[ Edição Nº 94] – É COMO DIZ O OUTRO por Fernando Cameira.

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          Vamos mais uma vez falar do fim do milénio!

Eu sou daqueles que pensa que o fim do milénio não existe na data do calendário mas que existe, de facto, na cabeça das pessoas e que, por isso mesmo, acabam por se produzir alguns dos efeitos esperados.

Os que tendem a acreditar em algo profetizado podem deixar-se auto-sugestionar e ter comportamentos realmente apocalípticos, os menos graves dos quais serão o deixar de pagar as dívidas e faltar ao emprego. Não há melhor pretexto para fazer o que sempre se sonhou, sem medo de represálias.

Alguns dos que não acreditam sentem algum receio pelas reacções desses tais que podem agir sob o efeito da sugestão. Pois se há quem leve dezenas de pessoas a suicidarem-se cerimonialmente só porque vai passar um cometa e acreditam que é um disco voador e salvador…  o que não poderá acontecer em 31 de Dezembro de 1999!!!!

Eu, por exemplo, não penso passar o fim de ano fora de casa, pois sei lá se não me aparece um qualquer milenarista fervoroso, crente de estar investido da missão de salvar o mundo (figura tão especial mas que não é tão rara como se poderia pensar) a pensar que eu daria um óptimo cordeiro imolado para acalmar a fúria dos deuses? E a vida continuaria para ele, convicto de que tinha cumprido a sua missão. Eu é que já cá não estaria para lhe explicar que era um coincidência despropositada.

O resultado final é que, no limite, todos agem como se algo efectivamente estranho estivesse para acontecer. Todos… não. Mas, quanto mais não seja só por curiosidade, há um sentimento especial criado por esta ambiência.

Esse sentimento é o de estar particularmente atento aos sinais que parecem confirmar a natureza apocalíptica destes tempos.

Noutra altura chamar-se-ia a esses sinais… coincidências. E o que é uma coincidência interessante é que… há muitos sinais ou coincidências interessantes que parecem acumular-se.

Era nisto que eu pensava quando há dias lia um artigo de jornal sobre algumas manifestações culturais que vão ter lugar em Lisboa e a propósito das quais se fazia uma pequena reflexão sobre a arte neste fim de milénio.

Até os artistas decidiram deixar-se levar por este sentimento de caos destruidor e desataram a presentear-nos com a exibição de toda a espécie de atrocidades exercidas sobre os corpos, de anónimos ou deles mesmos. Há artistas que elegeram o seu corpo como o objecto de trabalho e que ao longo dos anos vêm seguindo um plano de intervenções cirúrgicas, com assistência de espectadores na sala de operações ou através de janelas, operações essas que são gravadas em vídeo e exibidas como se se tratasse da 5ª sinfonia de Beethoven.

É ou não apocalíptico?

Agora… os tempos estão no fim porque tudo está a chegar ao fim, como a arte… ou o anúncio do fim dos tempos é que cria uma sensibilidade diferente, como mostram estes criadores do bizarro?

Mas os cientistas, pessoas que se caracterizam pela objectividade e não por apelos do coração, também falam em fim da Terra se algo não acontecer que contrarie radicalmente os nossos hábitos. Nesse caso, nitidamente, a coincidência é a de que o fim é anunciado por profetas e por homens da ciência. A diferença está na forma e nas razões.

Se eu quisesse profetizar, a minha dúvida seria escolher a calamidade desencadeadora do processo: será a fome generalizada, devida ao empobrecimento cada vez maior dos que já são pobres e ao envenenamento de todos os alimentos dos que são cada vez mais ricos? Será o caos completo da actividade económica mundial cada vez mais global e por isso, também… globalmente vulnerável? Será a violência generalizada do homem como resposta a essa fome, à exclusão de cada vez mais gente do processo produtivos? Será o enfraquecimento progressivo da espécie humana devido à calamidade da droga sobre a actual geração aliada aos restantes gravíssimos problemas? Será a degradação completa da natureza, sem hipótese de recuperação? Serão os acidentes nucleares?

Ao menos… hipóteses não faltam para dar credibilidade às profecias. Mas não será apenas coincidência a sua convergência? Afinal, quanto mais o tempo passa mais fácil é manifestarem-se todas as desgraças juntas. Aliás. Também há muitos que falam não de um fim do mundo mas no fim de um ciclo e de uma espécie de renascimento e, convenhamos, a par de tantas desgraças… nunca houve tantas condições para uma felicidade generalizada. Que seja difícil de pôr em prática esse novo Éden… é outra questão.

O meu conselho é que quando lhes falarem de apocalipse lembrem-se dos que falam de uma nova era. Tão credível é uma teoria como outra, no campo das hipóteses. Há que afastar os medos do futuro. Piores são os do presente.

Vejam o meu caso. Já não bastava o meu medo dos assassinos e tarados místicos! Vou ter que me preocupar com os artistas que decidam eleger-me como obra de arte a explorar e a exibir.

(Um longo parêntesis:

Já me estou a ver no dia 1 de Janeiro, exposto no museu Gulbenkian, uma perna estendida no chão, outra a cinco metros, espetada num vaso de barro, com o pé para cima e a coxa enterrada junto a um malmequer, um braço a sair de uma gaveta de uma cómoda e outro suspenso do tecto por um fio de nylon… enfim.. é melhor nem continuar a descrição desta “instalação” artística do novo milénio, com o título: “A expansão do homem, para baixo e para cima”.