[ Edição Nº 119] – “O Diário de Lina” – parte XV.

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por Salvador Peres)
Produção de Arte Dabliu, Produtos Culturais, Lda.
(No coração de uma mulher há sempre lugar para mais um homem)

Desculpa, querido Diário, sei que fui mázinha, mas não leves a mal. Não reparaste que aquela do estar noiva era peta? Ainda por cima noiva de um espanhol chamado Juan Ordoña! O que eu me ri! Pois é verdade: foi a minha mentirinha de 1 de Abril. O Arlindo caiu que nem um patinho, amuou e amarrou a burra. Depois, discutimos, zangámo-nos num dia e fizemos as pazes no outro. De forma que estou mesmo noiva, mas não do Juan, como adivinharás, mas sim do Arlindo, calcula!

Os homens não mudam nunca. Foi preciso ao Arlindo apanhar um susto para se decidir a fazer aquilo que há muito se impunha: pedir-me em casamento. Mas ele que não julgue que me apanhou definitivamente. Agora que o tenho na mão, é que ele vai ver como elas lhe mordem! Até porque, imagina (até parece de propósito), conheci um homem que me está a dar a volta à cabeça. O caso não é para menos: para além de ser bonito, inteligente, culto e charmoso, é casado e pai de três filhos.

Como é que aconteceu? Foi repentino e surpreendente. Na quarta-feira passada fui com a Sónia (a Sónia é uma amiga minha, jornalista) ver a “Beleza Americana” à sessão da noite num cinema das Amoreiras. A Sónia vinha com o namorado e um amigo, um quadro superior de uma grande empresa, com quem ela mantém um relacionamento profissional para além do de amizade. O primeiro olhar foi de grande intensidade. Gostei logo dele. Ficámos sentados lado a lado.

Depois, as coisas aconteceram com uma naturalidade surpreendente. O filme terá certamente contribuído para isso. A história roda à volta de um quarentão em ruptura com tudo e com todos: a família, o emprego… Um homem que começa a interrogar-se sobre o sentido da sua vida, no meio de uma rotina sem sentido, com tudo a ruir à sua volta, vivendo uma relação que já não o preenche minimamente. Depois, esse homem conhece uma miúda da idade da filha e apaixona-se. E um novo mundo se abre à sua frente. De repente, tudo é novo para ele, tudo recomeça a fazer sentido…

No final do filme fomos a um bar beber um copo. A conversa recaiu sobre a história que acabáramos de ver. O namorado da Sónia (um puto chato de vinte e poucos anos) achou o filme uma estopada e passou o tempo todo a desfazer do Kevin Spacey (o protagonista, um borracho de fazer desmaiar uma mulher com duas gotas de sangue nas veias), dizendo que, na vida real, uma múda como a do filme jamais se apaixonaria por um velhadas com mais de quarenta anos. Mas o João (é assim que ele se chama), sorrindo, irónico, do alto da sua inteligência e maturidade, muito acima das calinadas borbulhentas do namorado da Sónia, nunca lhe passou cartão: só tinha olhos para mim, só falava para mim, acariciando-me com um olhar a transbordar de afectividade. Senti-me adorada, transportada para lugares dificilmente imagináveis por mim.

Depois de sairmos do bar, levou-me a casa. Nem por um momento senti da parte dele qualquer intenção de fazer de mim uma conquista de ocasião. Nem, tão-pouco, tentou esconder a sua situação de homem casado. “Que queres tu de mim?”, perguntei-lhe, antes de me despedir dele. Ele sorriu-me, afagou-me o cabelo longamente, olhando-me bem nos olhos e disse: “Apenas um pequeno lugar no teu coração. Saber que pensas em mim é suficiente. Se pensares em mim, se eu fizer parte do teu universo, nem que seja só num pequeno fragmento, eu passo a existir para além deste deambular rotineiro e habitual de todos os dias”. Depois, despediu-se sem sequer perguntar se queria que nos víssemos outra vez.

Claro que tive que desabafar com a Sónia. E fiquei surpreendida com a posição dela relativamente a este romance que ameaça desabar sobre mim: “No coração de uma mulher há sempre lugar para mais um homem”, disse ela, sorrindo.

E agora, que vou eu fazer? É claro que quero casar com o Arlindo. Mas que faço eu em relação ao João? Será mesmo verdade que no coração de uma mulher há lugar para mais que um homem?