais que mil imagens.