Edição Nº 106 • 10/01/2000 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(Manifestação de apoio à unicidade sindical) |
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Pela consagração da unidade sindical na lei No dia 14 de Janeiro de 1975, milhares de trabalhadores do distrito de Setúbal rumaram a Lisboa para uma manifestação frente ao Ministério do Trabalho onde exigiam a aprovação da lei da unicidade. Manuel Guerreiro, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e membro da estrutura que veio a resultar na actual União de Sindicatos de Setúbal foi um dos responsáveis pela criação da lei da unicidade e um dos dinamizadores da manifestação em Lisboa. 25 anos depois, continua a acreditar que a razão estava do lado do MFA e dos trabalhadores, e defende mesmo ter sido esta união que levou o Governo a aprovar a lei que ainda hoje está em vigor. |
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– Onde é que estava no dia 14 de Janeiro de 1975? Manuel Guerreiro – Estava a organizar os trabalhadores do distrito para a manifestação marcada para o final da tarde, em Lisboa. Nessa altura era dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e membro da Comissão Coordenadora dos Sindicatos do Distrito, que deu origem à actual União de Sindicatos de Setúbal. Foi essa Comissão que ajudou a dinamizar os trabalhadores e a opinião pública para a participação na manifestação de Lisboa, a favor da unidade sindical. Era uma questão muito importante para o país saído há poucos dias da ditadura, numa altura em que o contexto internacional era marcado pela guerra do Vietname, pelas consequências do golpe do Chile, comandado pelos americanos, onde foi derrubado o governo eleito de Salvador Allende e onde mataram milhares de pessoas, desde comunistas a socialistas, passando por católicos, radicais e, inclusivamente, sindicalistas. Em Espanha vivia-se a ditadura franquista e a Grécia era governada pelos coronéis, ou seja, havia todo um contexto em que era normal que uma democracia se transformasse rapidamente numa ditadura por acção dos serviços secretos americanos. Em Portugal, tínhamos acabado de sair de uma ditadura e, logo que começámos a dar os primeiros passos começaram a movimentar-se algumas forças ligadas à CIA. Por isso defendemos a unidade sindical dos trabalhadores. SR – A participação dos trabalhadores do distrito foi significativa? MG – Lembro-me de estar junto ao Ministério do Trabalho, em Lisboa, e de ver muitos milhares de pessoas em manifestação, tendo alguns milhares desses manifestantes vindo de todos os pontos do distrito de Setúbal. Isso ocorreu com grande normalidade e as pessoas consideravam normal este tipo de manifestação. Não podemos esquecer que estávamos na altura do poder do MFA e do poder revolucionário legitimado. Lembre-se que, no dia anterior o MFA foi à televisão apoiar oficialmente a aprovação da lei da unicidade. A manifestação tinha sido marcada antes disso, porque no dia 12 de Janeiro o PS ameaçou sair do Governo caso a lei fosse aprovada, numa clara atitude de cobertura às forças de direita, cujas movimentações descambaram no 11 de Março. Ora, com a força dada pela decisão do MFA, ainda maior foi a força dos trabalhadores que o que pretendiam era a aprovação da lei, mostrando ao mesmo tempo, que a massa operária continuava ao lado do Movimento das Forças Armadas. SR – Porque é que consideraram necessário consagrar a unidade na lei? MG – Tanto na altura como hoje, defendemos a unidade na acção, ou seja, partindo da diversidade de opiniões das pessoas o importante era discutir os problemas e manter os trabalhadores unidos para defender os seus direitos enquanto trabalhadores. Acabados de sair de uma ditadura e com todos perigos da recente democracia ser revertida noutra ditadura, porque havia forças poderosas a movimentar-se nesse sentido, o que se pretendeu foi salvaguardar a unidade dos trabalhadores portugueses. Nesse contexto, existiam duas componentes essenciais para a defesa da democracia: por um lado o MFA e a sua unidade porque foi este movimento militar que, de facto, derrubou a ditadura, e por outro a massa operária que transformou o golpe de Estado numa revolução. Portanto, o que defendíamos era a unidade destas duas componentes e a unidade de cada uma delas. Face aos perigos que a revolução corria, era fundamental que o MFA continuasse unido e que as massas que lhe davam apoio também continuassem unidas, mantendo ao mesmo tempo uma união entre si por forma a consolidar o processo democrático. SR – Pode dizer-se que a manifestação que levou trabalhadores de Setúbal a Lisboa estava para além da própria luta pela liberdade sindical? MG – Os objectivos eram mais altos porque, só por si, a consolidação do processo democrático abria caminho à melhoria das condições de vida dos trabalhadores, às leis e aos direitos dos trabalhadores. Ou seja, era a concepção de democracia consolidada que movimentava as pessoas e não o direito sindical por si, uma vez que este era uma consequência da revolução em curso. Para além disso, para nós a liberdade sindical nem sequer estava em questão porque ela foi conquistada no dia 25 de Abril. Ou seja, quando o MFA revogou as normas corporativas, afastou todos os entraves à sindicalização. E estando a liberdade sindical instituída, do que se tratava agora era como regulamentar e garantir o direito sindical nas leis portuguesas. E a proposta de lei surge da Intersindical precisamente porque os trabalhadores consideravam urgente o derrube do edifício jurídico e, ao mesmo tempo, ir criando um edifício jurídico democrático. Questões como a liberdade sindical, de imprensa, de reunião e de associação eram essenciais para a construção do novo Estado democrático, portanto à medida em que se ia defendendo a democracia estas questões iam surgindo. Esta é uma das muitas coisas que os trabalhadores conseguiram por essa altura, como foi também o caso do salário mínimo nacional, das férias e de um conjunto de direitos que hoje as pessoas pensam que sempre tiveram mas que foram conquistados pelos trabalhadores há 25 anos. É preciso ver que há 25 anos nós estávamos a construir de raiz a super-estrutura jurídica do país porque não havia regulamentação das coisas e nem sequer uma Constituição da República. SR – Apesar da contestação, a lei foi aprovada a 21 de Janeiro. O que é que terá levado o Governo a mudar de opinião e aprovar o diploma? MG – Era muito difícil às forças que estavam no Governo não se afirmarem por aquilo que as massas defendiam. Basta olhar para os programas dos partidos políticos nessa altura, se calhar os programas mais revolucionários não eram o do PCP, mas sim os do PS ou do PPD. Ou seja, do ponto de vista meramente teórico, eles encostavam-se àquilo que era a opinião das massas porque sabia-se que a opinião das massas tinha um enorme reflexo naquilo que o poder fazia. Por outro lado, é bom lembrar que o Governo era constituído pelas várias forças presentes na sociedade e que muitas pessoas do Governo tinham ligações históricas aos sindicatos. Foi o caso de Avelino Gonçalves, o primeiro ministro do Trabalho após o 25 de Abril, que era coordenador da Intersindical. Portanto, não foi por acaso que o primeiro salário mínimo nacional foi instituído nessa altura. É também sabido que o actual Secretário Geral do PCP, Carlos Carvalhas, que foi secretário de Estado do Trabalho, era na altura representante dos sindicatos nas comissões tripartidas. Ora a relação de forças levava a que se aprovassem as decisões dos trabalhadores. O próprio MFA, através de Vasco Lourenço, veio publicamente apoiar a unicidade, tendo o mesmo acontecido com o então ministro do Trabalho, Costa Martins, um dos mais prestigiados homens do Movimento das Forças Armadas. E ele foi um dos maiores defensores da unidade na lei porque tinha um enorme contacto diário com os trabalhadores e sabia que era isso que eles defendiam. SR – Depois de aprovada a lei, os trabalhadores sentiram-se mais descansados em relação às suas preocupações? MG – Não deu tempo para descansar porque muita coisa surgiu de imediato. A lei sindical foi apenas um episódio na revolução, ou seja, foi muito importante mas a revolução exigia trabalho consecutivo. Lembro-me de trabalharmos 70 horas de seguida, de chegar a casa com a cara deformada por falta de descanso e de andar de cabelo comprido por não ter tempo para o cortar. Andávamos todos guedelhudos não só por ser moda na altura mas principalmente porque não havia tempo para isso. Havia uma infinidade de tarefas a cumprir e os sindicalistas eram chamados para tudo, desde termos de nos preocupar com os salários dos trabalhadores até termos de garantir o emprego. Éramos solicitados para tudo, desde as questões laborais às questões sociais e vivíamos intensamente cada momento. Por essa altura foram negociados dezenas de contratos colectivos de trabalho que vieram criar os direitos que as pessoas hoje têm e se calhar pensam que sempre os tiveram. Não é verdade porque todos esses direitos foram conquistados e regulamentados por uma geração de trabalhadores com prejuízo da sua vida profissional e pessoal. SR – A manifestação ocorrida a 14 de Janeiro terá tido alguma coisa a ver com a tentativa de criação de uma outra central sindical? MG – Possivelmente, porque já existiam movimentos e contactos nesse sentido. Lembro-me até de eu e outros camaradas termos sidos contactados por algumas forças ligadas à CIA, no sentido de se criar alguma movimentação que influenciasse e mudasse o rumo dos acontecimentos. Por essa altura já tinha ocorrido o 28 de Setembro e, por isso, já existia alguma demarcação de forças entre aqueles que lutavam pelo processo democrático e os que queriam fazê-lo retroceder. Não direi que já se poderia adivinhar o Verão Quente, mas posso dizer que já existiam concepções e visões diferentes sobre a arrumação das coisas e os caminhos do futuro. Do ponto de vista táctico, quem defendia a unidade na lei defendia a consolidação da democracia, no entanto isso não quer dizer que quem não defendia a unidade fosse contra a democracia. E não faço essa aleivosia contra os que não defendiam a unidade porque sei que muitos defendiam a mesma coisa que nós e também eram democratas. O que se verificava é que tinham uma concepção muito mais liberal e capitalista do sistema, sem pôr em causa o domínio económico. SR – Partilha da ideia de alguns dirigentes sindicais, de que as movimentações pró e contra a unicidade terão estado na génese da divisão dos sindicatos? MG – Foi aí que começou o processo que culminou na divisão dos sindicatos e que a lei da unicidade queria evitar. Quem se movimentava para dividir não eram os próprios trabalhadores mas sim algumas forças, como a CIA e o SPD alemão, que mobilizaram dinheiro e gente em Portugal para promover a divisão dos trabalhadores. Foram criados sindicatos artificiais e as pessoas foram-se dividindo, por isso ainda hoje se diz que essa era a tentativa de partir a espinha à Intersindical. A chamada Carta Aberta, de contestação à Inter, surgiu já em 1976, na sequência das intensas discussões entretanto realizadas com vista à elaboração dos estatutos dos sindicatos. Foi uma posição tomada por um grupo de sindicalistas muito ligados ao PS e ao PPD, não vou dizer nomes porque depois disso alguns afastaram-se desse processo. Refiro apenas Maldonado Gonelha, que foi um dos mentores do processo, nessa altura era mais um dirigente socialista que sindical. Quanto a Salgado Zenha, era dirigente do PS e, por isso, esteve na luta contra a unicidade. Mas não se pode dizer que tivesse tido um papel muito activo no processo subsequente. Portanto, durante as discussões para os estatutos dos sindicatos começaram a aparecer alternativas de estatutos com outras concepções, o que provocou o aprofundamento da divisão entre os trabalhadores. Em alguns sectores começaram a aparecer fissuras e afastamentos, num processo que se foi desenvolvendo ao longo do tempo e à medida em que o processo democrático foi avançando. Depois há um momento em que se expressa essa ruptura quando se cria a UGT, em 1976. SR – Então não partilha a ideia de que a existência de duas centrais sindicais pode garantir a pluralidade no sector? MG – Isso é uma falsidade porque os direitos dos trabalhadores não resultam da pluralidade mas sim da luta que eles travam com os patrões. quanto mais unidos os trabalhadores estiverem mais força têm junto dos patrões e para que eles se unam é preciso que haja espaço, democracia e abertura para a discussão sobre as diferenças e opinião, quer quanto ao que vão reivindicar quer quanto à forma como o vão fazer. Com a criação da UGT, aconteceu o que algumas forças pretendiam, ou seja, os trabalhadores começaram a perder peso na sociedade favorecendo assim os interesses patronal. A partir do momento em que se verificou a divisão, passou a haver um interlocutor sindical que defendia os interesses dos patrões falando em nome dos trabalhadores, numa atitude muito mais moderada atirando ‘às malvas’ a democracia dentro dos próprios sindicatos. SR – Se isso aconteceu, então a lei da unicidade nunca chegou a ser aplicada? MG – Ela foi violada porque quem defendia a unidade consagrada na lei não tinha a concepção de que essa unidade se devia fazer por medidas repressivas. A ideia era que a unidade deveria ser feita por acção político-sindical, ou seja, através da discussão democrática entre as pessoas. Ou seja, apesar de sabermos do desrespeito pela lei nunca chamámos a polícia para fazer aplicar a lei à força. Mais tarde o Governo revogou alguns artigos da lei para facilitar o processo e andou-se assim durante anos. Mas é preciso dizer que a cisão que se deu nunca foi muito ao nível dos trabalhadores mas sim da super-estrutura. E isso pode ver-se pela história e pela força dos trabalhadores de Setúbal, que foi um distrito decisivo para a construção da democracia em Portugal. Temos uma grande história na luta anti-fascista porque este foi um distrito que nunca aceitou a ditadura, durante a revolução tivemos uma participação fundamental na construção da democracia e por isso a criação da UGT não teve aqui grande expressão. E a prova da importância da unicidade está no facto de ter sido aprovada há 25 anos e ainda hoje existir por ser considerada uma lei muito actual. SR -25 anos depois, valeu a pena a luta dos trabalhadores portugueses? MG – Falar da História desta época é muito interessante quanto nós próprios fomos autores dela. Se tivesse que voltar atrás voltava, embora não repetisse alguns erros cometidos por falta de experiência. É preciso dizer que éramos muito inexperientes e muito novos. Quando comecei na luta sindical tinha 17 anos, o 25 de Abril apanhou-me com 22 anos e aos 23 era dirigente do Sindicato do Comércio. Este processo foi extraordinário e nós que estivemos envolvidos nele pertencemos a uma geração privilegiada porque tivemos a rara felicidade de participar na construção de um país. Muitos dos direitos que as pessoas hoje têm e que pensam que são tão naturais como o ar que respiram foram direitos que nós, sindicalistas, escrevemos com o nosso próprio punho. Por isso, apesar de todos os avanços e recuos, continuo a achar que valeu a pena. Sei que continua a haver gente que vive mal, com muitos pobres e alguns ricos mas o certo é que os patamares de vida são agora muito melhores do que há 25 anos. Dada a importância do processo revolucionário, é importante chamar a atenção para a forma como se ensina nas escolas, que me parece ser a pior forma de o fazer. Os professores muitas vezes ensinam mal um período da História tão importante como foi o 25 de Abril e o processo revolucionário. Isto quando estão cá os autores do processo que poderiam explicar como as coisas se passaram. E isto é importante porque há que ter consciência do que foi este período da nossa História e a sua importância para o país. Já estamos na altura de falar abertamente sobre este assunto, há documentação e factos que vão sendo conhecidos e o país precisa de saber a História verdadeira. É preciso combater a actual tendência para subverter a História submetendo-a a uma determinada visão das coisas. A História são os factos e os acontecimentos e isso deve ser dado a conhecer para evitar esquecimentos e o consequente reaparecimento de forças anti-democráticas que já hoje estão presentes na sociedade portuguesa. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |