Edição Nº 116 • 20/03/2000 | |
MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
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(11 de Março de 1975) |
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11 de Março de 75 agitou distrito Processo produtivo nas mãos dos trabalhadores No dia 11 de Março de 1975, Portugal assistiu a uma viragem histórica no processo revolucionário. Para o comunista Sertório Herrera, na altura dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos, tratou-se da consolidação da revolução de Abril. Por isso esteve de ‘sentinela’ à posição que o Governo foi tomando ao longo da noite de todas as decisões e, 25 anos depois, é peremptório em afirmar que os trabalhadores do distrito foram uma peça fundamental na consolidação do processo democrático no país. |
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– Onde é que estava no dia 11 de Março de 1975? Sertório Herrera – Estava no Sindicato dos Metalúrgicos de Setúbal, ao qual pertencia, e lembro-me que sentia uma enorme expectativa em relação aos acontecimentos porque se previam grandes decisões em relação à revolução de Abril. O que mais recordo desse dia, ou melhor, dessa noite de 11 de Março, foi do facto de, para podermos assistir à tomada das grandes decisões, termos ido a São Bento. Estive lá durante muitas horas, com uma ansiedade enorme quanto ao que se passava na rua e, ao mesmo tempo, muito atento às medidas do Conselho de Ministros. Aconteceu que, de facto, o Conselho de Ministros, tomou grandes decisões nesse dia, inclusivamente algumas das coisas que defendíamos em todas as manifestações que fazíamos, como foi o caso da nacionalização da Setenave e da Lisnave, tal como ocorreu com a banca. SR – Os trabalhadores e sindicalistas chegaram a ter alguma ideia do que iria acontecer nesse dia? SH – Tivemos ideia disso porque, de alguma forma, chegava-nos alguma informação que, embora não fosse concreta nem absoluta, era informação preciosa para a época porque permitia-nos, com alguma garantia, saber que algumas coisas se iriam passar. Muitas vezes não eram de acordo com aquilo que pensávamos e defendíamos, até porque nós exigíamos muito mais do que aquilo que veio a acontecer com o 11 de Março. Como sabíamos o que poderia acontecer, tentávamos estar em cima dos acontecimentos e chegar primeiro aos locais. SR – Que razão é que o levava a querer estar presente nos locais dos acontecimentos? SH – O 25 de Abril de 1974 e tudo o que se passou desde aí até ao 11 de Março de 1975 significou uma vivência terrível. Não estávamos nas coisas por estarmos, contrariamente ao que hoje se diz, porque sabíamos o que pretendíamos e essa convicção era de uma grande exigência. Porque tínhamos uma vivência e uma experiência anterior ao 25 de Abril, quando a revolução chegou tínhamos a consciência do que, concretamente, o que se pretendia e isso fez-nos correr atrás dos nossos ideais. SR – A sua presença em São Bento tinha algum significado ou ia apenas no sentido de saber as novidades em primeira mão e depois ir festejar? SH – Era isso mas não só. Há que dizer a verdade porque a nossa presença pressionava no sentido da tomada das decisões necessárias. Por isso, juntaram-se cerca de 150 dirigentes sindicais e associativos para fazerem pressão junto de São Bento. Penso que isso ajudou à tomada de decisões do Conselho de Ministros, aliás, naquela altura era muito importante que o distrito de Setúbal estivesse presente porque as grandes empresas estavam aqui e porque nós exigíamos a sua nacionalização. SR – Porque é que insistiam nessa exigência? SH – Porque sentíamos que o sector económico estava a entrar em crise, por força de boicotes dos proprietários das grandes empresas. Sabíamos o que é que os Mello E OS Champallimaud pensavam e o que estavam a fazer. E ainda hoje penso que, se não tivesse sido tomada a decisão de nacionalizar as grandes empresas, agora estaríamos muito pior. E nessa época, então, ficaríamos totalmente de rastos. SR – Na altura pouco se tinha em conta a protecção da propriedade privada. Á luz da democracia, essa não foi uma atitude radical? SH – Claro que o que ocorreu naquela época não pode ser visto à luz do que actualmente se vive. É preciso atender que o 25 de Abril não aconteceu por acaso, e se aconteceu a componente militar, o certo é que também surgiu uma componente revolucionária. Ela aconteceu porque havia uma experiência anterior ao 25 de Abril e todos nós sabíamos o que tínhamos padecido. Sabíamos que os salários em Portugal eram uma desgraça, que não havia salário mínimo nacional, nem horários de trabalho e muito menos uma semana de férias. Portanto, o que exigimos logo após o 25 de Abril, foi que essa situação se alterasse. A ideia não era tirar a propriedade a ninguém, mas sim dizer ao proprietário que distribuísse os lucros pelos trabalhadores. Pensávamos que, para viver correctamente, o país precisava que alguns sectores da sua economia fossem nacionalizados ou controlados, como ainda hoje se faz. No entanto, preocupávamo-nos com as situações que iam ocorrendo porque nunca ninguém quis roubar nada a ninguém. Agora, o senhor Champallimaud, que tinha Siderurgia Nacional, em vez de encerrar as fábricas para as abrir no Brasil, poderia ter investido cá e distribuído a riqueza produzida. SR – Esta tomada de posição teve a ver com alguma falta de medidas legais para conduzir o processo de outra forma, ou a época impunha mesmo esta medida radical? SH – Era mesmo preciso tomar esta medida das nacionalizações porque não havia tempo para essas coisas. Tendo em conta que eram os militares que, de facto, dominavam o país, não havia tempo para determinar estas medidas por decreto. Porque é preciso dizer que os grandes capitalistas abandonaram as empresas e fugiram do país, deixaram cá os ‘testas de ferro’ e geriam as coisas por telefone. E as ordens que os seus representantes recebiam eram no sentido de fechar, de boicotar e de despedir. O que aconteceu foi que os trabalhadores cansaram-se de ver os capitalistas a fugirem e a levaram o dinheiro das empresas, por isso reagiram. E digo sinceramente que hoje, eu faria exactamente a mesma coisa. SR – Há quem defenda que o 11 de Março pretendia instaurar uma ditadura de esquerda. Do seu ponto de vista, o que foi, de facto, essa data? SH – Desde sempre que se soube que ter o poder económico era deter o poder. E claro que não eram os trabalhadores que tinham esse poder, por isso toda a gente sabia que iria dar-se uma reacção do poder económico. Foi precisamente isso que aconteceu mas, sinceramente, não esperava que essa reacção fosse tão imediata. Não foi por acaso que se deu a guerra com os órgãos de comunicação social. No meu caso particular, até tinha contribuído para a compra de equipamentos para um órgão de comunicação que acabaram destruídos à bomba e o certo é que não foram os trabalhadores que os destruíram. Não se pode dizer que o 11 de Março foi contrário ao 25 de Abril, mas sim que foi a continuidade do 25 de Abril de 1974. Numa revolução que visava um país diferente e uma sociedade diferente, não se pode dizer que as nacionalizações eram contrárias a esses objectivos. SR – Quando se soube das decisões tomadas em Conselho de Ministros, como é que os manifestantes reagiram? SH – Houve uma enorme manifestação de regozijo, especialmente dos que estavam concentrados na rua. Naturalmente que durante todo esse tempo tivemos algum cuidado e alguma organização no sentido de evitar reacções negativas e manifestações por parte dos que se sentiam prejudicados pelo 11 de Março. Não fossem eles prejudicar a revolução. Não me recordo se foram feitas barricadas nessa altura mas admito que isso tenha acontecido. Também não me lembro se participei em alguma, se calhar fui apanhado por alguma quando vinha de Lisboa para Setúbal. Pessoalmente, não me recordo de ter participado em barricadas no 11 de Março mas admito que elas tenham ocorrido porque, mal se adivinhou que iam ocorrer as nacionalizações, foi transmitido às pessoas que era preciso estar alerta e actuante, como se dizia na altura. SR – Como é que as empresas e os trabalhadores reagiram às nacionalizações? SH – Não foi nada fácil, mas houve uma grande demonstração de força por parte dos trabalhadores. Muitas empresas ficaram entregues aos trabalhadores com o apoio de muitos técnicos, contrariamente ao que hoje se diz, de que eram só uns rapazitos da construção civil e da reparação naval. Isso não é verdade porque muitos técnicos permaneceram nas empresas, eles eram quem fazia trabalhar e continuaram a fazer o pessoal trabalhar. Mas depois começou a faltar o escoamento porque o que se produzia não tinha saída e isso provocou problemas económicos. Os empresários tinham levado o capital para o estrangeiro e deu-se uma luta terrível até ao 25 de Novembro. A tensão era permanente, diária e desconhecia-se o dia de amanhã. SR – Era uma situação que provocava medo entre os trabalhadores? SH – Algum medo. Se hoje alguém disser que não tinha se calhar não acredito. Pessoalmente, confesso que muitas vezes tive medo porque o 25 de Abril apanhou a maior parte da população portuguesa totalmente impreparada. Outro dia dei com uma situação na Visteon, em Palmela, onde as trabalhadoras protestaram contra o sindicato. Pessoalmente nunca passei por uma coisa daquelas, mas naquele período muitas vezes éramos chamados porque os trabalhadores, nalguns casos em desespero de causa, tinham que se virar para algum lado. Por isso viravam-se contra os sindicatos. E lá tínhamos de ir conversar com eles, em reuniões que muitas vezes não eram nada pacíficas. Recordo-me que no distrito de Setúbal existia uma zona chamada Faroeste, que era Sines. Aquilo não era o que é hoje, estava em construção e tinha trabalhadores vindos de todo o país. Chegámos mesmo a ser recebidos a tiro de caçadeira, nós e os militares, e tivemos que nos barricar sob pena de sermos atingidos. Por exemplo, cheguei a assistir a um plenário em que um trabalhador se exaltou de tal maneira que morreu de ataque cardíaco. Aquela zona estava de tal maneira ‘quente’ que era considerava terrível. Ainda quanto às armas, passei por uma história engraçada. Quando ocorreu a famosa mobilização dos trabalhadores para a porta do Quartel do 11, para se distribuírem armas, nós fomos lá para desmobilizar e desmotivar as pessoas porque se lhes dessem armas era a desgraça completa em Setúbal. E nessa altura, uma das pessoas, que hoje é muito meu amigo, disse logo que se lhe dessem uma metralhadora eu seria a primeira pessoa que ele iria matar. E isto porque tínhamos divergências ideológicas. A mentalidade da altura era assim, felizmente não houve distribuição maciça de armas porque as pessoas que defendiam isso não tinham bem a noção do que poderia acontecer. Agora balas, pistolas e espingardas havia por aí com relativa facilidade. SR – Chegou a haver a noção de que se estava a um passo da guerra civil? SH – No 25 de Novembro essa noção existiu. Cheguei a acreditar que isso iria acontecer e estive oito noites sem dormir. O 25 de Novembro caiu em cima do Verão Quente como um balde de água gelada, e foi nessa altura que tivemos a sensação de que alguma coisa de terrível e de incontrolável poderia acontecer neste país. Chegámos a pensar que muita gente iria morrer e que muita dessa gente em nada tinha contribuído para o 25 de Novembro nem para o 11 de Março nem para o 25 de Abril. Sabíamos que o capital iria reagir e esperávamos uma grande reacção. O nosso grande receio não era em relação a países estrangeiros mas sim a alguns políticos que cá estavam e aos próprios capitalistas. Sabíamos que havia uma organização qualquer, disso não tínhamos dúvidas nenhumas, e que essa organização era a pior possível. Mas o que fizemos foi tentar preparar-nos para dar resposta a isso. E a primeira resposta, que foi considerada a melhor das respostas, foi continuarmos a produzir, a fazer melhor e pôr fábricas paradas a trabalhar. SR – Mesmo com toda essa perturbação, os trabalhadores conseguiram produzir? SH – Sim conseguia-se trabalhar. Mas houve pessoas que não o conseguiram fazer, como foi o caso dos dirigentes sindicais e das comissões de trabalhadores. Tínhamos muita dificuldade em ocupar os postos de trabalho porque éramos constantemente solicitados. Nessa altura havia uma certa compreensão por parte dos outros trabalhadores, eles tinham a noção do que os sindicalistas e as comissões de trabalhadores estavam a fazer e substituíam-nos nos postos de trabalho. Claro que, com o tempo as coisas foram-se degradando porque começaram a ser introduzidas ‘pedras na engrenagem’. Alguns reaccionários chegaram a lançar comunicados para influenciar os trabalhadores no sentido de os convencer de que os sindicalistas não estavam a desempenhar as suas funções. Eram pequenos grãos de areia mas eles eram tantos que acabaram por produzir efeito. O resultado foi que muita gente desmobilizou da actividade sindical porque não estava para aturar acusações. As pessoas estavam sujeitas a serem mortas na esquina por defenderem a liberdade e de repente estavam a ser apelidadas de malandras, claro que ninguém gostou e alguns desmobilizaram. SR – Como é que interpretou o 25 de Novembro? SH – Foi o grande retrocesso no processo revolucionário. Mas vistas as coisas à distância, certamente que chegámos ao 25 de Novembro com muitos erros atrás. O processo revolucionário não foi linear, teve várias curvas e algumas muito sinuosas, e que foram provocadas por erros nossos. Claro que o 25 de Novembro nunca se justificará mas o certo é que muita gente pode dizer que não foi surpreendida por ele. SR – No entanto, o 25 de Novembro aparece como que para pôr ordem nas coisas. SH – Ele apareceu dirigido por alguém que pretendia moralizar quando teve muito pouca participação no 25 de Abril. Vieram como moralistas para pôr ordem nas coisas e alguns anos depois muitos deles deram péssimos exemplos daquilo que devia ser a moral. Contudo, reconheço que havia que modificar um pouco as coisas e de pôr alguma calma no processo. Nós fizemos muitas coisas e muitas eram coisas óptimas, depois passávamos à frente porque não havia tempo para parar. Por exemplo se uma cadeira me empatava eu desviava-a para o lado sem me interessar se iam lá tropeçar umas 15 pessoas. O que interessava é que, naquele momento, tinha de a desviar dali e era isso que fazia. Foram os tais excessos e erros que cometemos e que acabámos por pagar. Agora, as bases e os fundamentos do 25 de Novembro não correspondiam à realidade da altura e que ainda hoje se diz que foi o que motivou o golpe. Provocaram um coisa que poderia ter sido gravíssima, uma tentativa de confronto militar que depois haveria de descambar para a tal guerra civil que esteve iminente. SR – O 25 de Abril morreu? SH – Não morreu porque há coisas que são irreversíveis, portanto valeu a pena. Apesar de tudo, hoje podemos falar à vontade, mantém-se o direito de reunião e de manifestação. Ou seja, há direitos fundamentais que nunca mais nos vão conseguir tirar. E antes do 25 de Abril não havia nada disso, inclusivamente lembro-me de casos de algumas greves que ajudei a organizar e em que participei antes da revolução. Na altura não se chamavam greves, porque elas eram proibidas, eram as chamadas baixas de produção em que as pessoas andavam sempre de coração nas mãos sem saberem o que poderia acontecer. Hoje em dia, desde que haja razão e se sinta que isso poderá contribuir para melhorar as coisas, faz-se greve e a consequência que isso pode ter é a melhoria das condições dos trabalhadores. SR – A sociedade actual é aquela que sonhou durante o período revolucionário? SH – Não é mas ainda sonho com isso. Sou um sonhador mas mantenho-me fiel aos ideais da altura. Só há uma componente que impede que esses sonhos se realizem mais depressa, e essa é uma componente fundamental, que é o próprio ser humano. No entanto, confesso que já não corro atrás desse sonho da forma como o fiz há 25 anos atrás. Até porque já não tenho idade para isso. O 25 de Abril apanhou-me com 28 anos, tinha saído da guerra colonial e uma pedalada incrível. Hoje já não estou nessas condições mas continuo a lutar e a fazer coisas que acho que são justas e boas para as pessoas. Neste momento estou completamente dedicado à solidariedade e concerteza que isto me ficou do 25 de Abril. Ainda hoje vejo grandes obras feitas nas sequência do 25 de Abril de 1974, como as cooperativas de habitação uma vez que as cooperativas agrícolas não deram resultado, na maior parte dos casos. SR – Com a mudança verificada na sociedade, pode dizer-se que dificilmente Portugal voltará a viver um período como aquele? SH – Eu acredito que isso acabará por acontecer. Não sei se felizmente ou infelizmente, o que sei é que cada vez há mais fome, mais pobreza e mais desemprego apesar de todos os encapotamentos que se têm feito. Nem sei se essa revolução será feita em Portugal, mas o certo é que, ou há grandes alterações por parte de quem tem o poder no sentido de resolver estes problemas, ou então a revolução vai acabar por acontecer um dia destes. Não deverá ser no meu tempo, ou no tempo dos meus filhos, mas tenho a certeza de que isso acontecerá. Só quem trabalha na área do social é que pode, talvez, falar destas coisas com uma maior certeza. Não passa pela cabeça das pessoas a quantidade de gente que nos aparece diariamente com fome e quantos casos conhecemos de pessoas que estão a passar fome mas que não se manifestam. Às tantas, a fome, a pobreza e a miséria tornam-se catalizadores, as pessoas não podem aguentar mais e saem à rua. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |