Testemunhos de Timor “Sol Nascente”
(III parte)
No dia 1 de Setembro, já em Dili, quando nos dirigíamos para a sede da Missão Portuguesa, ao passar pelo Mercado de Dili, paramos o jipe para fotografar a fachada do Mercado, quando irrompem de dentro do mercado vários elementos das milícias, que mal se aperceberam que o jipe pertencia à Missão de Observadores Portugueses, começam a agarrar em pedras e dirigem-se para nós, arrancamos com o jipe. Ao fim do dia, de repente, o movimento começa a agitar-se, as lojas começas a fechar e nós sem compreender o que se passava, fomos directos para a sede da missão. Ouvem-se tiros, é o “assalto ao Bairro Mascarenhas”. Ficamos na Missão até arranjarmos escolta para nos levar para casa, que após vários “alarmes falsos”, de tirar jipes do recinto e tornar a estacionar, acabou por aparecer. Passava já da 1 hora da manhã.
No dia seguinte, aconselharam-nos a sair de casa apenas para o indispensável, comer e fazer os turnos da contagem dos votos, que entretanto decorria no Museu. Saímos para jantar no Hotel Turismo que ficava junto á casa onde estávamos instalados. Durante o jantar entram três elementos das milícias armados com catanas e armas automáticas, dirigem-se para o balcão, conversam com a recepcionista e sentam-se para jantar, com uma descontracção surpreendente, como se aquele aparato fosse a coisa mais natural deste mundo. Constava que andavam à procura de uma jornalista.
Dali fui para o Museu assistir à contagem dos votos. Tudo corria normalmente. Falava-se na antecipação da divulgação dos resultados. Durante a noite ouvem-se tiros.
3 de Setembro. Logo pela manhã fomos confrontados com o conselho da Polícia de que era mais seguro mudar de casa. Saímos para a sede da Missão e dali fomos para outra casa (Farol). Ouvem-se tiros com alguma regularidade.
À meia noite fomos ao Museu assistir ao escrutínio que afinal iria durar toda a noite para os resultados serem anunciados de manhã. O resultado já se adivinhava. Durante a noite continuam a ouvir-se tiros. As ruas de Dili estão desertas.
4 de Setembro. O resultado é anunciado. Os Timorenses recusaram a autonomia. Timor vai ser uma nação independente. Os Timorenses que se encontravam em casa choravam silenciosos de alegria. Não se ouviam manifestações de alegria, ninguém veio para a rua comemorar. Afinal tantos anos à espera deste dia e ninguém sai á rua festejar? Percebia-se porquê.
Novamente por sugestão da policia, abandonamos a casa onde estávamos e fomos para a sede da Missão Portuguesa. “Estão mais seguros se estiverem todos juntos”. As ruas de Dili estavam completamente desertas, num dia como este, ninguém comemora, ninguém festeja.
Por volta das 13.30 h, ouvem-se tiros, são as milícias que junto ao portão da sede da Missão, disparam contra os jipes dos Observadores que vinham de Bemore, ali mesmo nas “barbas” dos policias que nos estavam a guardar. Os observadores conseguem entrar e os tiros continuaram. Um dos policias que nos estava a guardar informa que “as milícias querem um jipe dos nossos”. Como? Então e vocês não os prendem? – “Eles querem um jipe, é melhor dar-lhes o jipe senão começa tudo aos tiros”. Insistia o policia. Demos a chave do jipe ao policia, que de imediato a entregou a um dos membros da milícia e este arranca com o jipe. Pouco tempo depois ouvem-se de novo tiros, vem de novo o policia dizer que eles queriam outro jipe. Não, já chega! Não há mais jipes para ninguém. O policia leva a mensagem e trás a resposta: “então querem os Timorenses que estão aí convosco”. Também não entregamos ninguém, respondemos. Levamos os Timorenses que estavam connosco para o andar de cima, agarramos no que estava à mão, garrafas, paus e ferros, fizemos “cocktails molotov”, guardamos portas e janelas, e ficamos à espera. A tensão era muita, mas ninguém entrou em pânico. Os tiros continuavam. Eis que chega um brigadeiro da policia, entra em casa e com a maior das calmas diz: “smile, smile, everything is fine…”. Dirige-se ao frigorifico tira uma garrafa de água, serve-se de uns bolos que estavam em cima da mesa e sorri. Parecia estar em casa dele. Entretanto os tiros pararam.
O brigadeiro aconselhou-nos a levar água. Percebemos que íamos para a UNAMET.
Tudo isto começava a fazer sentido. Afinal trata-se de um plano com uma orientação global de acção, está tudo estudado ao milímetro, o que eles queriam era juntar-nos a todos, enfiar-nos na UNAMET e fazer a “matança” sem olhos curiosos por perto.
Negociamos a saída dos Timorenses que estavam connosco. Quando saímos as milícias já tinham desaparecido. No caminho pudemos ver que estava tudo literalmente queimado. As ruas de Dili continuavam desertas.
Nas instalações da UNAMET havia refugiados por todo o lado. Olhavam para a montanha, havia gente a movimentar-se lá me cima. Conseguimos uma ração de combate por volta das 10 horas da noite e dormimos em cima dumas cadeiras.
Constava-se que por todo a cidade havia “matança” com rituais sinistros. Ouviam-se tiros.
No dia seguinte, preparamos a viagem para o aeroporto. Disseram-nos que saímos cedo. Pusemos os jipes no exterior, mas não havia sinais de escolta. Ouvem-se tiros, voltamos a pôr os jipes nas instalações da UNAMET. Perto das dez horas fizemos uma coluna com os nossos jipes e com outros da UNAMET e arrancamos em direcção ao aeroporto. Dili estava completamente destruída, parecia até o cenário de um filme de guerra. Não se via ninguém nas ruas, grande parte dos Timorenses fugiram para as montanhas, os restantes refugiaram-se na UNAMET. Uns e outros abandonados pela comunidade internacional que no fim de contas, os convidou para uma festa, e acabou por enfia-los na boca do lobo…
A palavra indonésia aparece intencionalmente escrita em minúsculas.
José Luís Ferreira
Membro da Direcção Nacional do Partido Ecologista “Os Verdes”, elemento da Missão
Oficial de Observadores Portugueses na Consulta Popular em Timor Loro Sae
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