Edição Nº 90 • 20/09/1999 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(Tomada de posse do Governador Civil) |
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Primeiro Governador Civil após a revolução Fuzeta da Ponte diz que fez o melhor que podia O primeiro Governador Civil do Distrito de Setúbal após a revolução de Abril de 1974 tinha por missão preparar a população para as primeiras eleições livres. Uma tarefa que Fuzeta da Ponte diz ter sido cumprida mas que admite ter sido difícil tendo em conta a agitação provocada pelas forças de extrema esquerda. 25 anos depois dos acontecimentos que envolveram a morte de um cidadão, o almirante recorda todo aquele período conturbado da vida do distrito de Setúbal. |
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Fuzeta da Ponte – Estava a ser empossado pelo então ministro da Administração Interna, coronel Costa Bráz, como Governador Civil do distrito de Setúbal. SR – Como é que chegou a esse cargo? FP – Por duas razões muito importantes. Primeiro porque já antes do 25 de Abril tinha colaborado, embora de uma forma modesta, em acções conspiratórias e não fazia sentido que, quando solicitado, recusasse participar no novo regime. Segundo porque era de Setúbal e sabia que era difícil arranjar alguém de Setúbal para o cargo. Por isso aceitei o cargo, embora soubesse que era difícil porque não tinha praticamente nenhuma preparação política e este distrito era, como se sabe, um distrito bastante complicado. SR – Até então, alguma vez lhe tinha passado pela cabeça vir a ocupar um cargo destes? FP – Nunca tal me tinha passado pela cabeça e só aceitei porque o objectivo principal que me foi proposto foi o de garantir condições para a realização de eleições livres, as primeiras em Portugal. SR – Quando tomou posse, que cenário encontrou em Setúbal? FP – Logo de início encontrei a contestação completa de todas as comissões administrativas. Elas não queriam aceitar a minha nomeação, até porque tinha havido uma reunião de todas as forças políticas e queriam ser elas a indicar o nome do governador. Portanto, a primeira reacção foi uma reacção de desagrado, com que eu já ia a contar, e por isso a minha primeira acção foi visitar todos os concelhos para me inteirar dos problemas. Isto porque o nosso distrito é uma manta de retalhos, com uma zona urbana, uma zona de cintura de Lisboa, uma zona ribatejana e outra alentejana, esta onde havia um problema muito especial, que era o da zona de Sines. Era um distrito de uma enorme diversidade que eu quis, desde logo, perceber ‘in loco’, pelo que iniciei imediatamente um conjunto de visitas, acompanhado pelas comissões administrativas. SR – Quais eram as principais preocupações das comissões administrativas? FP – Eram muito diversificadas, porque o distrito é extraordinariamente diversificado e não tem unidade nenhuma. Os principais problemas eram talvez os relacionados com as construções clandestinas, que ainda hoje é um problema muito importante no distrito. Todas essas áreas clandestinas, que ainda hoje existem, acumulavam uma série de carências, o que fez com que, num período em que surgiu a liberdade, tudo se transformasse em exigências imediatas. Outro problema muito sério foi o de Sines, que era uma vila muito pacata, de tradição piscatória e com hortas muito bonitas, e de repente foi transformada num elefante branco com a construção do porto, que tinha uma concepção baseada de que a rota do petróleo havia de passar por lá. Daí que a área de Sines tivesse sido completamente alterada em relação à sua estrutura inicial e as pessoas tivessem sido afastadas do seu modo de vida, com graves consequências sociais. Estes eram os problemas principais, para além dos que apareciam naturalmente mas que eram sempre apresentados de uma forma muito violenta. SR – Entre eles estavam as situações de ocupações de casas e de herdades, as manifestações, as concentrações e toda a agitação conhecida dessa altura? FP – O que fiz foi uma análise dos problemas de fundo que existiam e que, enquanto Governador Civil, tinha obrigação de ajudar as câmaras a resolver. Evidentemente que se vivia um período político de enorme instabilidade no país e, logo após ter tomado posse, aconteceu o 28 de Setembro que deu origem às célebres barricadas de cidadãos que queriam impedir o avanço da reacção, entre aspas. Eu próprio fui mandado parar várias vezes e, mesmo sabendo que eu era o Governador Civil, insistiam para que o meu carro fosse revistado. Havia um espírito altamente perturbado de grande agitação política, e sendo o distrito de Setúbal uma zona muito politizada, onde as forças políticas de esquerda tinham largas tradições, não esqueçamos que foi no Arsenal do Alfeite que teve origem o PCP, havia depois um conjunto de partidos de extrema esquerda que perturbavam brutalmente o próprio PCP, acusando-o mesmo de aspectos revisionistas de direita. Os comunistas tinham um objectivo muito claro em relação ao que esperavam da revolução, e que não era sempre coincidente com o programa da Forças Armadas, mas estavam muito organizados na busca desse objectivo e depois eram surpreendidos por partidos como o MRPP ou a UDP, que em sítios como a Setenave não lhe permitiram obter o poder nem o controle da situação. Eram partidos com uma capacidade de agitação espantosa, o que tornava todos os problemas muito sérios, pois até a simples mudança de uma torneira podia ser considerado um problema político e a solução que se encontrava podia facilmente ser considerada reaccionária. Isto exigia muito do governador civil, que tinha, como disse, a principal preocupação de garantir as condições de segurança e estabilidade essenciais para a realização das eleições, mas que tinha que estar permanentemente a apagar fogos. Era o caso das ocupações de casas e de terrenos, que feitos de uma forma completamente ilegal eram apresentados como direitos revolucionários que, não existindo, eram muito difíceis de contrariar. SR – Tendo como principal missão manter a ordem na região, de que meios dispunha? FP – Essa era a minha principal angústia, pois tendo formação militar e vendo a minha própria terra a ser vitima desses desacatos, como Governador Civil eu não tinha meios nenhuns. Recorri então ao meu estatuto de militar e, como tinha o apoio do MFA, reunia semanalmente com todas as unidades militares do distrito e distribuía tarefas para apagar incêndios. Isto é, tinha um corpo de ‘bombeiros’ que eram a Escola de Fuzileiros, o Regimento de Infantaria de Setúbal e a Base Aérea 6, de maneira que eram eles que iam ‘apagando’ os focos de conflito que iam surgindo. Ou seja, mercê da minha condição de militar, eu conseguia resolver alguns problemas. Não resolvi todos mas consegui reduzir e atenuar muita da loucura que na altura tomou conta do distrito, de usurpação e de violação de alguns valores essenciais da vida das pessoas. SR – O espírito revolucionário também atingiu as forças armadas, provocando mesmo algumas divisões internas. Isso não perturbou o cumprimento das tarefas que lhes destinava? FP – Na Base Aérea 6 houve vários problemas, nos próprios fuzileiros houve sisões e divisões entre os militares mais progressistas e os menos progressistas, o que fazia com que a sua actuação também não fosse linear. Mas não obstante essas divisões internas, ao nível do distrito de Setúbal, de uma forma geral as missões que foram atribuídas por mim enquanto governador/militar, nunca foram comprometidas. E não haja dúvidas de que se assim não fosse, não tinha havido estabilidade e não tinham havido eleições. É claro que muitas vezes tinha que se esperar e que se consentir um pouco, mas as tarefas só não eram cumpridas quando daí podiam resultar consequências muito graves ou problemas muito mais sérios do que aqueles que se pretendia resolver. SR – Nunca teve casos de insubordinação em relação a ordens que tivesse dado? FP – De forma nenhuma. Tive casos foi de os militares virem ter comigo a dizer que não podiam cumprir determinadas tarefas porque, para o fazerem, teriam que desencadear acções de tal forma violentas que seria necessário oficializar a operação. Este era um circuito informal em que o pedido do Governador Civil era feito directamente à unidade e, nesses casos, teria o problema que ser posto à Junta de Salvação Nacional que poderia então mandar intervir o COPCON ou uma força institucional que pudesse actuar. Mas houve sempre uma grande espontaneidade de actuação das forças a meu favor e dou-lhe o exemplo de quando uma astronauta russa visitou Setúbal e foi recebida na câmara. Quando cheguei lá, vi a bandeira da Rússia içada e não havia bandeira nacional, nem sequer havia o hino nacional. Demiti imediatamente a comissão administrativa e o seu presidente, mas isso não foi muito bem aceite e mais tarde houve uma reunião tumultuosa na Câmara Municipal de Setúbal acerca dessas demissões, tendo eu sido convidado a participar. Embora inicialmente tivesse dito que não ia, porque não achava interesse tendo em conta que era uma reunião da câmara e da comissão administrativa, eles insistiram tanto que lá fui e acabei por ser sequestrado, já que não me deixaram sair quando quis embora. Os fuzileiros souberam que eu estava lá e foram buscar-me. Tive sempre as forças armadas a darem-me um apoio extraordinário que levou mesmo a resolver situações que, de outra forma, não teria a mínima hipótese de as resolver. SR – Apesar das dificuldades, foi-lhe possível preparar Setúbal para as primeiras eleições livres? FP – O principal objectivo foi atingido, o de criar as condições para a realização das eleições, pois haviam forças que não estavam verdadeiramente preparadas para esse desafio. Tinham um grande poder de agitação e de mobilização que podia não se reflectir em votos expressos. Eu tinha muito receio de que essas forças pudessem comprometer a realização das eleições e daí a aliança com os meus camaradas militares. O certo é que desde o dia 18 de Setembro, em que tomei posse, até ao dia 25 de Abril de 1975, quando se realizaram as eleições para a Assembleia Constituinte, esses partidos ficaram convencidos que não deviam fazer tentativas de comprometer o acto eleitoral. A minha grande satisfação é essa, a de que fui para Setúbal com o objectivo fundamental, primário e substantivo de criar as condições para a realização das eleições e isso foi conseguido, sem dúvida, ao serviço de Portugal e de Setúbal. SR – Nas eleições de 1975 esses partidos à esquerda do PCP acabaram por não ter em votos a expressão real das actividades que desenvolviam no terreno. A que acha que se deveu isso? FP – Recordo-me que uma das tarefas mais penosas e extremamente difíceis que eu tinha era a de reunir no salão grande do governo civil os partidos concorrentes a essas eleições para acertar os pormenores de campanha. Eram 16 partidos, na maioria de extrema esquerda, tumultuosíssimos, que queriam todos as mesmas casas nos mesmos dias e nas mesmas horas e eu tinha que os conseguir harmonizar. Desses 16 partidos quem é que conseguiu representação na assembleia? O PPD, de quem a sede em Setúbal era incendiada dia sim dia não, por ser considerada uma força perigosa de direita, o PCP, o PS e a UDP. Ou seja, desses partidos de extrema esquerda, apenas a UDP conseguiu eleger um deputado. Mas o mais surpreendente em termos de representatividade em relação à força no terreno, foi o Partido Comunista ter ficado bastante abaixo do PS. SR – Depois dessas eleições, e depois de ser medido o peso real das forças políticas, as coisas não acalmaram no terreno? FP – Não, porque essas eleições, como diziam os partidos mais extremados, eram um processo burguês e não um processo democrático que interessasse às forças ditas progressistas. Por isso, ao aperceberem-se da derrota, ainda antes das eleições, prepararam uma série de episódios bastante fortes que pretendiam evitar as eleições, entre os quais se inclui o 11 de Março, que há quem diga que foi um golpe da esquerda, há quem diga que foi da direita, mas que deu um avanço perigosíssimo à esquerda e que levou depois às nacionalizações. Só por força de um grupo de grandes resistentes, entre os quais gostava de me incluir, é que se conseguiu fazer as eleições. Em Setúbal deu-se um episódio extremamente grave a 7 de Março, onde morreu uma pessoa, e culparam-me por ter mandado a polícia intervir. O Governador Civil é o representante do Governo e se este era de coligação eu representava todos os partidos da coligação. O PPD pediu para fazer um comício no Clube Naval Setubalense e as forças progressistas não queriam. Fui avisado, fui ameaçado, e o comício terminou com um desacato, com uma invasão e com um incêndio. A polícia tinha instruções para levar até ao limite a manutenção da ordem, mas acabou por ter que recolher às instalações na avenida Luísa Todi, apedrejada e insultada. Quando reagiu, atirou para o ar para dispersar os manifestantes e acabou por morrer uma pessoa. Fui imediatamente culpado disso, embora tentasse governar sempre com o leme a meio. Mais tarde, descobriu-se que o homem morreu com um tiro nas costas e de um calibre que não coincidia com o das armas da polícia. Isto levou muito tempo a ser descoberto e fez com que eu não saísse do cargo logo após as eleições de 25 de Abril. Não saí porque pendiam sobre mim acusações muito graves e até isso estar completamente esclarecido não deixei o cargo, o que vim a fazer só em julho de 1975, quando tomou posse o V Governo Provisório, que pertencia essencialmente a um só partido e com o qual eu não quis pactuar. Saí então com nove quilos a menos, com o principal objectivo plenamente concretizado, que foi a realização das eleições, e com uma tristeza muito grande por não ter conseguido estabelecer a ordem, como gostaria de ter feito, embora sem qualquer peso na consciência por estar seguro de ter levado ao limite tudo o que poderia fazer, incluindo a aliança com os militares, que foi essencial para aguentar todas as diabruras que se praticaram. SR – Nem essa morte de 7 de Março lhe ficou a pesar na consciência? FP – Tenho muita pena que tenha havido uma morte, mas quanto a mim isso foi uma maquinação sinistra muito grave, com o fim objectivo de tirar a polícia de Setúbal, como acabou por vir a acontecer. Sofri ameaças gravíssimas e muito sérias, mas não aceitei nunca sair do cargo com uma acusação dessas sobre mim. Mesmo que a polícia tivesse disparado sobre o homem, eu nunca teria responsabilidade directa, mas podiam dizer que tinha incentivado a polícia reaccionária, como a chamavam, a atirar sobre as forças progressistas, mas nem isso eu quis que ficasse por esclarecer, o que me levou a prolongar um pouco mais a minha estadia como governador civil, até Julho de 1975. SR – Já assumiu que não conseguiu fazer tudo o que desejaria no cargo de governador civil. Isso foi compreendido pelo Governo em Lisboa? FP – Pelo Governo julgo que sim. Não acredito é que tenha a compreensão de toda a gente do distrito, já que entendo que uma pessoa a quem tiram uma casa ou uma propriedade e só a veja devolvida uns anos mais tarde, possa perdoar seja a quem for. Mas tenho que viver tranquilo com isso. SR – Essas pessoas foram bater-lhe à porta? FP – Nem por isso. Eu sou de uma família conhecida de Setúbal, que muitas dessas pessoas conheciam, mas nunca me vieram dizer nada. Acredito que alguns até julguem que eu podia fazer mais do que fiz, mas nunca tive nenhuma queixa. Sei que ficaram tristes, sei que tinham direito de ser melhor servidos, mas sinceramente, não consegui fazer melhor. Agora desculpem a imodéstia, mas duvido que outros pudessem ter feito melhor. SR – Fez inimigos durante esse período? FP – Devo ter feito imensos, mas só quem não faz nada é que não faz inimigos. No entanto julgo que nunca fiz inimigos em Setúbal, daqueles que me viessem perseguir ou que me lançassem acusações. Pelo menos nunca me apercebi disso, nem nunca me aconteceu terem vindo acusar-me directamente de ter feito isto ou aquilo enquanto era Governador Civil. SR – Que marcas lhe deixou este período, já que voltou à sua carreira militar e nunca mais voltou a intervir na política activa? FP – Foi um período extraordinariamente penoso. Saí de minha casa no dia 18 de Setembro para tomar posse, julgando até que manteria a minha residência em Lisboa, mas três semanas depois acabou a minha mulher por fazer a mudança para Setúbal, onde passámos a viver na residência do Governador Civil, meio acampados. A ideia que me fica é de uma enorme pressão, uma constante pressão resultante da noção de que tudo o que se estava ali a passar era um momento histórico importantíssimo e nós devíamos tentar dar a nossa melhor colaboração, quer colaborando com certos movimentos, quer opondo-nos ferozmente a outros. Aprendi muito, sobretudo do que é o jogo político, e especialmente vivendo no meio de uma revolução, que é uma experiência que eu nunca mais esqueço. Teria sido essa experiência útil para o restante da minha vida? Não foi muito porque não segui a carreira política, mas acabou por ser importante quando atingi o topo da carreira militar e, principalmente, quando cheguei a Chefe de Estado Maior da Armada e Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, onde há muitas relações com o poder político. Aí deu um certo jeito porque a política é sempre a política. SR – Alguma vez se arrependeu de ter aceite o cargo de Governador Civil de Setúbal? FP – Não posso dizer que se soubesse na altura o que sei hoje, voltava a aceitar ser Governador Civil de Setúbal, mas acho que fiz bem. Quando alguém como eu achava que o regime anterior, apesar de ter coisas boas e coisas más e de eu não o negar completamente pois vivi 40 anos nesse regime, estava a insistir numa situação que me parecia insustentável, que era uma guerra de 14 anos nas ex-colónias, e que entendia que a solução não poderia ser militar mas política, tendo mesmo participado em acções conspiratórias, não podia ficar bem com a minha consciência se recusasse a tarefa que me estavam a solicitar. Ficaria sempre a pensar que tinha fugido a uma situação porque ela era difícil, e isto para um militar é extremamente penoso. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |