[ Edição Nº 105] – Tomada de posse da Comissão Instaladora de Gestão do Hospital de Setúbal.

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Edição Nº 10503/01/2000
25abril2-9591920

MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Tomada de posse da Comissão Instaladora de Gestão do Hospital de Setúbal)

Por via das comissões instaladoras
Hospital de Setúbal aderiu à revolução

          No dia 6 de Janeiro de 1975, o hospital de Setúbal empossava a Comissão Instaladora de Gestão através da qual o estabelecimento passou a ser gerido, retirando assim esta função à Provedoria da Misericórdia. Mas a luta dos funcionários do hospital, que passou pelos médicos, pelos enfermeiros e pelo pessoal administrativo, não começou aqui, uma vez que as primeiras mudanças ocorreram poucos dias após do 25 de Abril de 1974. 25 anos depois dos acontecimentos, Machado Luciano, cirurgião do hospital de Setúbal, ex-director do estabelecimento e mentor das diversas comissões instaladoras, dá por bem empregue o tempo e as preocupações tidas na época. É que a luta resultou na melhoria das condições de trabalho e na abertura do hospital aos seus congéneres e à própria comunidade.


Setúbal na Rede

– Onde é que estava no dia 6 de Janeiro de 1975?

Machado Luciano

– Devia estar no Hospital de Setúbal, onde era médico. Embora não me lembre da data com exactidão, terá sido por essa altura que tomou posse a Comissão Instaladora de Gestão do Hospital, de que eu fazia parte. Tratou-se de um movimento que surgiu logo após o 25 de Abril de 1974, para substituir a Provedoria da Misericórdia que administrava o hospital.

SR

– Então esta não foi a primeira Comissão Instaladora do hospital de Setúbal?

ML

– Não, porque o processo começou muito antes. No dia 3 de Maio aparecem as chamadas comissões representativas dos trabalhadores, com elementos representativos dos médicos, dos enfermeiros, dos paramédicos e dos administrativos. Estas comissões surgiram porque o director clínico esvaziou-se da sua função e a Provedoria desligou-se da sua actividade de administrar o hospital. No entanto, a Provedoria aceitou com muita colaboração as directivas emanadas das sucessivas comissões, tentando sempre que possível, estabelecer um bom relacionamento e um bom entendimento. Há que referir que sempre houve o cuidado de gerir as coisas da melhor forma, porque havia contas para pagar e bens para cuidar, sabendo que no hospital existiam bens da Misericórdia e outros do Estado porque, embora a Misericórdia tivesse sido a responsável pela administração, o hospital continuava a ser estatal.

SR

– Foi difícil o processo de criação das comissões e o próprio acto de administrar?

ML

– Houve um grande entusiasmo em eleger pessoas que se julgava representativas de alguma coisa. Mas a turbulência era tal que eu costumava chamar a isto uma máquina de fazer croquetes porque todas as semanas aparecia gente para representar os sectores e as pessoas que lá estavam já não representavam nada. A ânsia de participar era muita mas as pessoas não se apercebiam o quão difícil é mandar. Por vezes as pessoas acham que têm de mandar alguma coisa e é muito fácil mandar sem dar satisfações. Numa altura em que se discutia a autoridade do Provedor, todos queriam ser pequenos provedores e mandar com autoridade sem darem satisfações a ninguém. Mandar é complicado e um acto extraordinariamente difícil.

É uma coisa que tem de ser tão amadurecida que ao fim de todos estes anos questiona-se novamente quem é que deve mandar no hospital. Se é por eleição, se é por competências ou por qualidade técnico-administrativa. Há que gerir equipamentos e dinheiros e isso não tem nada a ver com a gestão técnica e clínica dos médicos que tem de ser feita com base na sua ciência médica. Os médicos têm que dizer como é que querem gerir o doente e a administração tem que dizer quais são as verbas disponíveis para que, de facto, surja um projecto bem estruturado e bem organizado que atinja alguns objectivos.

SR – Que tipo de reivindicações foram feitas durante esse período?

ML

– As reivindicações não passavam pelo dinheiro, em si, porque naquela fase o que se queria era saber era quem devia ter o comando das instituições. O movimento sindical ainda não era muito bem estruturado e, se calhar, os médicos que eram tidos como uma classe privilegiada, até se acanhavam de pedir, ao nível do sindicato, qualquer melhor vencimento. Se calhar até os insultavam se o pedissem. Houve mesmo um ministro, o Pereira de Moura, que disse que os médicos que atendiam mal os doentes nos banco deviam ser executados porque eram fascistas. Ora, dizer isto a quem estava de serviço ao banco de urgências, era sinónimo de que a capacidade reivindicativa dos médicos era perfeitamente nula. Lembro-me de que o que se reivindicava era o almoço de graça e o 13º mês.

Mais tarde, quando se aperceberam de que o ‘bolo’ do orçamento podia crescer, é que se lembraram de pedir melhores vencimentos. O movimento era de grande entusiasmo, quase que de pedagogia da revolução, era ir para a rua e apoiar os que lhes pareciam representativos. Mas esse entusiasmo todo ia esmorecendo à medida em que, de cada vez que se queria fazer coisas se deparavam com problemas porque não havia suporte para nada, não havia organização nem resposta financeira. E assim, passou-se de uma reivindicação saudável para uma perturbação total dentro dos hospitais. Mas pode agradecer-se à classe médica e aos enfermeiros o facto das coisas não terem piorado porque, mesmo com toda a perturbação vivida nos hospitais do país, nunca deixaram de tratar doentes. Lembro-me de algumas situações, como nas noites de Natal e de passagem de ano de 1974, altura em que eu era director do hospital e fiz o serviço do banco de urgência sozinho porque não havia médicos.

SR

– Até quando vigoraram as comissões instaladoras no hospital de Setúbal?

ML

– Até 1978, altura em que a comissão foi transformada em Conselho de Gerência. Nessa altura criou-se o chamado Secretariado Nacional dos Hospitais. Foi uma estrutura muito dinâmica, com representantes de todos os hospitais, e tinha como objectivo de ‘abrir’ os hospitais que até então estavam muito enclausurados, com as suas provedorias, as suas virtudes e os seus defeitos. Este secretariado, criado por intermédio de Rui Araújo, na altura administrador do hospital de Aveiro, seria como uma Direcção Geral dos Hospitais. Lembro-me de ele andar com camionetas cheias de pessoas e de, inclusivamente, termos levado pessoal numa camioneta de Setúbal a Évora, para explicar o que era este secretariado. No fundo, era dar formação às pessoas ao nível da participação, explicar o que era uma comissão instaladora, o que era uma assembleia geral, quais eram os direitos dos trabalhadores e por aí fora.

Esta movimentação durou cinco a seis anos e, a partir daí os hospitais ‘abriram-se’. No entanto, havia um aspecto controleiro de que não gostávamos, que era o facto do Secretariado pronunciar-se sobre os elementos a eleger para as comissões instaladoras. Lembro-me de que as pessoas que enviámos para representar o hospital de Setúbal no Secretariado Nacional foram muito criticadas porque se achou que nós tínhamos eleito representantes que tinham estado nas direcções antigas. E ouvi críticas de todos os quadrantes porque, muitas vezes, as lutas que ocorriam eram entre as pessoas que estavam e as que gostariam de estar.

SR

– A ‘abertura’ do hospital de Setúbal chegou a estender-se à própria comunidade e às actividades próprias daquele período revolucionário?

ML

– Sim, e lembro-me de uma das actividades que foi o chamado serviço cívico. Fomos pioneiros ao recebermos estudantes do então 7º ano que não entraram para a faculdade nesse ano e que foram fazer o serviço cívico no hospital de Setúbal. Lembro-me também do professor Gil da Costa, que foi director da Faculdade de Medicina de Luanda. Quando veio para cá, veio ter connosco e nós propusemos-lhe a abertura do seu laboratório de anatomia patológica dentro do hospital, exercendo quer para o hospital quer para a Previdência. E assim o hospital de Setúbal foi o primeiro hospital distrital do país a dispor de um laboratório de anatomia patológica.

Durante aquele período, independentemente das lutas, tivemos a capacidade de dispor de várias pessoas do ensino, como é também o caso do professor Fonseca Ferreira, que foi professor na Universidade de Lourenço Marques. E estas pessoas, agregadas a Setúbal, deram um grande impulso à medicina. Portanto, o serviço cívico abriu o hospital às pessoas, ao nível dos contactos com os actos médicos, e a seguir surgem os internatos médicos.

SR

– Durante esse período, as lutas populares tiveram reflexo no hospital de Setúbal?

ML

– Pelo menos uma teve consequências no hospital. Foi no 7 de Março de 1975, altura em que ocorreram distúrbios e tiroteio em Setúbal. A população resolveu entrar no hospital acusando os médicos de não tratarem bem os doentes. Tivemos de pedir enfermeiros ao Quartel do 11, tinham de ser enfermeiros do MFA porque as pessoas achavam que nós tratávamos mal os doentes. Foi uma perturbação de tal ordem que foi preciso muita vocação, paciência e coragem para podermos continuar a tratar doentes naquelas condições. Isto ocorreu durante meses e o hospital pagava sempre pelas perturbações que iam ocorrendo ao longo do tempo.

Essas mudanças provocaram ainda problemas a outro nível porque deixou de se pagar os almoços e, com o tempo, coisas como estas levaram à acumulação de milhares de contos em despesas. Uns anos depois, surgiu uma notificação do Tribunal de Contas a perguntar quem autorizou as verbas para os almoços. E lembro-me de os ter questionado sobre se também perguntaram ao Salgueiro Maia quem é que pagou a gasolina para ir até Lisboa no dia 25 de Abril. Nós sempre tivemos o bom sendo de gerir bem o pouco dinheiro que havia e lembro-me perfeitamente do doutor Mantas, que na altura geria as verbas para os hospitais, lá nos ir dando uns dinheiros para pagar as contas.

SR

– Se não havia dinheiro, as condições de trabalho também não eram das melhores. Como é que classifica a qualidade do hospital naquela época?

ML

– Naquela altura as coisas eram tão difíceis, que para ir à Misericórdia buscar géneros tínhamos uma carroça com um burro. E recordo-me que a primeira carrinha que o hospital teve fui eu que a comprei, em conjunto com Artur Ferreira, que também fazia parte da Comissão Instaladora. Custou 80 contos e foi um sarilho para a legalizar porque tinha de ter uma chapa do Estado. Portanto, decidimos comprá-la a título pessoal e alugá-la ao hospital para fazer os transportes. Nos hospitais não havia quase nada e nós não nos apercebíamos sequer do atraso que tínhamos em relação ao equipamento. No bloco operatório os doentes eram anestesiados com máscara de gás e a assistência era manual. Hoje em dia ninguém tem um bloco operatório sem monitores para registar ao pormenor todos os parâmetros vitais. Mas isso ocorria no mundo inteiro e foi a partir dessa altura que se deu um enorme crescimento exponencial, com novas técnicas a invadir a medicina do mundo inteiro. E Portugal cresceu imenso neste aspecto ao longo dos últimos 25 anos. Hoje em dia, os nossos hospitais estão bem apetrechados e têm muita qualidade.

SR

– Alguma vez as comissões foram alvo de tentativas de influência partidária?

ML

– Tenho a impressão de que houve mais suspeitas do que factos e, na realidade, penso que não houve influências de partidos. Parece-me que a maior parte das pessoas tinham algum comprometimento e, por vezes achavam que por trás da execução das coisas havia algum partido. No entanto nunca vi isso nas comissões. Em mim ninguém mandou e não precisava de estar filiado em partidos para ter ideias. A minha inteligência é para estar disponível sem ser cortada nem manietada, para apoiar o que me parece correcto, desapoiar o que não me parece correcto e não fazer o chamado jogo partidário. Se me disserem que havia maior influência de uns partidos que de outros, digo que havia como há actualmente porque quem tem mais peso numa terra cria mais apoios e quem tem mais peso agira mais ou tolera mais.

SR

– 25 anos depois, acha que valeram a pena os esforços desenvolvidos pelos médicos, enfermeiros e administrativos do hospital de Setúbal?

ML

– Isto faz-me lembrar a história do indivíduo que se atira à água para salvar o outro que caiu do cais e depois diz: “eu sei lá se sou herói, pergunto é quem é que me empurrou para salvar o outro”. Eu estava era novo por cá, estava em Setúbal há ano e meio e estava fora dos conflitos entre as pessoas e, portanto, estava disponível para um certo número de coisas. Era eu e o doutor Mendes Ferreira, que tinha vindo de Faro, éramos muito novos e, portanto, muito refilões. Fui administrando o conflito com oscilações das pessoas que eram favoráveis ou desfavoráveis. Umas vezes votavam em mim e outras não, por isso é que eu pergunto se, no meio desta confusão toda, alguém era representativo de alguém. Acho que a experiência foi importante porque aprendemos a participar e aprendemos também que a democracia tem limites. A democracia tem de estar balizada e hoje não está, ou seja, está balizada pelos interesses de alguns. Esta é a democracia possível porque ela faz-se com as pessoas e as pessoas querem assim.

SR

– Se hoje surgisse a necessidade de desencadear movimentações como a de 1975, voltava a fazê-lo?

ML

– Seria perfeitamente lógico porque, quando estamos num barco não o largamos. Nunca foi minha vocação virar as costas às responsabilidades e, se estou inserido numa comunidade, quando me pedem ajuda tenho obrigação de a dar. Faz-se melhor ou pior, conforme se saiba dar, e as pessoas aceitam melhor ou pior conforme achem que a minha prestação é mais elegível que outra. Ou seja, trata-se apenas do exercício da cidadania.

Entrevista de Etelvina Baía
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