[ Edição Nº 112] – Ocupação de palacete na Cova da Piedade para instalação de uma clínica popular.

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Edição Nº 11221/02/2000
25abril2-9116344

MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Ocupação de palacete na Cova da Piedade para instalação de uma clínica popular)

Palacete na Cova da Piedade ‘virou’ clínica
LUAR desencadeou onda de ocupações

fpereira1-8592305           No dia 28 de Fevereiro de 1975, um grupo de elementos da LUAR tomou o palacete da Cova da Piedade, da família António José Gomes. Abandonado já há algum tempo, o edifício foi reabilitado para a instalação de uma clínica com sala de partos e cuidados de saúde materno-infantis. Tratou-se da primeira ocupação do género em Portugal e precedeu centenas de acções similares por todo o distrito. Fernando Pereira foi o impulsionador das ocupações feitas pela LUAR e 25 anos depois vê o período revolucionário com um misto de saudade, pela beleza da época, e de tristeza devido ao rumo que os acontecimentos tomaram.


Setúbal na Rede

– Onde é que estava no dia 28 de Fevereiro de 1975?

Fernando Pereira

– Estava na Cova da Piedade, em preparativos para a ocupação do palacete. A ideia surgiu logo após o 25 de Abril quando, depois de ter estado preso, regressei à Cova da Piedade e deparei com coisas que não tinham sido mudadas. Como o palacete era uma delas, e ainda por cima estava abandonado, pensei que aquele edifício poderia servir para uma boa causa. Então lembrei-me que aquilo poderia dar uma boa clínica para partos e para pediatria, uma vez que esta zona era muito pobre em serviços de maternidade e de protecção à infância. E foi assim que surgiu o nome da Clínica Popular de Parturientes e Protecção à Infância da Cova da Piedade.

SR

– Depois de idealizado esse projecto, foi fácil obter a adesão da pessoas para a ocupação do palacete?

FP

– Foi fácil, na medida em que, sendo eu da LUAR, todos os militantes de Almada e da Cova da Piedade aderiram à acção. Chegada a hora marcada, fizemos a ocupação que foi coberta pelos jornais e pela televisão. E para evitar falhas, só distribuímos o comunicado à população, alertando para o que se iria passar, e deixámos a imprensa aparecer no local no momento em que estava a ser consumada a ocupação do palacete. Não tivemos problemas e ninguém se opôs à ocupação, tendo as pessoas aderido assim que lhes passou a admiração, já que tinham sido apanhadas de surpresa. Isto apesar de cerca de um mês antes termos posto um dístico e um cartaz na porta do palacete a dizer que ali seriam as futuras instalações da Clínica Popular.

SR

– A restauração do palacete também foi obra da LUAR?

FP

– Depois de ocupadas as instalações, as pessoas começaram a limpar e a restaurar todo o edifício. Foram pessoas da LUAR e outros tantos voluntários entre a população que, durante muito tempo, deram o seu trabalho e até materiais para recuperar todo o edifício e restaurar as pinturas. Mesmo com as obras a decorrer, a Clínica começou logo a funcionar a partir do primeiro dia da ocupação, com um médico a dar consultas. A ideia era aumentar os serviços e fazer o que veio a ser o Serviço Nacional de Saúde, ou seja, o direito à saúde gratuita. Os médicos e enfermeiros que lá trabalharam fizeram-no, também, voluntária e gratuitamente.

SR

– Como é que conseguiram apetrechar a clínica de equipamentos médicos?

FP

– Alguns dos equipamentos foram comprados mas muitos foram oferecidos por gente que os trazia de várias zonas do país mas também da Alemanha, França, Suécia e Holanda. Quanto aos medicamentos, também eram oferecidos por pessoas que queriam ajudar a clínica. Então as caixas eram classificadas e rotuladas, sendo entregues gratuitamente aos doentes que delas necessitavam. A isto juntava-se um bloco de partos, que viu nascer muitas crianças. As pessoas faziam de propósito para que os filhos nascessem na clínica, de tal forma que algumas faziam mal as contas e as crianças nasciam à porta do palacete.

SR

– Se o projecto era bom, porque é que a clínica teve de fechar?

FP

– A clínica ainda trabalhou bem durante muito tempo, mas a partir de certa altura as coisas começaram a correr mal devido a aproveitamentos políticos e partidários da situação. Embora tenha sido formada por gente da LUAR, a clínica era para toda a gente e não só para alguns, pelo que eu sempre combati aqueles aproveitamentos políticos. E foram precisamente os aproveitamentos feitos por alguns movimentos e partidos que levaram ao fim da Clínica Popular, cerca de dois anos depois. As coisas foram-se deteriorando e, entretanto saí de lá porque, para dar de comer a muitos filhos, tinha de procurar a minha vida. Durante esses dois anos, infiltraram-se ali muitas pessoas que criaram um ambiente muito esquisito na clínica, perdeu-se o tal espírito e a clínica acabou.

SR

– Entre os que se infiltraram estavam pessoas do PCP?

FP

– E até de movimentos das mulheres, entre outras coisas, como os trotskistas, a UDP e o PRP. Até que eu e outros como eu saíram de lá e as coisas caíram por si, desaparecendo assim a Clínica Popular da Cova da Piedade. No entanto, os princípios desta clínica vingaram e o exemplo foi seguido, tendo resultado naquilo que hoje conhecemos como Serviço Nacional de Saúde.

SR

– A ocupação deste palacete foi a primeira em que esteve envolvido?

FP

– Sim e esta foi a primeira ocupação do género em Portugal. Depois o processo nunca mais parou, tendo-se seguido as ocupações das casas para habitação. E não tendo experiência nenhuma nisto, era a força de vontade e o sentimento de ajuda que me levavam a promover as ocupações. Éramos nós, da LUAR, que fazíamos as ocupações e nada o impedia. As pessoas precisavam de uma casa, nós víamos as hipóteses de lhes arranjar habitação e depois fazíamos as ocupações. Às vezes as coisas complicavam-se, especialmente quando víamos que algumas pessoas não precisavam de casa. Nesses casos tínhamos de resolver as coisas e dizer-lhes para saírem porque não tinham direito às casas. E de facto, fomos enganados muitas vezes.

SR

– Que outro tipo de ocupações fizeram os membros da LUAR?

FP

– A ocupação do palacete, que era do ‘senhor’ da terra, foi a mais significativa. Mas fizemos muitas outras parecidas em edifícios antigos e abandonados, para instalar diversos serviços. Vinham pessoas de muito longe à procura do meu apoio e do apoio da LUAR, para ocuparem casas em que queriam instalar creches populares e jardins de infância. Ou seja, tudo o que era popular saiu daqui, da LUAR da Cova da Piedade. O que nós queríamos era fazer alguma coisa pelas pessoas que nada tinham. Por outro lado, cumpríamos sempre o que prometíamos e avisávamos por escrito de todas as nossas acções para mantermos tudo em ordem, preservar o património e conservar os edifícios.

SR

– Nesse caso, o que é que aconteceu ao ‘recheio’ e às pinturas do palacete?

FP

– Desapareceram mais tarde porque enquanto eu lá estive as coisas foram todas restauradas e conservadas. Depois, com aquela confusão dos aproveitamentos políticos, as pessoas esqueceram-se que aquilo precisava de cuidados e de manutenção. Até houve tectos que abateram e muita coisa que se estragou. Tenho conhecimento das pessoas que lá estiveram, entre elas pessoal da UDP, e dos outros todos que por lá passaram nesse período, que nada fizeram para conservar o edifício e o seu património.

SR

– As ocupações eram feitas com alguma responsabilidade ou eram acções expontâneas sem grande controlo?

FP

– As coisas eram quase sempre bem feitas, mas houve casos que achei um exagero porque as pessoas não o mereciam. Tínhamos boa vontade e fomos enganados em relação a algumas pessoas. O que acho mais triste é que, muitas pessoas que tirei das barracas e pus em prédios dignos hoje não me falam porque mais tarde aderiram a determinado partido. E como naquela altura era de bom tom dizer mal de mim e da LUAR, viraram-se contra mim depois de lhes ter conseguido casa para viver.

SR

– Porque é que, apesar de ter desencadeado tantas acções populares, a LUAR não teve tanto peso político como outros movimentos ou partidos?

FP

– A LUAR era uma força de acção constituída por muita gente de diversas correntes da esquerda. Estávamos envolvidos num projecto revolucionário e nunca vimos isto como um partido. Entretanto, o projecto desmoronou-se e cada um foi para o seu lado. Uns foram para campos bem diferentes mas foram caminhos que escolheram. Por outro lado, eu nunca estive interessado nesses caminhos e mantive-me sempre coerente. Antes do 25 de Abril já tinha alguma actividade política, fui do PCP até à primeira vez em que fui preso devido à minha participação no assalto ao Quartel de Beja, em Janeiro de 1961. Quando saí da prisão, deixei de ser do PCP e continuei uma luta activa, pouco tempo depois fui novamente preso por estar com um grupo da LUAR e saí na sequência do 25 de Abril de 1974.

SR

– Que tipo de recordações guarda do período revolucionário?

FP

– Foi uma época única e muito bonita porque as pessoas estavam juntas e muito unidas. Depois fiquei triste e muito aborrecido porque comecei a ver trabalhadores contra trabalhadores, pessoas de costas voltadas nas fábricas por não pertencerem à mesma cor política. Isso entristeceu-me bastante e fez-me afastar de tudo porque chegou-se a uma altura em que se dizia que “se não és da minha cor és contra mim”. O espírito revolucionário durou pouco tempo e perdeu-se o sentido de palavras como solidariedade e ajuda.

SR

– Está arrependido de se ter envolvido em acções do período revolucionário?

FP

– Nunca me arrependi disso. Lembro-me de ter chegado à Cova da Piedade no dia 27 de Abril de 1974, poucas horas depois de ter sido libertado, e de ter feito exactamente aquilo que prometi na prisão. Como eu nasci na rua com o nome de Oliveira Salazar, lá na prisão os guardas e agentes estavam sempre a lembrar-me disso. Então eu dizia que quando as coisas mudassem, a primeira iniciativa a tomar era mudar o nome à rua. Foi o que fiz naquele dia 27 de Abril. Mal cheguei à rua, cerca das duas da manhã, chamei alguns amigos e mudámos o nome para Rua da Liberdade.

SR

– Como é que vê o rumo que as coisas tomaram?

FP

– As coisas mudaram muito e podiam ter tido um rumo diferente se as pessoas quisessem. Embora as pessoas ainda façam alguma coisa para manter vivo o espírito do 25 de Abril, já nada é como era. Lembro-me de me terem dito que a revolução tinha de ser feita pelos trabalhadores, e enquanto trabalhador eu acreditava mesmo nisso. Não foram os trabalhadores a fazer a revolução nem nunca chegarão a fazê-lo porque hoje já não é possível. A não ser que surja uma nova ordem capaz de levantar os trabalhadores, mas também não acredito muito porque, embora se queira fazer crer o contrário, actualmente as pessoas estão muito divididas, estão metidas no seu trabalho e já não têm nada a ver com o movimento dos trabalhadores.

Entrevista de Pedro Brinca
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