[ Edição Nº 93] – Um dia de trabalho para a Nação.

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Edição Nº 9311/10/1999
25abril2-1523470

MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Um dia de trabalho para a Nação)

Para ajudar a consolidar a revolução

Setúbal adere ao dia de trabalho voluntário

          No dia 6 de Outubro de 1974, milhares de pessoas em todo o distrito decidiram responder ao apelo para a realização de um dia de trabalho voluntário para a Nação. Esse domingo ficou na memória de José Vale Costa, como um dos dias maios belos e solidários do período revolucionário. Reconhecido como um operacional da revolução em Setúbal, uma vez que participou activamente em todas as acções promovidas pelos partidos e movimentos de esquerda, 25 anos depois José Vale Costa ‘desenterra’ recordações de uma época que definiu o rumo político do país.


Setúbal na Rede

– Onde é que estava no dia 6 de Outubro de 1974?

José Vale Costa

– Recordo-me que era um domingo e passei todo o dia a fazer trabalho voluntário na então Caixa de Previdência, onde a minha mulher trabalhava. Foi o chamado dia de trabalho para a Nação, onde muita gente foi exercer trabalho voluntário em tudo o que era instituição do Estado. Eu, como pouco ou nada sabia daquelas funções, passei o domingo todo a cortar e a colar fotografias dos beneficiários nas respectivas fichas.

SR

– Como é que surgiu o apelo ao dia de trabalho para a Nação?

JVC

– O apelo surgiu do governo de Vasco Gonçalves, no sentido de ajudar as instituições do Estado. E quando Vasco Gonçalves pedia uma coisa o povo fazia, gostávamos muito dele porque era considerado um símbolo da revolução. Assim, nesse dia, milhares de pessoas de todo o distrito aderiram ao dia de trabalho e, apesar de ser um domingo, todos fomos trabalhar no que calhou. Eu era empregado de escritório numa empresa privada, por isso decidi ir prestar serviço na Caixa de Previdência ao lado de centenas de outros voluntários.

SR

– Quando lá chegou, sabia que funções iria desempenhar?

JVC

– Não sabia de nada, mas também não me importei com isso. Fiz aquilo que me pediram, com todo o gosto, porque estava desejoso de dar qualquer coisa à Nação. O que eu queria era ajudar o país e a revolução, ou seja, fazer parte daquela onda de solidariedade nacional. Portanto, quando surgiu o apelo não pensei duas vezes e fui fazer trabalho voluntário. E não fui só eu, porque naquele dia toda a gente estava imbuída do mesmo espírito solidário, um espírito único que só encontrei durante o período revolucionário e que nos levava a sentir que éramos importantes para a democratização do país.

SR

– A população contou com a ajuda do Governo Civil e da Comissão Administrativa da Câmara para esta acção?

JVC

– O Governador Civil não se metia nestas coisas e a Câmara também não se manifestou a propósito, embora tivesse contado também com algum trabalho voluntário. Para além disso, a gente não precisava da ajuda de ninguém porque, o que o Vasco Gonçalves dizia a população do distrito fazia sem questionar. E tanto assim é, que Setúbal foi um dos distritos que mais aderiu ao dia de trabalho para a Nação.

SR

– De que modo é que esse dia de voluntariado contribuiu para a revolução?

JVC

– De uma maneira muito simples: para além de ajudar as instituições do Estado, reforçou ainda mais a união das pessoas em torno de uma causa comum: a conquista da liberdade. Recordo que tínhamos saído de um período assustador, que foi a tentativa de golpe de Estado de direita, da chamada maioria silenciosa comandada por Spínola, e que Setúbal ajudou a travar graças à formação das barricadas. Ninguém quis mais ouvir falar em Spínola e ele tornou-se o símbolo da extrema direita em Portugal. A partir daí originou-se uma perseguição tão grande que ele teve de fugir para Espanha e foi lá que começou verdadeiramente a formar o ELP.

SR

– No entanto, este não foi o único acto voluntário que praticou durante aquele período revolucionário.

JVC

– Foi uma das muitas acções que desenvolvi ao longo daquela época porque, durante muito tempo, andei com o jipe a ajudar nas cooperativas e nas associações. Logo no início da revolução, achei que devia dar algo de mim à luta pela liberdade e como ainda não tinha qualquer filiação partidária decidi colocar-me à disposição de toda a gente em qualquer ocasião. Assim, todos os fins de semana andava de um lado para o outro a ajudar as cooperativas agrícolas desde o Alentejo até Montemor. Mas não era só eu, porque quase toda a gente lá andava a ajudar, independentemente da classe social, porque isso naquela altura já não tinha valor algum. E lembro-me de alguns episódios que marcaram essa ausência de clivagens sociais, como o facto de ter visto senhoras que nada tinham a ver com a vida do campo a apanhar tomate. Era, de certa forma engraçado e comovente ver as mulheres da cidade, de unhas pintadas e todas aperaltadas, umas a pegarem numa enxada, outras a carregarem cestos e outras ainda todas dobradas a fazerem as colheitas do ano.

SR

– Ainda hoje é conhecido, em Setúbal, como o homem do jipe. O que é que o levou a disponibilizar-se para ajudar nas acções que iam decorrendo pelo distrito fora?

JVC

– Eu era chefe de escritório numa empresa de Setúbal e, antes do   25 de Abril, pouco ou nada sabia de política. No entanto, sempre tive uma tendência para ajudar os trabalhadores da empresa e ao longo de algum tempo tentei coordená-los e ajudá-los no que podia. Quando se deu o 25 de Abril, muitos deles entraram pelo escritório dentro a mandarem-nos parar o trabalho porque tinha começado a revolução. Eu, que tinha tido uma educação conservadora, com o meu pai a ensinar-me a respeitar o regime, sabia lá o que era isso de revolução. Depois os trabalhadores disseram-me que eram comunistas e aí fiquei um bocado assustado porque para mim os comunistas ainda eram aqueles que comiam criancinhas. Mas se eles, que eram meus amigos, diziam que eram comunistas e que estavam com a revolução, eu achei que era isso que devia fazer também. E cerca de um ano depois vim a inscrever-me no PCP. A partir do dia 25 de Abril, achei que devia contribuir para a revolução e disponibilizei-me logo para tudo o que fosse necessário e coloquei o jipe ao serviço da revolução, independentemente do partido de esquerda que precisasse da minha ajuda.

SR

– O facto de ajudar todos os partidos de esquerda alguma vez lhe trouxe problemas?

JVC

– Que me lembre, nunca tive grandes problemas naquela altura. Mas depois de passado o período revolucionário é que comecei a ver que tinha ficado marcado em Setúbal. No entanto, naquela época nada trazia problemas porque o que o pessoal queria era acção e eu era conhecido como um homem de acção, um operacional. Aliás, também não houve problemas de maior porque muita gente tinha medo de mim, sabiam perfeitamente que se alguém se manifestasse contra as minhas actividades apareciam logo umas centenas de revolucionários para me ajudarem. Portanto, estive em quase todos os acontecimentos, desde a formação das cooperativas até à ocupação da Rádio Renascença, passando pelas ocupações de casas para as famílias mais pobres e de edifícios para fazermos infantários, como foi o caso da Quinta de Miraventos. Andei sempre com o jipe à frente de muitas das acções, participando activamente nelas e, ao mesmo tempo, lançando mensagens revolucionárias através do megafone.

SR

– De que forma é que ficou marcado, após o período revolucionário?

JVC

– A GNR fixou-me e uns anos depois comecei a ter problemas relacionados com os meus terrenos que são muito cobiçados pelos caçadores. Embora soubessem que estavam a cometer uma ilegalidade, eles começaram a ir para lá caçar e a GNR nunca fez nada para os expulsar dali. Isto apesar de verem que, muitas vezes, houve trocas de tiros entre mim e os caçadores. Esta é uma situação que ainda ocorre porque os guardas têm mesmo raiva à minha pessoa, particularmente os mais antigos, que ainda se lembram das minhas acções durante o período revolucionário. E fiquei também marcado a nível profissional porque, em meados de 1977, depois da empresa onde trabalhava ter falido, não consegui emprego em lado nenhum. Para ultrapassar este problema, comecei a fazer escritas por conta própria e foi aí que tive a certeza absoluta de que iria ter problemas graves no futuro. Muitas das empresas a quem me propunha fazer as escritas rejeitavam o meu trabalho porque me identificavam com a revolução. No fundo era compreensível, porque os empresários e os industriais sentiam que tinham sido os mais prejudicados com o 25 de Abril. Só acho estranho é que, tantos anos depois, ainda muita gente mantenha essa raiva contra a revolução.

SR

– 25 anos depois, acha que valeu a pena tudo o que fez?

JVC

– Valeu, sem qualquer dúvida, mesmo sabendo que viria a ser penalizado por isso. Faria tudo outra vez, sem qualquer hesitação, porque a revolução foi fundamental para a democratização do país. Mesmo sabendo que as coisas não seriam tão boas, no futuro, como nós todos esperávamos naquela época.

SR

– Quer dizer que está descontente com a actual situação do país?

JVC

– Na verdade, na altura, não sabia bem o que esperava ou no que é que a revolução iria resultar. Mas admito que sempre pensei que chegássemos a melhor e, de certa forma, todos os que trabalhámos para a democracia sentimos as nossas expectativas defraudadas. Apesar de termos liberdade e de vivermos num sistema inegavelmente melhor ao anterior, por outro lado também é verdade que continuam a existir grandes injustiças. Agora sob outra forma, as pessoas continuam a ser exploradas e a viver no terror do desemprego e da miséria. E ninguém tem dúvidas que o próprio Estado faz isso e ajuda a promover este autêntico estado de terror entre a população.

SR

– Então defenderia uma nova revolução, em Portugal?

JVC

– Isso ando eu farto de dizer, porque já muita gente se esqueceu do espírito do 25 de Abril, dos ideais da liberdade e da democracia. Mas é preciso que todo o povo queira e as pessoas têm de acordar para esta situação. Aos poucos, as pessoas vão ‘amadurecendo’ as ideias para poderem levarem em frente um acto deste tipo e, pelo que vejo, neste momento há muita gente que, como eu, está cada ver mais descontente com o sistema em que vive. Por isso, Não tenho dúvidas de que uma nova revolução vai acontecer, mais dia menos dia, talvez com outros moldes mas é só apenas uma questão de tempo.

Entrevista de Etelvina Baía
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