Edição Nº 106 • 10/01/2000 |
Ano 2000 apanha Setúbal descaracterizada Profundo conhecedor da história do país e, particularmente, da história e da realidade actual da região de Setúbal, o historiador António Matos Fortuna vê a evolução do distrito com alguma apreensão. Por considerar a região cada vez mais descaracterizada e com perdas de identidade, lembra que os erros evitam-se conhecendo o passado comum e tentando ultrapassar as divergências que impedem o progresso. Apesar de apreensivo quanto à capacidade da região em responder atempadamente aos desafios que o ano 2000 apresenta, Matos Fortuna admite que a actualização é a única saída para um distrito que se quer na crista do progresso. |
– Enquanto historiador dedicado à região, como é que vê a evolução dos acontecimentos ao longo deste milénio? António Matos Fortuna – Vejo-a com muito interesse porque foi neste milénio que se fundou Portugal e em que se afirmou a importância da península de Setúbal. Foi neste milénio que se afirmou a importância de Palmela, à volta da qual cresceu a região e pela qual nasceu a cidade de Setúbal, e foi também nessa ocasião que se sentiu a influência da Ordem de Santiago. Por isso, à excepção do concelho do Seixal, que foi criado no século passado, em todos os concelhos do distrito existem provas da influência desta Ordem, através das imagens da Cruz de Santiago. É o Mestre de Santiago que torna Setúbal independente de Palmela, aliás sabe-se que Palmela é ‘mãe’ de todos os concelhos em volta, com excepção do de Alcácer do Sal. Aquele concelho foi muito importante no desenvolvimento do distrito, quer por via do seu crescimento e da posterior criação dos outros concelhos, quer por causa da acção directa dos palmelões no progresso do concelho de Setúbal, hoje capital de distrito. Houve uma altura em que, terminada a luta com os mouros e estabelecida a paz no reino, as populações de Palmela mudaram-se para Setúbal devido às potencialidades da sua zona ribeirinha. A terra cresceu de tal maneira que, mais tarde, veio a tornar-se num concelho e numa cidade, enquanto Palmela permaneceu com o estatuto de vila. SR – No entanto, a atribuição do estatuto de concelho a Setúbal não foi pacífica? AMF – Não, porque na reforma administrativa do regime liberal de 1836/1855, anexou-se Palmela a Setúbal tendo esta quadruplicado a sua superfície. Os palmelões, que tinham sido os pais de Setúbal, não gostaram da decisão e decidiram lutar pela sua independência. No entanto, a restauração do concelho de Palmela só veio a ocorrer em 1926 por ocasião da criação do distrito porque Setúbal, que já era uma terra muito importante no país, não queria abdicar daquela zona tão rica. SR – Que importância teve Setúbal no contexto do desenvolvimento do país? AMF – Setúbal sempre foi das terras com maior desenvolvimento económico particularmente devido às suas capacidades ribeirinhas e marítimas, à exploração do sal e, mais tarde, à indústria conserveira. E foi essa riqueza económica da região que trouxe a Setúbal invasões como a dos muçulmanos e a dos romanos. Isto para não referir as suas capacidades agrícolas e frutícolas que fizeram Setúbal ser conhecida como a terra das laranjas. O que nos leva a pensar que hoje em dia Setúbal está descaracterizada, num processo que tem vindo a ocorrer aos poucos. E eu pergunto onde é que está o setubalense castiço, o setubalense da baixa maré? Já nem sequer se ouve carregar nos erres. SR – Quer dizer que as populações correm o risco de se homogeneizar e perder a sua identidade própria? AMF – Sem dúvida que é isso que está a acontecer e esta península entre o Tejo e o Sado está toda ela descaracterizada e cada vez mais igual em quase tudo. Claro que ainda podemos falar das pegas de toiros na Moita e nas touradas em Alcochete, mas isto tem já muito folclore e pouco de autenticidade. No entanto nem tudo é mau, uma vez que ao longo dos tempos Palmela tem conseguido preservar algumas tradições e um pouco da sua identidade. Ou seja, a onda que ao longo deste século fez transbordar Lisboa para a banda de cá parece não ter aguentado as alturas das serras de Palmela. O mesmo não se pode dizer de Almada, Barreiro, Montijo e Alcochete que ao longo dos anos foram influenciados pelas travessias e pela migração de pessoas para Lisboa, o que foi trazendo novos hábitos e novas necessidades. O resultado é um pouco a descaracterização e o facto de sermos, cada vez mais, todos iguais uns aos outros. SR – Neste contexto, como é que vê este ano 2000 e o progresso da região? AMF – Com alguma apreensão porque, para evoluir é preciso conhecer e respeitar o passado histórico. E isso parece estar longe de acontecer na região onde, por exemplo, cada vez mais se vê urbanizações a torto e a direito em cima das antigas e tradicionais quintas que deram nome à região. As chamadas casas caramelas, pequenas, pintadas de branco com uma faixa azul na parede exterior, são típicas da região e agora quase não existem. Isto quando há cerca de 30 anos conseguíamos vê-las por aqui às dúzias. Foi o chamado progresso industrial, que a partir da década de 60 trouxe à região a indústria naval e a indústria automóvel. Este foi o grande salto da região, potenciado pelo 25 de Abril de 1974 que trouxe a Setúbal outras novas tecnologias. Agora tem vindo a surgir uma onda de preservação, através da criação de museus em toda a região, de tal maneira que já me parece haver um excesso de classificação de monumentos e de criação de núcleos museológicos. SR – Que desafios trará este novo ano para a região? AMF – Este ano 2000 é imprevisível para a região porque se colocam diversos desafios para os quais o distrito tem de estar preparado, sob pena de ficar para trás na fila do progresso. Ele é o desafio da informática, da Internet, das novas tecnologias e do progresso da ciência. É inevitável que Setúbal se prepara com cuidado para as apostas que se avizinham nos próximos anos, agora o que é preciso saber é como e quando a região se preparará para isso. É preciso ver que o distrito tem duas faces distintas: a da península, mais evoluída, e a do litoral alentejano cujo progresso tem sido mais lento. Portanto, parece-me que o progresso vai continuar a dar-se em duas velocidades tal como ocorreu até agora. Isto embora se saiba que o próprio litoral alentejano mudou muito nos últimos anos. Já nem se sabe onde anda o alentejano típico, aquele das anedotas. SR – Como é que encara a passagem do século e do milénio? AMF – Vejo esse futuro próximo com muita apreensão e algum medo relativamente ao que aí vem. No entanto também sei que os medos não resolvem nada e que precisamos de soluções para nos ajustarmos às novas realidades que poderão surgir no futuro. E vejo-o por mim, que ainda não sei mexer nos computadores. Tenho consciência de que essa adaptação é uma grande prioridade porque, se não o faço fico excluído do processo de desenvolvimento global. Assim tem de ser a sociedade no futuro, aliás, à semelhança do que já ocorre agora na região de Setúbal, onde se tem vindo a fazer um esforço no sentido da modernização e do acompanhamento do progresso. Por outro lado, sabe-se que este processo só chegará a alguns e que, por essa razão, muita gente poderá ficar de fora e engrossar a lista dos excluídos da sociedade. Este será um dos maiores problemas do próximo século e a que a sociedade civil terá de estar permanentemente atenta para não provocar ainda mais desigualdades sociais. SR – Pode dizer-se que o grande desafio do próximo século estará na rapidez da capacidade de resposta das pessoas face ao ritmo a que o progresso ocorre? AMF – Esse é o maior de todos os desafios porque há que estar capacitado para uma rápida adaptação à evolução e prontos para responder de imediato às novas tecnologias que nos vão assolar nos próximos anos. Uma questão que, aliás, já se coloca hoje em dia, uma vez que o progresso e os novos desafios já estão a ocorrer em catadupa. |
Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |