Edição Nº 105 • 03/01/2000 |
Segundo milénio foi um marco para a Europa Viriato Soromenho Marques, professor de Filosofia na Universidade de Lisboa, vê o segundo milénio como a oportunidade de afirmação da Europa no mundo e o ponto fundamental da viragem para uma sociedade tecnológica onde o Estado é parte de um contrato social. Nesta evolução, que levou a uma mudança radical do pensamento sobre a posição do Homem no mundo, Soromenho Marques sublinha o papel dos grandes filósofos e dos pensadores que descobriram que o Homem podia dominar a Natureza. Agora que esse poder cresceu de uma forma exponencial, este pensador acredita que o grande problema do terceiro milénio estará no seu domínio e num compromisso entre o desenvolvimento e a ecologia. Uma preocupação que também se aplica a Portugal e ao distrito de Setúbal, onde Soromenho Marques diz ver grandes potencialidades de desenvolvimento desde que se conjuguem factores como a massa crítica local e as iniciativas de desenvolvimento. |
– Quais foram os marcos mais importantes para a evolução do pensamento humano ao longo do segundo milénio? Viriato Soromenho Marques – É sempre muito difícil, senão impossível, fazer um balanço do milénio isento e rigoroso. No entanto, parece ser consensual que este terá sido o milénio mais fértil em acontecimentos, descobertas, invenções e criações. Do ponto de vista do pensamento e da capacidade criadora, este milénio terá sido dos mais significativos. O que não quer dizer que no passado não tenham existido milénios igualmente importantes. Se estivéssemos a fazer esta entrevista há cinco ou seis mil anos, seria possível dizer o mesmo quando pensamos na importância da revolução neolítica que marca uma separação entre centenas de milhar de anos de história anterior e uma época em que, através da agricultura e da metalurgia, finalmente a Humanidade consegue sair de uma situação de estado Natureza. Por essa via, dá-se a sedentarização dos povos, a construção do Estado e o aparecimento da escrita. Em relação a este milénio, podemos considerar como aspectos mais marcantes a deslocação da História mundial para o Ocidente. No primeiro milénio, durante o período do império romano, os centros europeus de poder eram bem determinados mas existiam outros centros mundiais, nomeadamente na China. Com a destruição do império romano, assistimos a uma certa orientalização do desenvolvimento da cultura mundial. Este milénio que termina, vai novamente fazer virar o pêndulo da História para o Ocidente, sendo que aí temos de reconhecer que, do ponto de vista da dinâmica das populações e do pontos de vista geográfico e político-cultural, a Península Ibérica foi fundamental. Em meados do milénio, Portugal e Castela desempenharam um papel fundamental na recolocação da Europa no centro do mundo. E isto pode ver-se através de uma análise da expansão do catolicismo e do protestantismo. Durante mil e quinhentos anos, o cristianismo foi uma religião europeia e com as descobertas e a expansão colonial encontrámos a sua expansão devido aos portugueses e aos espanhóis – desde o México à Patagónia, passando pelas Filipinas, pela Índia, pela China e pelo Japão. Quanto ao protestantismo, sabemos que a expansão e colonização inglesas também foram fundamentais, levando-o inclusivamente à América do Norte. SR – Pode dividir-se o milénio entre a fase da afirmação dos povos europeus e a da criação de novos modelos de pensamento? VSM – Metade do primeiro milénio foi passada, do ponto de vista teórico e intelectual, a estabelecer e a reconstituir uma herança perdida. Há uma espécie de tesouro perdido da cultura clássica, da cultura grega e da cultura latina, o que até 1500 é, de certa forma, a grande tarefa do pensamento europeu, nomeadamente tentar conservar essa tradição, reconstituir os textos, no caso da Filosofia e não só. No caso da Filosofia, as duas grandes heranças de Platão e Aristóteles passaram um autêntico ping pong cultural que acompanhou a própria discussão e tradução dos documentos nas diversas línguas. Aqui houve um grande trabalho dos monges, dos copistas e dos pensadores medievais que estabeleceram e salvaram um pouco dessa herança. A segunda parte do milénio já não foi de memória mas sim de imaginação e de criação. Foi a revolução geográfica e política, acompanhada também de uma revolução na criação de novas concepções do mundo ,de novas ciências, de novas formas de pensar e de organizar o mundo e a relação dos homens com o mundo, bem como a relação da cultura com a Natureza. De referir que os primeiros quinhentos anos do milénio correspondem a uma civilização essencialmente contemplativa, na medida em que o próprio Homem se concebia como parte da Criação, ou seja, a Natureza e a cultura eram criaturas perante um deus criador. Num segundo momento do milénio, dá-se a expansão do método experimental e a expansão das ciências empíricas e das ciências da Natureza, o que veio mudar a relação do Homem com o mundo e com a Natureza. Há uma terceira aquisição deste milénio porque, embora sete dos dez séculos tenham sido caracterizados por sociedades tipo rural com economia agrária e fortemente hierarquizadas, há cerca de 250 anos deu-se uma mudança ao expandirem-se as modernas concepções liberais e democráticas da sociedade com aquela ideia básica de que existem direitos humanos fundamentais, que a hierarquia social deve ser baseada no mérito e que o Estado existe porque viveríamos pior sem ele. Esta é uma herança muito séria que este milénio deixa para o que aí vem, ou seja, será possível a estabilidade de uma sociedade planetária baseada em princípios democráticos? Isto ainda está por responder, porque cerca de 250 depois ainda não conseguimos estabelecer estes princípios à escala internacional. SR – Pode dizer-se que a Filosofia assumiu um papel fundamental nesta viragem? VSM – Sim, foi fundamental. Por vezes tendemos a esquecer que até ao final do século XVIII a Filosofia surgia como um saber matricial, ou seja, como a matriz do conhecimento. Newton, for exemplo, foi um dos grandes fundadores da actual concepção do universo porque culminou o esforço de outros grandes astrónomos como Copérnico, Galileu e Kepller, e considerava-se a si próprio como um filósofo natural. No final do século XVIII, o próprio Kant ainda é um homem com essa visão, ou seja, a Filosofia funciona como uma espécie de tronco comum de uma árvore do conhecimento que tem depois um conjunto de ramos que vão aumentando. Fundamentalmente, a Filosofia tornou possível essa mudança da concepção do mundo, de uma razão contemplativa perante a Natureza para uma razão operante e prática. Ou seja, a partir dos séculos XVI e XVII, Descartes, um grande filósofo francês, e um outro filósofo britânico, Francis Bacon, são duas figuras fundamentais dessa passagem da relação contemplativa com a Natureza para uma relação activa com a Natureza. Aqui, encontramos a Filosofia preocupada em encontrar não apenas uma forma de conhecer a realidade mas de intervir na realidade em proveito do Homem. E nesta altura é muito interessante ver que esses filósofos consideram que o essencial do pensamento terá de ser o conhecimento das forças da natureza para as utilizar em proveito das necessidades humanas. Portanto, o fim do conhecimento seria aumentar a longevidade do ser humano e acabar com a sua finitude. É ainda curioso ver que esta mudança para uma razão activa, que deu origem à civilização em que terminamos este milénio: uma civilização técnico-científica, está neste momento a ser posta em causa precisamente pelas consequências não previstas que agora estão a ocorrer. Isto mostra bem como a existência humana obedece a grandes movimentos pendulares, ou seja, passámos de uma situação contemplativa para uma situação activa e que transforma a Natureza e neste momento já sentimos necessidade de parar um pouco porque começamos a perceber que há limites de intervenção e que a própria técnica pode ser uma ameaça terrível se não for controlada. SR – Nesse caso, o problema do milénio tem a ver com poder a mais? VSM – O grande dilema é, de facto, é a limitação do uso do nosso grande poder técnico. Este é o primeiro milénio em que a Humanidade se vê confrontada não com a sua falta de poder mas sim com o seu excesso de poder. Se olharmos para o passado, não há nunca uma situação em que o problema da Humanidade fosse o poder a mais. Pelo contrário, o problema era termos poder a menos, as pessoas morriam, tinham doenças e sofriam calamidades precisamente porque não conheciam as coisas e não tinham poder para as alterar. Hoje em dia é ao contrário, morremos, ficamos doentes e temos calamidades porque temos um poder excessivo e não controlável. Tornamo-nos numa espécie de força natural, provocando problemas graves como acidentes nas empresas químicas, acidentes nucleares e alterações na atmosfera. Por isso, neste momento procuramos o ponto de equilíbrio. SR – Neste contexto, como é que classifica o século XX? VSM – Dos últimos três séculos, este é talvez o século mais estranho e com um saldo ainda mais incerto. A primeira metade do século XX é desastrosa porque até à 2ª Guerra Mundial é um século de sombras. E curiosamente são sombras que ocorrem sob a bandeira das grandes esperanças salvadoras. As pessoas criam expectativas enormes, a política torna-se uma espécie de competição entre projectos salvíficos, prometeicos e libertadores, os povos são embriagados com promessas como o nacionalismo, que leva a grandes matanças na 1ª Guerra Mundial, depois vem a esperança bolchevique, uma esperança comunista que conduziu a uma situação muito complexa e que leva a quer grandes países como a Rússia e a China ainda hoje vivam essa tragédia da História Mundial. Depois vieram as promessas dos regimes fascistas de direita e que conduziram à 2ª Guerra Mundial. Ou seja, este foi o século em que a utopia política se tornou numa utopia criminosa e sangrenta, numa contra-utopia. Depois vem a segunda metade do século, que é fundamentalmente caracterizada pelo crescimento exponencial da sociedade tecnico-científica e, neste momento a técnica está em toda a parte, para o bem e para o mal. Quanto a Portugal, neste contexto, nós também tivemos as nossas utopias, só que foram utopias associadas a uma figura extremamente inteligente mas, ao mesmo tempo, também extremamente crítica, céptica e inimiga da modernidade. Ou seja, o século XX português foi iluminado pela figura de António Oliveira Salazar que era um homem de uma enorme inteligência e de uma grande cultura. Ele não era um cabo austríaco, como o Adolf Hitler, nem um jornalista com poucos estudos e pouca vocação como Benitto Mussolini, ou seja, embora eles fossem pessoas inteligentes não dispunham da tarimba académica de Salazar. Entre todos os ditadores de direita, desde Francisco Franco a Hitler, Salazar é a figura intelectual mais relevante. Salazar tinha um projecto para Portugal, que era o da resistência à modernidade. SR – Esse projecto de Salazar para Portugal foi, de facto, o responsável pelos atrasos do país, face ao resto da Europa, ou os problemas eram ainda mais profundos? VSM – Havia um passivo que já vinha de trás e que Salazar, deliberadamente, prolongou. Primeiro, em Portugal não aconteceu a revolução educativa que ocorreu no resto da Europa no século XIX. Esta revolução traduziu-se no acto de tornar obrigatório o ensino e generalizou-se em toda a Europa, até mesmo em Espanha. E isso ocorreu porque era preciso unir os cidadãos em volta do Estado, ou seja, em vários países havia estados mas não havia nações. Por exemplo, em França só um terço da população é que tinha o francês como língua materna, o resto eram dialectos. Então, os estados tiveram necessidade de construir escolas para formar cidadãos. Mas em Portugal isso não acontecia porque, o facto de sermos uma nação muito antiga, fez com que as pessoas falassem todas a mesma língua. Portanto, não havia o mesmo incentivo para a criação do ensino obrigatório e, por isso, nunca houve um grande esforço educativo. Isso não aconteceu no tempo da monarquia, a república tentou fazer alguma coisa mas não fez muito e Oliveira Salazar, deliberadamente, não insistiu na educação deixando largas camadas da população completamente analfabetas. Ora este foi um aspecto fundamental porque, não havendo revolução educativa dificilmente haveria revolução industrial, na medida em que para a revolução industrial era preciso o mínimo de preparação das pessoas para a semântica ligada ao trabalho nas fábricas. Uma outra característica que levou aos atrasos de Portugal, teve a ver com o facto de sermos uma sociedade onde o Estado sempre foi relativamente fraco. Em Portugal, o Estado nunca foi capaz de desempenhar algumas das tarefas que outros estados fizeram em muitos outros países do mundo. Por exemplo, o Estado português nunca construiu uma rede de estradas e uma rede de saúde pública como deve ser, por falta de recursos e alguma falta de vontade política. A situação provocou a existência de uma nação a duas velocidades, com uma nação urbana que incluía Lisboa e Porto e o resto do país com uma nação rural e provinciana. Estas características ainda hoje se mantêm, embora mais esbatidas. As coisas começaram a mudar a partir dos anos 60, com o primeiro surto de industrialização, de que Setúbal foi exemplo, verificando-se também uma internacionalização da nossa consciência nacional, seja com os emigrantes ou com os que iam para o estrangeiro fugidos da guerra em África. Mas o passo decisivo para a mudança foi a revolução de Abril. É um processo que ainda decorre, é lento mas qualquer um de nós já sente as diferenças. SR – Neste contexto, como é que vê a evolução do distrito de Setúbal? VSM – Setúbal é um caso muito curioso porque até ao século XX era um distrito caracterizado por três aspectos fundamentais: a agricultura e a pesca, bem como as actividades comerciais relacionadas com estes sectores, e a sua proximidade a Lisboa que se definiu mais pela construção do caminho de ferro. Este modelo começou a ser posto em causa com a industrialização da região e com um certo deslocamento da política portuária para o norte do país. E sobretudo, devido ao esbatimento da nossa relação com o mar, assistimos a uma perda da competitividade da região. Esse processo acentua-se nos anos 60, com a industrialização e o surto de migração porque as pessoas surgem das zonas rurais para trabalharem nas zonas industriais. Neste momento, chegámos a um ponto em que é necessário repensar um pouco os dados relativos à identidade regional. As identidades fazem-se e julgo que em Setúbal há elementos históricos e uma memória que podem fazer parte de uma identidade a construir. Neste momento há uma certa amnésia e uma certa paralisia que se devem ao facto do distrito não saber muito bem o que fazer de si próprio. O anterior debate sobre a regionalização mostrou isso mesmo, há uma tendência para esbater essa identidade e para dilacerar o distrito em duas grandes zonas: uma que seria alentejana e outra que seria lisboeta. Parece-me que as afinidades geográficas, económicas, sociais e políticas que o distrito tem com estas duas grandes regiões pode ser o factor fundamental de valorização da tal identidade que importa despertar. E o que é necessário a essa identidade é a criação de alguns valores e ícones comuns, para além de que precisamos de ultrapassar uma certa visão paroquial e concelhia dos projectos de desenvolvimento. Por outro lado é necessário que exista, por parte da sociedade civil, um visão mais alargada das causas comuns. SR – Que perspectivas é que o distrito tem de evoluir nos próximos anos? VSM – Nós temos um potencial humano muito considerável e o grande problema é a nossa capacidade de organização. Por isso, o grande potencial que temos ainda não está suficientemente organizado e, por isso, não cria a sinergia necessária para produzir resultados. A nossa evolução poderia passar por duas vertentes essenciais: ou temos uma certa capacidade de criação política de oportunidades, o que implicaria uma renovação da forma como nos organizamos politicamente e, talvez dos nossos líderes regionais, ou então temos no sectores empresarial e social um conjunto de iniciativas para fazerem aquilo que a política não fez. Estou a pensar em projectos ligados ao turismo ou às tecnologias de informação que, de certa forma, aproximasse a tal massa crítica. Um outro projecto que também pode ser positivo diz respeito à implementação da Universidade em Setúbal, onde até agora só temos o politécnico, um pólo universitário particular e um da Universidade Nova de Lisboa. SR – Como é que perspectiva o século XXI e o próximo milénio? VSM – Há uma diferença fundamental em relação ao que pensavam os nossos avós na passagem do século XIX para o século XX. Se procurarmos na imprensa do século passado, verificamos que existia um optimismo excessivo em relação ao novo século, uma grande confiança no futuro e o sentimento de que a técnica era a salvadora. O que se passa agora é que o optimismo é muito mais moderado, ou por outra, o que predomina não é o optimismo mas sim uma certa apreensão. Diria que existem mesmo razões para isso e acho que o século XXI começa exactamente com um forte sentido de prudência e de expectativa. Há um conjunto de tarefas que este novo século herdou do século passado, e de cuja boa execução depende a razão que temos para haver mais ou menos esperança. Sem qualquer dúvida que as questões centrais, de cujas respostas depende o nosso futuro: a da nossa relação com a Natureza – a questão da ecologia é fundamental porque sem, isso não há civilização – e a questão da paz e da guerra. Se não conseguirmos resolver o primeiro problema e destruirmos a Natureza, o futuro da humanidade fica muito comprometido, por outro lado se não conseguirmos que estes mais de seis mil milhões de pessoas que habitam sobre a Terra o façam de forma pacífica, também não teremos muito futuro porque, embora adormecidas, as armas nucleares continuam a existir e, em qualquer momento, podem ser usadas em guerras regionais. |
Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |