Edição Nº 112 • 21/02/2000 | |
![]() |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Ocupação de palacete na Cova da Piedade para instalação de uma clínica popular) |
|
Palacete na Cova da Piedade ‘virou’ clínica
|
|
– Onde é que estava no dia 28 de Fevereiro de 1975? Fernando Pereira – Estava na Cova da Piedade, em preparativos para a ocupação do palacete. A ideia surgiu logo após o 25 de Abril quando, depois de ter estado preso, regressei à Cova da Piedade e deparei com coisas que não tinham sido mudadas. Como o palacete era uma delas, e ainda por cima estava abandonado, pensei que aquele edifício poderia servir para uma boa causa. Então lembrei-me que aquilo poderia dar uma boa clínica para partos e para pediatria, uma vez que esta zona era muito pobre em serviços de maternidade e de protecção à infância. E foi assim que surgiu o nome da Clínica Popular de Parturientes e Protecção à Infância da Cova da Piedade. SR – Depois de idealizado esse projecto, foi fácil obter a adesão da pessoas para a ocupação do palacete? FP – Foi fácil, na medida em que, sendo eu da LUAR, todos os militantes de Almada e da Cova da Piedade aderiram à acção. Chegada a hora marcada, fizemos a ocupação que foi coberta pelos jornais e pela televisão. E para evitar falhas, só distribuímos o comunicado à população, alertando para o que se iria passar, e deixámos a imprensa aparecer no local no momento em que estava a ser consumada a ocupação do palacete. Não tivemos problemas e ninguém se opôs à ocupação, tendo as pessoas aderido assim que lhes passou a admiração, já que tinham sido apanhadas de surpresa. Isto apesar de cerca de um mês antes termos posto um dístico e um cartaz na porta do palacete a dizer que ali seriam as futuras instalações da Clínica Popular. SR – A restauração do palacete também foi obra da LUAR? FP – Depois de ocupadas as instalações, as pessoas começaram a limpar e a restaurar todo o edifício. Foram pessoas da LUAR e outros tantos voluntários entre a população que, durante muito tempo, deram o seu trabalho e até materiais para recuperar todo o edifício e restaurar as pinturas. Mesmo com as obras a decorrer, a Clínica começou logo a funcionar a partir do primeiro dia da ocupação, com um médico a dar consultas. A ideia era aumentar os serviços e fazer o que veio a ser o Serviço Nacional de Saúde, ou seja, o direito à saúde gratuita. Os médicos e enfermeiros que lá trabalharam fizeram-no, também, voluntária e gratuitamente. SR – Como é que conseguiram apetrechar a clínica de equipamentos médicos? FP – Alguns dos equipamentos foram comprados mas muitos foram oferecidos por gente que os trazia de várias zonas do país mas também da Alemanha, França, Suécia e Holanda. Quanto aos medicamentos, também eram oferecidos por pessoas que queriam ajudar a clínica. Então as caixas eram classificadas e rotuladas, sendo entregues gratuitamente aos doentes que delas necessitavam. A isto juntava-se um bloco de partos, que viu nascer muitas crianças. As pessoas faziam de propósito para que os filhos nascessem na clínica, de tal forma que algumas faziam mal as contas e as crianças nasciam à porta do palacete. SR – Se o projecto era bom, porque é que a clínica teve de fechar? FP – A clínica ainda trabalhou bem durante muito tempo, mas a partir de certa altura as coisas começaram a correr mal devido a aproveitamentos políticos e partidários da situação. Embora tenha sido formada por gente da LUAR, a clínica era para toda a gente e não só para alguns, pelo que eu sempre combati aqueles aproveitamentos políticos. E foram precisamente os aproveitamentos feitos por alguns movimentos e partidos que levaram ao fim da Clínica Popular, cerca de dois anos depois. As coisas foram-se deteriorando e, entretanto saí de lá porque, para dar de comer a muitos filhos, tinha de procurar a minha vida. Durante esses dois anos, infiltraram-se ali muitas pessoas que criaram um ambiente muito esquisito na clínica, perdeu-se o tal espírito e a clínica acabou. SR – Entre os que se infiltraram estavam pessoas do PCP? FP – E até de movimentos das mulheres, entre outras coisas, como os trotskistas, a UDP e o PRP. Até que eu e outros como eu saíram de lá e as coisas caíram por si, desaparecendo assim a Clínica Popular da Cova da Piedade. No entanto, os princípios desta clínica vingaram e o exemplo foi seguido, tendo resultado naquilo que hoje conhecemos como Serviço Nacional de Saúde. SR – A ocupação deste palacete foi a primeira em que esteve envolvido? FP – Sim e esta foi a primeira ocupação do género em Portugal. Depois o processo nunca mais parou, tendo-se seguido as ocupações das casas para habitação. E não tendo experiência nenhuma nisto, era a força de vontade e o sentimento de ajuda que me levavam a promover as ocupações. Éramos nós, da LUAR, que fazíamos as ocupações e nada o impedia. As pessoas precisavam de uma casa, nós víamos as hipóteses de lhes arranjar habitação e depois fazíamos as ocupações. Às vezes as coisas complicavam-se, especialmente quando víamos que algumas pessoas não precisavam de casa. Nesses casos tínhamos de resolver as coisas e dizer-lhes para saírem porque não tinham direito às casas. E de facto, fomos enganados muitas vezes. SR – Que outro tipo de ocupações fizeram os membros da LUAR? FP – A ocupação do palacete, que era do ‘senhor’ da terra, foi a mais significativa. Mas fizemos muitas outras parecidas em edifícios antigos e abandonados, para instalar diversos serviços. Vinham pessoas de muito longe à procura do meu apoio e do apoio da LUAR, para ocuparem casas em que queriam instalar creches populares e jardins de infância. Ou seja, tudo o que era popular saiu daqui, da LUAR da Cova da Piedade. O que nós queríamos era fazer alguma coisa pelas pessoas que nada tinham. Por outro lado, cumpríamos sempre o que prometíamos e avisávamos por escrito de todas as nossas acções para mantermos tudo em ordem, preservar o património e conservar os edifícios. SR – Nesse caso, o que é que aconteceu ao ‘recheio’ e às pinturas do palacete? FP – Desapareceram mais tarde porque enquanto eu lá estive as coisas foram todas restauradas e conservadas. Depois, com aquela confusão dos aproveitamentos políticos, as pessoas esqueceram-se que aquilo precisava de cuidados e de manutenção. Até houve tectos que abateram e muita coisa que se estragou. Tenho conhecimento das pessoas que lá estiveram, entre elas pessoal da UDP, e dos outros todos que por lá passaram nesse período, que nada fizeram para conservar o edifício e o seu património. SR – As ocupações eram feitas com alguma responsabilidade ou eram acções expontâneas sem grande controlo? FP – As coisas eram quase sempre bem feitas, mas houve casos que achei um exagero porque as pessoas não o mereciam. Tínhamos boa vontade e fomos enganados em relação a algumas pessoas. O que acho mais triste é que, muitas pessoas que tirei das barracas e pus em prédios dignos hoje não me falam porque mais tarde aderiram a determinado partido. E como naquela altura era de bom tom dizer mal de mim e da LUAR, viraram-se contra mim depois de lhes ter conseguido casa para viver. SR – Porque é que, apesar de ter desencadeado tantas acções populares, a LUAR não teve tanto peso político como outros movimentos ou partidos? FP – A LUAR era uma força de acção constituída por muita gente de diversas correntes da esquerda. Estávamos envolvidos num projecto revolucionário e nunca vimos isto como um partido. Entretanto, o projecto desmoronou-se e cada um foi para o seu lado. Uns foram para campos bem diferentes mas foram caminhos que escolheram. Por outro lado, eu nunca estive interessado nesses caminhos e mantive-me sempre coerente. Antes do 25 de Abril já tinha alguma actividade política, fui do PCP até à primeira vez em que fui preso devido à minha participação no assalto ao Quartel de Beja, em Janeiro de 1961. Quando saí da prisão, deixei de ser do PCP e continuei uma luta activa, pouco tempo depois fui novamente preso por estar com um grupo da LUAR e saí na sequência do 25 de Abril de 1974. SR – Que tipo de recordações guarda do período revolucionário? FP – Foi uma época única e muito bonita porque as pessoas estavam juntas e muito unidas. Depois fiquei triste e muito aborrecido porque comecei a ver trabalhadores contra trabalhadores, pessoas de costas voltadas nas fábricas por não pertencerem à mesma cor política. Isso entristeceu-me bastante e fez-me afastar de tudo porque chegou-se a uma altura em que se dizia que “se não és da minha cor és contra mim”. O espírito revolucionário durou pouco tempo e perdeu-se o sentido de palavras como solidariedade e ajuda. SR – Está arrependido de se ter envolvido em acções do período revolucionário? FP – Nunca me arrependi disso. Lembro-me de ter chegado à Cova da Piedade no dia 27 de Abril de 1974, poucas horas depois de ter sido libertado, e de ter feito exactamente aquilo que prometi na prisão. Como eu nasci na rua com o nome de Oliveira Salazar, lá na prisão os guardas e agentes estavam sempre a lembrar-me disso. Então eu dizia que quando as coisas mudassem, a primeira iniciativa a tomar era mudar o nome à rua. Foi o que fiz naquele dia 27 de Abril. Mal cheguei à rua, cerca das duas da manhã, chamei alguns amigos e mudámos o nome para Rua da Liberdade. SR – Como é que vê o rumo que as coisas tomaram? FP – As coisas mudaram muito e podiam ter tido um rumo diferente se as pessoas quisessem. Embora as pessoas ainda façam alguma coisa para manter vivo o espírito do 25 de Abril, já nada é como era. Lembro-me de me terem dito que a revolução tinha de ser feita pelos trabalhadores, e enquanto trabalhador eu acreditava mesmo nisso. Não foram os trabalhadores a fazer a revolução nem nunca chegarão a fazê-lo porque hoje já não é possível. A não ser que surja uma nova ordem capaz de levantar os trabalhadores, mas também não acredito muito porque, embora se queira fazer crer o contrário, actualmente as pessoas estão muito divididas, estão metidas no seu trabalho e já não têm nada a ver com o movimento dos trabalhadores. |
|
Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |