Edição Nº 91 • 27/09/1999 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(Barricadas contra o golpe de 28 de Setembro) |
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Movimento de contra-revolução ‘abortou’ Setúbal levantou barricadas nos acessos a Lisboa Na madrugada de 28 de Setembro de 1974, a população de todo o distrito de Setúbal saiu à rua para impedir o aparecimento do anunciado movimento contra-revolucionário. Fernando Rodrigues, então dirigente do MDP, foi um dos responsáveis pela acção que isolou todos os acessos à capital. 25 anos depois, recorda a mobilização de milhares de operários e as perseguições a Alpoím Galvão, tido como um dos mentores do movimento reaccionário. |
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Fernando Rodrigues – Estava em Setúbal porque, juntamente com o coronel Pontes Miquelina, o então capitão Reis Moura e outras pessoas que hoje têm uma posição política completamente diferente, fazia parte do grupo que geria as informações recebidas, o Centro de Informações Militares. Muitas coisas não se fizeram mal feitas porque tratámos as informações com correcção e sem sectarismos e, se nos tivéssemos deixado influenciar por grupos com atitudes mais precipitadas, a quem se designa de extrema esquerda, talvez tivessem surgido problemas mais complicados. Nesse dia 28 de Setembro já eu tinha informações, vindas uns dias antes, da existência de um movimento contra-revolucionário e de nomes de pessoas que tinham sido contactadas pelo ELP, um grupo contra-revolucionário, ainda em formação. Este movimento, que se dizia ser feito por gente como Alpoím Galvão, Sanches Osório e António de Spínola, estava a contactar pessoas do distrito para exercerem funções concretas caso o ELP fosse em frente. Não sei onde andam esses documentos, mas sei que se aparecerem à luz do dia vão comprometer muita gente porque ali andam os nomes de muitas personalidades que hoje ocupam cargos nas autarquias e nos organismos públicos. Entretanto, espalharam-se as informações sobre a tentativa de movimentação de gente ligada ao ELP, vinda do norte, do centro e do sul do país em direcção a Lisboa. E num acto espontâneo, a classe operária saiu das fábricas e começou a organizar as barricadas para travar essas forças contra-revolucionárias. SR – Quem é que promoveu a realização essas acções? FR – Foi praticamente um movimento espontâneo e nem sei quem começou primeiro. Era preciso demonstrar que os operários estavam com o MFA e resolvemos contactar os oficiais de serviço na Cova da Moura, como o Durand Clemente e o capitão Lopes. Dissemos qual era a nossa intenção e eles não desaconselharam, tendo apenas pedido muita prudência para que não houvesse violência. Portanto, aos dirigentes do MDP, pedia-se para que tivessem uma intervenção que não gerasse violência. A mobilização dos operários, como o pessoal da IMA, da Sécil, da SAPEC e da Setenave, começou na noite anterior e pelas quatro ou cinco da manhã de dia 28 já estávamos na estrada a formar as barricadas. Foi muito emocionante porque eram milhares de homens, mulheres e crianças a descerem pela cidade, num movimento muito forte de pessoas solidárias na luta contra o fascismo. E o mesmo aconteceu por todo o distrito, com as pessoas da Lisnave e de várias fábricas da margem sul a movimentarem-se espontaneamente para impedirem a contra-revolução. Foi um movimento que mobilizou toda a gente, e eram mulheres e crianças a darem-nos comida e tudo o que foi necessário para aguentarmos as mais de 48 horas de duração das barricadas. SR – A decisão foi participada ao Governador Civil do distrito? FR – Fuzeta da Ponte foi o primeiro Governador Civil empossado após o 25 de Abril e sempre mantivemos muito boas relações. Confiava tanto em mim que, numa altura em que se falava em nomear um vice-governador ele dizia que tinha de ser eu a preencher o lugar. Não o informámos propriamente do que íamos fazer, apenas lhe disse que a revolução corria perigo e que não confiava nas forças de segurança que lhe guardavam o edifício, pelo que ia colocar gente nossa à porta do Governo Civil. E ele consentiu que isso fosse feito. SR – A barricada feita à porta do quartel do Regimento de Infantaria11 foi feita porque não confiavam nos militares? FR – Há coisas que não se conseguem controlar e na altura não se sabia de que lado estava o comandante do quartel, embora houvesse um grupo de oficiais declaradamente com a revolução. Depois do 25 de Abril eles simplesmente fecharam as portas e não contactaram com ninguém, à excepção de alguns oficiais que tentavam dar uma imagem diferente do quartel. Lembro-me muito bem de, no dia 25 de Abril, ter escrito uma carta ao comandante do quartel do 11 dizendo que estava com a revolução e que estava disponível para colaborar com os militares. E ele mandou-me a seguinte resposta: “Se precisar chamo-o, se não precisar prendo-o”. Ou seja, em nosso entender, era uma tropa que não merecia confiança, razão pela qual nos socorríamos sempre dos militares de Vale de Zebro e da Base Aérea do Montijo. SR – Que funções tinham os elementos que formavam as barricadas? FR – Durante os dois dias em que duraram as barricadas, a nossa missão era mandar parar os carros e revistá-los para saber se haviam armas. Encontrámos muita gente com muitas pistolas e caçadeiras e muitas caixas metálicas com munições. Diziam que iam para a caça mas ninguém acreditava nisso, portanto pedíamos os nomes às pessoas, retirávamos as armas e entregávamo-las à guarda dos militares que nos vieram ajudar. Recebemos o apoio de uma coluna de militares de Vale de Zebro nas principais barricadas instaladas nas vias de acessos a Lisboa. Foi como que uma cobertura pseudo-legal à nossa intervenção. SR – Durante a realização das barricadas, foram confrontados com actos de violência? FR – Ocorreram vários episódios negativos que só não descambaram em violência porque o pessoal das barricadas estava consciente das suas funções. Lembro-me de um indivíduo, na barricada do Outão, que não parou o carro e tentou atirá-lo contra as pessoas que faziam as barricadas e que o mandaram parar. Houve casos em que se chegou ao insulto e às ameaças de que iríamos pagar o que estávamos a fazer. E ainda hoje há pessoas que me ameaçam. SR – Foi nessa altura que se deu a perseguição a Alpoím Galvão? FR – Dias depois do 28 de Setembro surgiu a informação de que ele andava pela região, mas isso não se confirmou porque ele tinha um carro muito potente que circulava por aqui e por ali. Nós tentávamos apanhar-lhe o passo mas era muito difícil. Andei por outras partes do país a tentar localizá-lo mas com aquele carro ele brincava com os perseguidores. Deixámos de lhe encontrar pistas quando o processo democrático entrou em funcionamento. Quando se deu liberdade aos pides, esqueceu-se muita coisa e hoje ele é um cidadão respeitável. SR – Qual foi a importância das barricadas de Setúbal, na luta contra o anunciado movimento contra-revolucionário? FR – As barricadas de Setúbal impediram o acesso de todo o sul a Lisboa, durante dois dias, e só desmobilizámos quando tivemos a certeza de que as forças reaccionários tinham desmobilizado e desistido. Por isso, revelou-se fundamental e decisiva para impedir o avanço do fascismo. Tanto assim que esse movimento desmembrou-se e acabou por não se concretizar, pelo menos naquela altura. Mas o fascismo não morreu, ele recuou para se reagrupar mais adiante e isso viu-se no próprio distrito que a partir daí foi uma espécie de ‘balão de ensaio’ de diversas tentativas de movimentações reaccionárias. SR – Verificou-se alguma tentativa de influência partidária dos acontecimentos? FR – Na altura existiam grupos que eram classificados de extrema esquerda, como a FEC, a UDP e a LCI, que entravam nas barricadas. Mas as barricadas eram feitas por toda a gente, não só pelo MDP/CDE, e nunca expulsámos ninguém porque ninguém estava a mais e, naquele caso, o que era preciso era firmeza e tolerância. Toda a gente é passível de cometer erros e, no meu entender, o grande erro do fascismo foi ter isolado a população portuguesa da participação na vida pública. Quase nenhuma das pessoas tinha experiência política, à excepção de alguns que, como eu, tinham sido do MUD Juvenil, das juventudes comunistas e das associações cívicas. SR – 25 anos depois, como é que vê os acontecimentos? FR – Foi uma ocasião muitíssimo boa porque se tratou de uma luta por causas justas. A população estava completamente impreparada para a vida pública e tudo se fazia espontaneamente com capacidade de improviso e de unidade impressionantes. Não sei se terão sido cometidos erros, mas se isso aconteceu foram os erros do desconhecimento e da falta de prática política da população. E se as pessoas estivessem preparadas, possivelmente o movimento do 25 de Abril teria sido totalmente diferente porque os intervenientes seriam pessoas com um outro tipo de lucidez. SR – Valeu a pena lutar contra o que chamavam tentativa de golpe de direita? FR – Sem qualquer dúvida porque hoje não estou preocupado a conversar e a olhar para trás das costas nem preocupado em saber se andam por aí microfones escondidos. Isto apesar de ter ficado muito prejudicado do ponto de vista pessoal e profissional. Já na altura era comerciante, a firma estava numa fase de grande ascendência profissional e lembro-me muito bem que, depois disso, algumas empresas puseram o nosso pessoal na rua e cortaram relações connosco. Ou seja, fiquei marcado em termos de clientes e fornecedores porque diziam que a empresa tinha um comunista à frente. Ainda hoje tenho algumas dificuldades, principalmente em áreas mais conservadoras. Fui comandante dos Bombeiros Voluntários de Setúbal durante 15 anos e entre as coisas que a Inspecção Superior de Bombeiros disse foi: “Mais um comunista aqui no seio dos bombeiros, cuidado com eles”. Não me estou a lamentar porque não estou à venda, acredito numa determinada sociedade e disso não abro mão. SR – Esta é a sociedade pela qual lutou? FR – De maneira nenhuma porque a sociedade com que sonhei era mais fraterna, mais igualitária e mais preocupada com o semelhante. Portanto, há que avançar sempre na luta pela democracia. Nós fizemos recuar o fascismo, no entanto ele não morreu porque o fascismo não morre. Recua para se reagrupar e aparecer mais tarde com outro rosto. Em Portugal, a repressão física deu lugar à repressão económica, a vigilância do cidadãos é agora a vigilância económica e o cidadão não se consegue mover se não entrar nas graças das estruturas e dos governos. É o novo rosto do fascismo e estamos a assistir a uma ofensiva anti-democrática mais perigosa porque não tem rosto. Antigamente sabíamos onde estava o fascismo e onde estava a repressão, Os seus agentes estavam na Rua António Maria Cardoso e os seus rostos nós conhecíamo-los distritalmente e a nível nacional. Agora não sabemos onde é que eles estão porque existem em todo o lado sob forma de repressão económica e social, que não é menos violenta que a anterior. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |