Testemunhos de Timor “Sol Nascente”
(II parte)
Ao outro dia fomos dar uma volta pela cidade. Durante a noite tinham vandalizado a sede do CNRT, havia casas queimadas, motorizadas no meio da estrada também queimadas, o jipe azul que identificamos na noite anterior circulava pela cidade. É claro que a policia não deteve ninguém.
Constava-se que havia mortos e feridos. Fomos ao Hospital, havia na verdade sete feridos, com sinais visíveis de catanadas, um dos quais numa maca no corredor que estava a soro e “abandonado às moscas”. Acabou por morrer horas depois. Tinham morrido mais dois, um à catanada e o outro apareceu carbonizado numa das casas queimadas. As ruas estavam completamente desertas.
À noite mulheres e crianças refugiaram-se de novo em nossa casa. Calavam-se sem compreender, quando sugeríamos que nas instalações da policia estariam mais seguros. Hoje compreendemos este silêncio e a sinceridade dessa incompreensão.
No dia 29 de Agosto, quando fomos saber se o Ti Xico, o nosso interprete, se encontrava bem, cruzamo-nos com uma carrinha de caixa aberta repleta de gente, armada “até aos dentes”, com as camisolas das milícias e bandeiras indonésias. Assistimos ainda a uma brigada das milícias a pedir identificação ás pessoas que passavam. Fomos dar conhecimento disso á policia, que apenas queria saber se nós havíamos sido abordados, como quem diz, “eles tinham indicação para não chatearem os observadores”. Dissemos que não e ficou a promessa de “serem dadas ordens” para não pedirem mais identificação a ninguém. A policia dá ordens ás milícias? Evidência questionável ou inquestionável? Foi o que passou a ocupar o meu pensamento. Era só encaixar as peças, o resultado começava a clarificar-se e viria completamente ao de cimo, com o comportamento daquele Brigadeiro da policia que dias depois em Dili, quando perante o “cerco” das milícias à casa da Missão Portuguesa, com “ar de gozo” nos dizia para sorrir, que estava tudo bem, isto depois das milícias nos terem, com o consentimento da policia, “roubado” um jipe.
Nas ruas não se via “viva alma”. Parecia evidente a fuga para as montanhas. Cheguei a pensar que a votação poderia estar comprometida.
Á noite de novo mulheres e crianças abrigaram-se em nossa casa.
Vinte e cinco anos depois, o tão esperado dia 30 de Agosto! Cheguei ao centro de votação da Escola de Santo António no Oecussi, pelas 6 horas da manhã, para assistir à abertura do processo de consulta, previsto para as 6.30 h. Consulto novamente o relógio, eram 6.20 h e não se via ninguém para votar. Uma mistura de tristeza, desânimo e revolta, que procurei conter, invade-me por completo. De repente começo a ver gente a chegar de todo o lado, muita gente, em grupos, homens e mulheres com papeis na mão. Senti uma alegria indiscritível que a muito custo, silenciei. Afinal os Timorenses tinham percebido a importância do voto e não se deixaram intimidar pelas milícias. Respirei fundo. Valeu a pena.
No dia seguinte ao referndo e conforme estava previsto, preparamos o nosso regresso a Dili. Fomos á Policia que nos havia garantido escolta até Dili, afinal era só até meio do percurso: “a partir daqui já não temos nada a ver com o assunto”, quando chegarem a Liquiça peçam à policia de lá para vos escoltar até Dili.
Ficamos apenas os três observadores Portugueses. Nada mais havia a fazer que não fosse avançar. Passados poucos Kms um camião faz sinal para ultrapassar, o motorista reforça o sinal com o braço, avançamos para ultrapassar, quando nesse instante o camião avança para o meio da faixa de rodagem, projectando-nos para a berma após a inevitável colisão. Saímos os três do jipe e quando nos apercebemos que o camião nem matrícula tinha, concluímos que o melhor era, estando o jipe em condições, seguir viagem. Após termos retirado o guarda lamas que estava a obstruir a roda esquerda da frente, arrancamos. Ainda sem termos tido tempo de nos recompormos, uma brigada das milícias impede-nos de prosseguir. Paramos, revistaram o jipe, atiraram uns tiros para o ar e levantaram o tronco que impedia a passagem. Continuamos e na viagem ainda passamos por mais três brigadas das milícias, mas sem problemas. Chegamos finalmente a Dili por volta das 15 horas. (
José Luís Ferreira
Elemento da Missão Oficial de Observadores Portugueses na Consulta Popular
em Timor Leste, em representação do Partido Ecologista “Os Verdes”
[email protected]