Edição Nº 117 • 27/03/2000 |
Para sensibilizar e melhor defender o património Para encerrar o dossier sobre o património arqueológico, o “Setúbal na Rede” quis entrevistar um responsável do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), no entanto os contactos efectuados ao longo de cerca de dois meses resultaram infrutíferos, já que este organismo do Estado não mostrou interesse em falar do património da região e em refutar as críticas feitas pelos diversos entrevistados. Mas como nem todas as instituições oficiais são insensíveis a estas questões, a outra parte do problema que constitui a preservação da memória nacional está agora representada neste dossier através do Instituto Português de Arqueologia (IPA).
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– Qual é a importância do distrito de Setúbal, em termos de património arqueológico? António Monge Soares – É tão importante como qualquer outro distrito do país. Tem monumentos nacionais de relevo e estações arqueológicas importantíssimas como a de Sines – Vale Pincel Um e Vale Pincel Dois – Miróbriga, Almaraz, Abul e Cetóbriga. Entretanto em Sines, tivemos um problema mas já está resolvido. Recentemente o IPA foi alertado pelo director do Centro de Estudos Arqueológicos do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, Carlos Tavares da Silva, para um projecto da Transgás que traria um grande impacto na estação arqueológica de Vale Pincel, já que para fazer o terminal de gás natural teria de se alterar o traçado da estrada que passaria a atravessar Vale Pincel Um. O assunto foi analisado e concluiu-se que não é possível alterar o traçado da estrada, pelo que o que há a fazer é o que nós chamamos de salvamento pelo registo, ou seja, há que escavar integralmente a zona que vai ser afectada e registar toda a área quer por vídeo quer por fotografias. Temos que fazer um registo o mais minucioso possível daquilo que vai ser destruído. SR – Como é que se define a fronteira entre o que deve e o que não deve ser salvo? AMS – É sempre uma fronteira muito fluída mas para isso é que se pede a opinião de especialistas. Por exemplo, há cerca de dois anos houve escavações no Museu de Évora, no sentido de se construírem umas caves, e no local existiam estruturas arqueológicas pois fica mesmo ao lado do Templo de Diana. Então veio um relatório com recomendações dos arqueólogos que fizeram a escavação, esse relatório foi analisado pelos técnicos do IPA que depois apontaram as estruturas a conservar e as que poderiam ser destruídas depois de efectuar um registo pormenorizado. Mas o responsável pelas escavações não concordou, por considerar que haviam ali coisas muito importantes que não deviam ser destruídas. A seguir o IPA pediu a uma comissão que desse o seu parecer, essa comissão não subscreveu totalmente nem a posição do responsável pela escavação nem a posição dos técnicos, pelo que decidimos ficar pelo meio termo. E esse meio termo era que o dono da obra achasse por bem não avançar com as obras. Isto para dizer que em casos delicados é desta forma que temos de trabalhar. SR – O caso de Foz Côa contou com um factor importante que foi a movimentação popular. Existem outros factores que poderão contribuir para a preservação do património, para além da importância do próprio achado? AMS – Por muito que a luta fosse aguerrida, se Foz Côa não tivesse a importância que tem as coisas não seriam como foram. Provou-se que Foz Côa é muito importante, provou-se que as gravuras eram da época que se dizia e que eram únicas. Por isso se investiu ali tanto dinheiro. SR – Na questão de decidir pela preservação, ou não, de determinado património arqueológico, o peso do interesse económico é decisivo? AMS – O peso económico não é decisivo. O que é decisivo é a importância que, bem ou mal, nós damos aos vestígios arqueológicos postos a descoberto. E dou o exemplo de casos ocorridos em Lisboa: iam construir-se dois parques de estacionamento, um na Praça de Camões e outro na Praça da Figueira. Não sabíamos o que estava no subsolo da Praça de Camões, por isso só passado um mês e meio de escavações, quando começámos a ter uma ideia do que lá estava, é que dissemos que dissemos que o parque podia avançar. Na Praça da Figueira já sabemos o que está no subsolo, porque houve escavações nos anos 60 para a construção do metropolitano, e por essa razão já podemos tomar uma decisão sobre se o promotor da obra pode destruir ou não. Nas escavações de salvamento há uma coisa perigosa porque, sem termos razões para isso, não vamos dizer ao promotor da obra que vamos fazer escavações e depois logo se verá. Ele vai gastar ali milhares de contos e depois dizemos que não pode construir? O que acontece é que da próxima vez esse promotor escava, não diz nada e destrói tudo. SR – É correcto ser o promotor da obra a pagar os custos das escavações arqueológicas? AMS – A tendência actual, inscrita na Convenção de Malta, é o promotor pagar a escavação de acordo com o princípio do poluidor/pagador. É preciso lembrar que o património arqueológico é um património não renovável porque quando se destrói já não se pode voltar atrás. SR – Mas esta obrigatoriedade não leva a que se destrua sem avisar as autoridades? AMS – Na Dinamarca, acontece qualquer coisa e os cidadãos avisam que apareceu isto ou fez-se aquilo. Há um civismo bastante arreigado que leva as pessoas a estarem atentas, porque o património é de todos. Infelizmente esse grau de civismo ainda não existe em Portugal, embora esteja a surgir aos poucos por vezes são particulares que nos avisam de certas situações. Há alguns anos, em Tavira, o dono da pensão onde se ia fazer uma cave sabia que passava ali uma muralha e avisou os arqueólogos. Isso levou a que se fizesse uma escavação e surgiu uma muralha medieval e uma muralha fenícia. Agora, a cave da pensão vai ser musealizada graças ao dono da obra. SR – Contudo, sabe que existem muitos casos de destruição do património? AMS – Sem dúvida que isso acontece. Como arqueólogo, uma vez fui abordado por um guarda republicano, um tratorista e o chefe dos correios de uma aldeia que me disseram que tinham escavado uma estrutura em pedra, tinham retirado de lá dois vasos e que estes estavam dentro de um saco dos correios para depois me darem. As pessoas fizeram aquilo com a melhor das intenções mas faltou-lhes o conhecimento para dar solução ao problema. SR – O que é que se tem feito em termos da sensibilização das pessoas para a protecção do património arqueológico? AMS – Este instituto, por mais meios que tenha, que não tem porque é muito pequeno, não consegue fiscalizar nem divulgar a arqueologia por todo o país. Portanto, os arqueólogos têm uma missão bastante importante, especialmente aqueles que estão nas câmaras municipais. E há exemplos disso, se for à Amadora ou a Sintra vê lá arqueólogos que fazem acções de divulgação, têm os monumentos arranjados e as escolas vão lá visitar os museus. No distrito de Setúbal acontece o mesmo, o MAEDS tem feito imensas acções e os arqueólogos das câmaras também. SR – De que recursos e autonomia dispõem os arqueólogos das autarquias para desenvolverem essas actividades? AMS – A primeira missão dos gabinetes de arqueologia das câmaras é fazer uma triagem do processo de obras e, a partir daí, dar um parecer sobre o assunto. No caso da cidade de Setúbal há determinadas zonas com vestígios arqueológicos, portanto isso implica que em obras que impliquem mexer no subsolo devem haver sondagens arqueológicas prévias. Haverá possivelmente outras zonas onde se ouviu falar de vestígios, e aí os arqueólogos passam por lá para saber como vão as coisas esse foi descoberta alguma coisa. E há também outras zonas da cidade que, em princípio, não devem ter nada. Se aparecer qualquer coisa, a lei obriga a que quem o encontrou o comunique oficialmente. SR – Como organismo tutelar desta área, que apoio é que o IPA dá aos arqueólogos? AMS – Temos uma base de dados com tudo o que se sabe sobre os vestígios arqueológicos do nosso país. Essa base de dados pode ser consultada sempre que necessário, por parte dos arqueólogos. Por outro lado, há o Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos, que prevê financiamento às escavações. Os arqueólogos que estão nas câmaras não fazem sempre escavações, fazem-no eventualmente, ou seja, num centro histórico deve ser o promotor da obra a pagar as escavações mas nem sempre é assim porque se forem pessoas com fracas posses financeiras não vamos obrigá-las a gastar dinheiro para fazer uma sondagem arqueológica. Aqui os arqueólogos das câmaras têm um papel a desempenhar, no entanto já não concordo que tenham essa trabalho quando se trata de um grande empreiteiro. Para isso há empresas de arqueologia que devem ser contratadas. Entretanto, o IPA tem oito extensões espalhadas pelo país e quando surge alguma situação de emergência os arqueólogos que lá estão desencadeiam as intervenções necessárias. SR – Concorda com a ideia de alguns arqueólogos, de que os apoios do IPA exigem muita burocracia e dão pouco dinheiro? AMS – Quem recebe dinheiro tem que apresentar o relatório técnico-científico dos trabalhos que desenvolveu e o relatório financeiro. Uma vez houve um arqueólogo que, depois de ter visto reprovado o relatório financeiro – por não estar em condições – escreveu uma carta a dizer que o IPA está a matematizar demasiado a arqueologia. O que tentamos fazer é responsabilizar as pessoas porque os dinheiros de que dispomos são poucos. O primeiro ano do Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos com o IPA, foi em 1998, nessa altura houve 30 mil contos disponíveis e em 1999 recebemos os relatórios que indicavam que 20% do dinheiro não tinha sido gasto. SR – Isso não terá tido a ver com a burocracia que se exige? AMS – Os relatórios estão à disposição de quem quiser ver, não são invenção nossa e têm mesmo que ser feitos. Por lei, temos que fazer o arquivo da arqueologia portuguesa e eles têm que ser bem feitos. Exigimos relatórios com qualidade e não alguns que apareciam com fotocópias de fotografias, por isso exigimos as fotografias ou slides, a reprodução em papel de qualidade ou as cópias em disquete ou CD Rom. Mas isto não é uma birra nossa, é uma questão de respeitar a lei sobre o arquivo da arqueologia nacional. SR – Como é que vê algumas acusações feitas ao IPA, sobre alegada falta de intervenção nesta área? AMS – Não concordo, estamos a falar de 30 mil contos do Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos, mas quantos milhares de contos se têm gasto no Alqueva, quantos milhares de contos são gastos na arqueologia com estudos de impacte ambiental, quer na elaboração dos estudos quer na tomada de medidas de minimização dos impactes? De tal maneira que actualmente começa a haver falta de arqueólogos. Há dias recebi um telefonema da Câmara de Viseu porque abriram um concurso e apareceram três empresas de arqueologia. Por outro lado, foi reconfortante ter visto o anúncio da abertura de um concurso para trabalhos arqueológicos terrestres em Aveiro. Isto mostra que as empresas os organismos do Estado estão a interiorizar que, para fazer avançar as obras, é necessário salvaguardar o património. SR – No distrito de Setúbal, que escavações estão agora a ser feitas e que verbas estão a ser canalizadas para esses trabalhos? AMS – O director do Centro de Estudos Arqueológicos do MAEDS, Carlos Tavares da Silva, tem um projecto de investigação avençado pelo IPA e a arqueóloga responsável pelas escavações no castelo de Palmela também tem um projecto subsidiado. Entretanto, desenvolvemos um protocolo com o Instituto Tecnológico e Nuclear para o desenvolvimento da arqueómetria em Portugal, pelo que temos também aberto concursos para o estudo químico de cerâmicas e metais. Em Abril vamos tentar estudar o assunto para saber a que outras áreas da arqueologia poderemos alargar a análise dos parâmetros químicos e físicos. Nesta área, a arqueóloga que escava o castelo de Palmela tem um projecto aprovado para o Zambujalinho, que é uma estação com fornos de ânforas romanas, em Alcácer do Sal. Em Tróia, vamos saber dentro de pouco tempo o que se irá fazer naquela estação arqueológica. Há um acordo entre o Estado e a Imoareia – que é o promotor da obra – que terá de ir a Conselho de Ministros e depois veremos o que terá de ser feito. SR – A que é que se deveu a degradação ocorrida em Tróia ao longo dos anos? AMS – O que aconteceu em Tróia é o paradigma do que o Estado não tem feito e, no futuro, poderá ser o paradigma daquilo que se deve fazer para preservar o património. Estou confiante de que as coisas venham a correr bem, no sentido da preservação daquela estação arqueológica romana. Há que conservar o que já está a descoberto e essa conservação implica, não só o restauro e a estabilização das estruturas como também estudar muito bem o rio e saber como devemos actuar de maneira a que os vestígios não continuem a ser ‘comidos’ pelo rio Sado. Por exemplo, se na outra margem do Sado, em Setúbal, se faz o alargamento do cais – como está previsto – o que acontece é que isto interferirá na outra margem e trará consequências para Tróia. Portanto, há que estudar bem este processo e decidir o que fazer. Até porque estamos a falar de uma zona balnear e, se queremos turismo de qualidade temos mesmo de cuidar da vertente cultural. SR – Acha que se o grau de sensibilização das pessoas e das instituições para esta questão fosse maior, os danos provocados em Tróia teriam sido menores? AMS – Sim. Há uns anos, um arqueólogo fazia um projecto de investigação, punha algumas coisas à vista e no ano seguinte arranjava mais uns dinheiros e voltava a escavar. Depois aborrecia-se e ia-se embora, deixando o local ao abandono. Em Portugal não há uma nem duas situações destas, mas sim centenas de situações deste tipo. O que temos vindo a fazer é investigar esses locais e nos casos onde nem particulares nem autarquias querem pegar nós tapamos para podermos conservar. Por outro lado, se forem apresentados projectos de investigação completos – onde os arqueólogos fazem as suas sondagens e depois tapam os locais – nós aprovamos e financiamos, se isso não acontecer e houver a possibilidade de ficarem estruturas a descoberto, tem de haver um comprometimento por parte da autarquia ou da entidade responsável, no sentido de preservar as estruturas que vão ficar a descoberto. SR – Com a crescente responsabilização das autarquias, através dos seus núcleos de arqueologia, que margem de manobra tem o Museu de Arqueologia do Distrito? AMS – Sei que em Setúbal há um problema em relação às escavações no Hospital João Palmeiro, porque o MAEDS queixa-se de que a Câmara, através do Museu da Cidade, assumiu os trabalhos. Ao mesmo tempo ocorreu um caso semelhante em Silves, pelo que o IPA pediu o parecer da Comissão da Avaliação. Como tinham aprovado os dois projectos nas mesma altura e porque errar é humano, havia que esclarecer e saber o que se passava. Assim, a comissão fez uma recomendação sobre arqueologia urbana que se aplica ao caso de Silves e ao caso de Setúbal. O documento diz que “a arqueologia urbana deverá ser efectuada por uma equipa pluridisciplinar, o mais alargada possível, tendo como apoio imprescindível e absolutamente necessário, a autarquia e o museu. A autarquia deverá criar, se porventura não existe, um gabinete de arqueologia que, apoiando-se no museu, coordene as acções de investigação”. Por outro lado, encontrando-se permanentemente no terreno, esse gabinete de arqueologia deveria também realizar ou coordenar as intervenções. Ou seja, não é o arqueólogo A ou B que decide mas sim a autarquia que vai autorizar, ou não, os trabalhos de investigação. SR – Como é que a Câmara de Setúbal pode trabalhar em conjunto com o museu, se existe um conflito entre as duas partes por causa de obras no edifício do MAEDS? AMS – A autarquia deve ter um gabinete de arqueologia, coisa que agora não tem, e é esse gabinete que, em colaboração com o Museu, fará esse trabalho. Esse trabalho está a ser feito pelo Museu de Setúbal, cujo conservador já tem feito actividades destas na arqueologia moderna e medieval. E já não é a primeira vez que se investiga em Setúbal, ainda este ano esteve lá um especialista para ver o que se passava com a muralha seiscentista, uma vez que a Câmara tinha autorizado uma construção que tapava a vista do monumento. Não há dúvida de que reconhecemos que Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares têm feito imenso trabalho em Setúbal, devem ser consultados nessa áreas, mas também é verdade que, por muito boa vontade que tenha, o MAEDS não tem capacidade para fazer tudo. SR – Numa altura em que as câmaras do distrito apostam nos núcleos de arqueologia, que sentido faz a existência de um museu distrital? AMS – O IPA só autoriza que o espólio de uma escavação vá para um determinado museu se ele oferecer condições. São condições de espaço, de armazenamento, ambientais e de climatização, bem como a existência de um conservador responsável pela área. Ou até podem ser achados tão excepcionais que o IPA proponha a sua deslocação para o Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa. Acho que o MAEDS deve continuar a existir, mesmo com a criação dos núcleos de arqueologia concelhios. Quanto a eventuais sobreposições de competências, não é o IPA que define a política dos museus, no entanto continuo a não ver qualquer problema na existência do museu. |
Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |