Edição Nº 114 • 06/03/2000 |
Arqueologia vista ‘de lado’ pelos políticos
|
– Como é que classifica o distrito de Setúbal em termos de riqueza arqueológica? Carlos Tavares da Silva – O distrito é arqueologicamente muito rico porque temos aqui representadas todas as grandes fases do processo histórico. Temos aqui vestígios do processo de repovoamento desta área geográfica desde o Paleolítico inferior até aos nossos dias. Ou seja, temos estações do Paleolítico, do Mesolítico, do Neolítico, do Calcolítico, da Idade do Bronze, da Idade do Ferro, da Época Romana, do período medieval romano e cristão e muito mais. SR – Há zonas do distrito onde se verifica a presença de mais vestígios que noutras? CTS – Digamos que há zonas onde a investigação incidiu mais e, consequentemente, essas zonas revelam-se de uma riqueza muito superior. É o caso do concelho de Sines que, devido aos trabalhos efectuados pelo Núcleo de Arqueologia do Gabinete da Área de Sines, que dirigi durante muitos anos, é um dos concelhos que aparentemente se revela muito rico. Não quer dizer que concelhos como o do Barreiro, por exemplo, que até há relativamente pouco tempo era conhecido por uma única estação arqueológica dos séculos XV e XVI – os fornos de produção cerâmica da Mata da Machada – com uma prospecção sistemática não venha a revelar-se de uma grande riqueza. Aliás, de há poucos anos a esta parte, o MAEDS tem vindo a fazer trabalhos no Barreiro precisamente num sítio arqueológico excepcional, do Neolítico, que foi descoberto nestes últimos anos. Trata-se de uma olaria do Neolítico final, na zona da Ponta da Passadeira, que é uma situação única em toda a Península Ibérica. Este é um sítio ameaçado pela destruição pela acção erosiva das águas do rio e a própria jazida arqueológica já recuou muitos metros. A Câmara do Barreiro está muito sensibilizada para este problema e empenhada em salvar a informação de carácter histórico que se encontra naquele sítio. SR – O concelho de Setúbal também é considerado arqueologicamente rico? CTS – Setúbal revela-se de uma enorme riqueza porque desde o século passado que aqui se desenvolve uma actividade de investigação muito intensa. Essa actividade teve os seus pontos altos com Inácio Marques da Costa, um grande arqueólogo dos finais do século passado e do primeiro quartel deste século. Foi um homem que escavou na Ruptura, um sítio Pré-Histórico da Serra de São Luís, escavou as grutas artificiais da Quinta do Anjo, em Palmela, e os vestígios romanos de Tróia. Não se limitando a escavar, este arqueólogo publicou obras sobre os resultados das investigações que efectuou. A outra fase mais florescente da investigação arqueológica em Setúbal vem dos anos 70 até à actualidade e surge exactamente com a implantação deste museu. O MAEDS foi criado em 1974, com o 25 de Abril, ou seja, é um produto do 25 de Abril e tem uma vocação regional, ligado a toda uma ideologia que já nessa altura procurava compreender as regiões mais do que propriamente as unidades administrativas actuais que, muitas vezes nada têm a ver com as verdadeiras regiões naturais. Com a criação do museu, a investigação arqueológica no concelho de Setúbal intensificou-se consideravelmente e, por isso, a cidade de Setúbal foi um dos sítios que mais beneficiou com a criação do MAEDS. Podemos dizer que devido a todos estes trabalhos de investigação arqueológica, já sabemos que a história de Setúbal – à qual antes se atribuíam sete séculos – na verdade tem 27 séculos. Por isso é que o subsolo de Setúbal se revela de um interesse científico muitíssimo grande. É um verdadeiro arquivo que está soterrado por debaixo das casas e das ruas do centro histórico de Setúbal, por isso é obrigatório – sob pena de cometermos autênticos crimes de lesa património – que antes de qualquer obra que mexa no subsolo, haja a intervenção dos arqueólogos para tentar salvar para a ciência o que está arquivado nesse mesmo subsolo. Foi precisamente assim que conseguimos chegar aos finais do século VIII inícios do século VII antes de Cristo. SR – Que dificuldades são colocadas aos arqueólogos para escavarem em determinadas zonas do distrito? CTS – Embora o Ministério da Cultura queira convencer-nos do contrário, não houve e continua a não haver um levantamento sistemático de todo o património arqueológico nacional. Portanto, os arqueólogos vão descobrindo esse património, muitas vezes acidentalmente. Em Sines houve um projecto de investigação muito consistente e, por isso deu resultados notáveis, mas em muitos outros sítios é através do acaso que se descobrem sítios arqueológicos de grande importância. Por exemplo, uma das maiores descobertas que fiz através do Centro de Estudos Arqueológicos do MAEDS, foi o povoado calcolítico, ou seja, da Idade do Cobre, do Monte da Tumba no Torrão do Alentejo. É um sítio de grande interesse arqueológico e científico, é um povoado com cerca de 5 mil anos, rodeado de muralhas e bastiões, com toda uma arquitectura militar. É exactamente nesse período que a guerra se manifesta pela primeira vez no sul do nosso país como um fenómeno social estabelecido e, por isso, é nessa fase que surgem os primeiros povoados fortificados. E esse povoado foi descoberto acidentalmente, não obstante o topónimo Monte da Tumba, sendo que no Alentejo a palavra Monte quer dizer conjunto de casas e Tumba significa sepultura. Ou seja, se tivesse sido feito um levantamento arqueológico sistemático do concelho Alcácer do Sal, o arqueólogo que estivesse a realizar esse levantamento veria que o topónimo era mais que suficiente para se deslocar ao local. E se fosse lá, encontraria logo na superfície do terreno vestígios de uma ocupação humana antiga, designadamente fragmentos de cerâmica do Calcolítico. SR – Quer dizer que a política nacional para a arqueologia não corresponde às necessidades do sector? CTS – Não há medidas concretas em diversas áreas da arqueologia, lá incentivar incentiva, mas apoiar é através de verbas muito escassas. O actual Governo utilizou o Côa como uma bandeira política e, de facto, para o Vale do Côa foram canalizadas verbas de grande monta. Neste momento, estão a ser canalizadas verbas igualmente importantes para um sítio no distrito de Leiria, onde apareceram importantes vestígios do Paleolítico, no entanto o resto do país continua abandonado. Ou seja, o Governo apoia os trabalhos mas de uma forma muito ténue e, ainda por cima, exigindo um trabalho prévio e à posteriori, de natureza burocrática ao próprio arqueólogo. Temos um projecto aprovado pelo Instituto Português de Arqueologia, que levou às escavações na Ponta da Passadeira, para a realização do qual levámos um mês inteiro a tratar de papelada sem podermos fazer mais nada. Quanto às verbas depois disponibilizadas, são muito modestas e estão muito aquém do que o Instituto prometia quando foi fundado. Por outro lado, na área editorial não existe uma política capaz de publicar as grandes obras de arqueologia. Estou a publicar em francês os livros que vou produzindo sobre o Sado, e mais que isso, estou a publicá-los em França, porque aqui não existem condições. Em Portugal publicam-se algumas revistas e pequenos trabalhos porque não há meios para mais. Mas a questão não tem só a ver com a política nacional, uma vez que no caso de Setúbal a política editorial da Câmara é das mais pobres que conheço. Se quisermos publicar os resultados dos trabalhos arqueológicos feitos na área urbana de Setúbal, não conseguiremos fazer isso com dinheiros da Câmara Municipal. SR – Isso quer dizer que os arqueólogos não são bem vistos ou ouvidas pelo poder? CTS – Somos bem vistos pela sociedade que nos respeita e reconhece o trabalho que desenvolvemos. Mas se um arqueólogo se manifestar contra qualquer atentado a um bem colectivo e à nossa herança cultural – e ele deve ser o primeiro a manifestar-se porque é o primeiro a ter consciência do que vai acontecer – nessa altura pode ser muito mal visto por aqueles que defendem interesses absolutamente contrários à defesa desses e de outros interesses colectivos. São os interesses económicos a sobreporem-se aos interesses colectivos, vivemos numa sociedade capitalista e é óbvio que os interesses privados – sobretudo quando ligados ao grande capital – acabam sempre por se sobrepor a tudo o resto. Embora eu tenha a plena consciência de que não posso ter grandes ilusões, isso não faz com que deixe de lutar. E por vezes consegue-se, a muito custo, vencer os próprios interesses de natureza económica. SR – As dificuldades a que se refere ocorrem também com as autarquias? CTS – Por vezes acontece, designadamente com a Câmara de Setúbal que, paradoxalmente, é quem tem a pior relação com o MAEDS. Isto é paradoxal porque, estando a sede do MAEDS em Setúbal, este é o primeiro concelho a beneficiar da actividade científica e cultural deste museu. Portanto, a actual Câmara deveria ter melhor relacionamento com este museu e vice-versa. Inclusivamente existe um protocolo, ou existia, porque com as últimas atitudes da Câmara acho que as coisas mudaram, entre a autarquia e o MAEDS para uma estreita colaboração no que se refere ao conhecimento do subsolo arqueológico de Setúbal. Esta atitude começou exactamente quando me insurgi contra interesses capitalistas, ou seja, apesar de ser maioritariamente socialista, este executivo está sempre ao serviço dos interesses privados, subalternizando consequentemente os interesses colectivos. Isso foi patente no caso da muralha do século XVII e da sala de jogos no edifício do MAEDS. No que se refere à muralha e em resultado das pressões das associações cívicas, o presidente da Câmara foi levado a prometer que não iria ser feito nenhum stand. E não obstante o presidente ter dito numa sessão de Câmara que o problema era pura ficção, posso garantir e provar que a vereadora do urbanismo chegou mesmo a aprovar a obra de construção do stand mesmo antes das necessárias prospecções arqueológicas no local. Quando à intenção de instalar uma sala de jogos nos baixos do Museu de Arqueologia, e não obstante mais uma vez o presidente da Câmara ter dito que era tudo ficção, o certo é que as coisas eram mesmo assim. Seria interessante analisar este processo junto da imprensa e ver o que foi dito pelas várias entidades, particularmente pelo presidente da Câmara que foi desenvolvendo discursos muito diversos. Começou por dizer que não havia problema em abrir uma sala de jogos no edifício onde está instalado o museu porque, segundo dizia, matraquilhos e jogos electrónicos não fazem mal a ninguém. Depois passou a achar estranho que se pudesse montar uma sala de jogos nos baixos do museu e a seguir disse ignorar totalmente a intenção de se proceder à abertura da sala de jogos. Isto quando em Outubro o MAEDS mandou um ofício à Câmara chamando a atenção para o problema, tendo a Câmara mantido um silêncio total sobre o assunto. Não há dúvida de que o grande problema é a falta de diálogo da Câmara e isso existiu também relativamente à muralha. O presidente e os vereadores assumem uma atitude de grande arrogância e distanciamento em relação aos interesses dos cidadãos, quer dos que querem abrir salas de jogos quer dos que querem defender o património. Acredito que, por vezes, estes interesses aparentemente antagónicos até podem ser conciliáveis mas o problema é que a Câmara não faz nada para reunir as pessoas e levá-las a discutir as coisas. SR – As obras nos baixos do museu incluíram intervenções no subsolo? CTS – Houve intervenções no subsolo e, embora inicialmente tenha negado tudo isso, a Câmara admitiu-o depois da fiscalização ter vindo ao local porque ficou confirmado que as obras não eram de beneficiação, como se dizia, mas sim obras de carácter estrutural. Tanto é verdade que depois disso a Câmara embargou a obra. O museu também sofreu muito com as obras ali realizadas, contrariamente ao que o presidente da Câmara disse, de que a instabilidade do museu deve-se ao facto dele estar cheio de pedregulhos, que é como ele chama aos brasões da cidade. Isto revela um grande desconhecimento e não é admissível num presidente de uma autarquia. É que ele devia saber que os brasões da cidade de Setúbal estão, uns no jardim do Bonfim e outros a monte entre a erva do Convento de Jesus. Para além disso, o que está no MAEDS não são peças com esse volume e peso mas sim peças muito mais sensíveis. E foi precisamente a sala Borda d’ Água a que mais sofreu com as vibrações provocadas pelas obras. Esta sala é dedicada a Augusto Borda d’ Água, um grande maquetista e miniaturista setubalense, pelo que lá se guarda todo o espólio que ele ofereceu ao museu. Esse espólio é de uma fragilidade e de uma leveza muito grandes, portanto não são pedregulhos como o presidente da Câmara procurou dizer. Esta falta de sensibilidade foi provada quando disse que não via mal nenhum na coexistência entre uma sala de jogos e o Museu de Arqueologia, isto quando os estabelecimentos de ensino não permitem que essas actividades se situem nas proximidades e pior ainda quando o presidente da Câmara até é professor primário. SR – Como é que vê as escavações no hospital João Palmeiro, mandadas executar pelo conservador do Museu da Cidade de Setúbal? CTS – A questão é que, onde estão a fazer essas escavações não há apenas vestígios medievais. Essa é exactamente a área da cidade onde o MAEDS mais tem investigado e onde tem encontrado os vestígios mais antigos da ocupação humana de Setúbal, isto é, vestígios que remontam ao final da Idade do Bronze, à Idade do Ferro e à época romana. Naquela zona temos das estratigrafias mais completas, que exigem uma grande experiência da parte de quem as procura estudar e, ao mesmo tempo, um grande conhecimento do subsolo de Setúbal. Por isso é que digo que, para além do aspecto ético e deontológico, há o da simples questão da cordialidade uma vez que este museu levou 25 anos a escavar em Setúbal. Podíamos ao menos ter sido ouvidos e informados esta atitude revela uma enorme falta de cordialidade, o que é inadmissível entre instituições que procuram trabalhar para o conhecimento da História. Não houve da parte da Câmara nem do conservador do Museu da Cidade qualquer preocupação de nos informar sobre o que iriam fazer. Isto para além do aspecto deontológico e ético, que esse estou a tratá-lo ao nível dos órgãos competentes, neste caso a Associação Profissional de Arqueólogos. Há um código deontológico entre os arqueólogos que estabelece precisamente que uma estação arqueológica – e estamos a falar de uma estação arqueológica que é todo o centro histórico de Setúbal – quando está a ser objecto de estudo por parte de uma equipa não deve ser objecto de estudo por parte de outras, a não ser que tenha sido feito um acordo prévio. SR – Tendo em conta as discussões sobre a propriedade do MAEDS, veria com bons olhos a proposta da Câmara, de passar o espólio para o Museu da Cidade? CTS – Isso seria passar o espólio arqueológico de todo o distrito para um museu de carácter municipal. Essa proposta é altamente abusiva porque o MAEDS não pertence à Câmara de Setúbal mas sim à Assembleia Distrital de Setúbal. Por muita pena que ele tenha, o presidente da Câmara de Setúbal não manda no MAEDS nem nos funcionários que aqui trabalham. Talvez gostasse de mandar porque seria uma formar de neutralizar esses funcionários e impedir que o criticassem tão abertamente como alguns têm feito enquanto cidadãos, tal como eu também o faço enquanto cidadão. Ao dizer que queria levar as colecções para outro espaço, talvez o que pretenda seja o desmantelamento deste museu, que lhe está a ser incómodo. Ora acontece que este museu tem uma personalidade própria, é um serviço de divulgação cultural para as escolas e para o cidadão comum, com colecções e património próprios, um quadro de pessoal próprio e diversas actividades de investigação, por conseguinte, não pode ser desmantelado dessa maneira. SR – Na Assembleia Distrital discute-se a passagem do museu para outra entidade, nomeadamente para o Instituto Nacional de Museus. Como é que vê o futuro do MAEDS? CTS – O facto de ter sido um dos fundadores deste museu dá-me uma certa autoridade para falar sobre isso, mesmo em relação à classe política. Este museu foi criado em 1974, no âmbito do próprio movimento que fez o 25 de Abril, e foi criado como um museu regional. Não posso estar de acordo com a saída do MAEDS da alçada da Assembleia Distrital, sobretudo quando políticos responsáveis do distrito falam em regionalização porque isso ia transformá-lo num museu nacional. Provavelmente é o que vai acontecer se passar para o Instituto Português dos Museus. Por um lado, isso seria óptimo para os funcionários que recebiam mais e tinham direito a ajudas de custo e horas extraordinárias, coisa que neste momento não acontece, seria talvez excelente para o próprio museu que iria ter instalações condignas, mas em contrapartida perderia a sua componente regional e toda a sua identidade, quer ao nível do trabalho científico quer no que diz respeito à actividade cultural que tem vindo a desenvolver e que está muito enraizado na região. |
Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |