[ Edição Nº 119] – Ocupação de Colégio em Alcácer do Sal.

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Edição Nº 11910/04/2000
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO
25 anos depois

(Ocupação de Colégio em Alcácer do Sal)

Para dar ensino e cultura a todos

Alunos ocuparam colégio de Alcácer do Sal

          No dia 18 de Abril de 1975, um grupo de estudantes do colégio particular de Alcácer do Sal decidiu dar voz às reivindicações de alguns alunos e populares, e ocupou o colégio que mais tarde foi entregue ao Estado e veio a transformar-se na actual Escola Secundária de Alcácer do Sal. Luís Guerreiro tinha 17 anos e foi um dos líderes do movimento que pretendia abrir as portas da escola a toda a gente. 25 anos depois, recorda as lutas que levaram ao confronto de ideias entre os que queriam portas abertas e os que defendiam que tudo continuasse como estava e adianta que, depois da ocupação, a terra nunca mais foi a mesma. E a importância do acto foi tal que, segundo avança, a ocupação da escola foi o acontecimento que levou à vila os ideais do 25 de Abril.


Setúbal na Rede

– Onde é que estava no dia 18 de Abril de 1975?

Luís Guerreiro

– Nesse dia estava em Alcácer do Sal, do lado de fora dos portões do colégio onde estudava. Aquela era uma época muito conturbada e as divergências extremavam-se, por isso tive colegas que decidiram tomar partidos – no sentido lato – e vincar as suas opções de vida, apesar de sermos todos muito jovens. Lembro-me que, na altura, eu devia ter 17 anos. Estávamos num colégio particular, onde se pagava para estudar.

Para o colégio podia ser pouco mas para os pais dos alunos as mensalidades eram caras. Andavam entre os mil e os três mil escudos, o que naquela época representava muito dinheiro, particularmente num concelho rural. O colégio era frequentado por filhos de funcionários públicos de categoria superior, de alguns comerciantes, empresários, agricultores e pouco mais. Num concelho com 10 mil habitantes, talvez ali estivessem cem alunos. Naquela época não havia alternativas a esta escola, só mesmo em Setúbal.

Antes do 25 de Abril sofria-se com a repressão das ideias mas, por estranho que pareça, esse colégio funcionava exactamente ao contrário. O director era uma pessoa aberta e opunha-se ao que estava instituído na altura. Isso despertou em nós um espírito crítico e de rebeldia, como era o caso dele. Por isso, depois do 25 de Abril começámos a pensar na possibilidade de abrir o colégio a toda a gente. Realizaram-se reuniões mas o director fechou-se a este tipo de discussão, o que hoje entendo perfeitamente.

Ele teria uns 40 anos, portanto é natural que, depois de atingirem uma determinada situação, as pessoas se acomodem e não estejam dispostas a abrir mão do que foi ganho com trabalho árduo e honesto. As posições extremaram-se, com um grupo a querer levar em frente a abertura do colégio a toda a gente e um outro a defender que as coisas deviam ficar como estavam. Portanto, no dia 18 de Abril lá estávamos: uns lá dentro a defenderem o que era deles e outros lá fora a tentarem abrir aquilo a toda a gente. Eu fiquei do lado de fora, com os portões fechados e o guarda com a sua arma em defesa do colégio.

SR

– A acção de dia 18 foi programada?

LG

– Não, começámos por ter conversas de grupo porque eu estava integrado numa turma que ganhou com a evolução de salários verificada desde 1971, pelo que havia lá filhos destes novos operários. Éramos uma turma grande e difícil de controlar, mas formávamos um grupo forte e sempre discutimos muitos assuntos, inclusivamente antes do 25 de Abril. Esse grupo era conhecido em Alcácer do Sal, porque nas terras pequenas sabe-se sempre tudo, e então começámos a ser abordados por muita gente de fora da escola no sentido de abrir o colégio a todos. O grupo viu-se invadido e foi ao sabor daquela maré avassaladora das ocupações.

SR

– Só os alunos é que tomaram posições nesta acção?

LG

– Estiveram connosco os pais e a população, era muita gente a reivindicar a abertura do colégio a todos. Por isso, hoje tenho que dar mérito àqueles que estavam do lado de dentro, que eram cerca de dez, porque do lado de fora estávamos cerca de cem pessoas. Mas nunca pretendemos qualquer tipo de confrontação e não houve qualquer violência. Éramos todos amigos e convivíamos há muitos anos mas, depois daquilo, e com o evoluir da situação política no país, começaram a surgir algumas divergências entre nós.

SR

– O que é que aconteceu ao director do colégio?

LG

– Ele estava em Alcácer do Sal em representação da Igreja, pelo que tiraram-no daqui e puseram-no noutro lado. O que o director fez aqui, fê-lo com muito empenho, amor e dedicação, portanto hoje reconheço o quão difícil deve ter sido para ele aquela época. Felizmente há males que vêem por bem e, actualmente, já ultrapassou o trauma que foi tudo aquilo. Estas coisas passaram-se com o padre Sampaio, passaram-se com o meu pai na fábrica onde trabalhava, com o agricultor na herdade que tinha, com o chefe de secretaria na instituição onde estava, ou seja, este trauma passou por muita gente e poucas pessoas terão atravessado bem aquela época difícil.

Mais tarde, o padre Sampaio deve ter-se desgostado da instituição a que pertencia e deixou de ser padre. Encontrou a companheira da sua vida, com quem está, e penso que é feliz. Hoje já não tem os mais de cem filhos que tinha na altura mas continua a ter dois que são bons amigos dele. Com o tempo ultrapassou-se os problemas e voltámos a encontrar-nos. Hoje estou bem com o director, embora inicialmente tivéssemos uma certa dificuldade em falar do assunto, e quando conversámos sobre isso, disse-lhe que o que aconteceu foi porque ele formou jovens abertos e com opinião.

SR

– No dia da ocupação, o director foi retirado do colégio num camião militar. Foi uma situação delicada para um representante da Igreja?

LG

– Sim, foi uma situação delicada. Nós estávamos do lado de fora e não queríamos entrar porque não pretendíamos fazer mal a ninguém. Mas entretanto a situação complicou-se porque, do lado de fora, começou a juntar-se gente contra nós. Houve burburinhos e discussões e, às tantas, para que não ocorressem problemas e não fizessem mal ao padre, ele acabou por ser retirado do colégio num camião militar.

Nessa altura, entrámos todos no colégio. Os professores não tomaram partido, embora nos tivessem dado a sua solidariedade. Aliás, naquele tempo era fácil acontecer isso porque todo o ambiente que nos rodeava ia nesse sentido. Criámos uma comissão para discutir os problemas e tentámos fazer aquilo que nos parecia melhor.

SR

– Durante esse período sentiram alguma tentativa de aproveitamento da vossa luta, por parte de partidos políticos?

LG

– Sentimos. Apesar de sermos muito jovens não éramos tão ingénuos que não víssemos que ali haviam determinadas condições que nos eram dadas por determinados partidos. Mas éramos tão novos e estávamos tão embrenhados daquele espírito que, o que me dá ideia é que os partidos tentavam era refrear um pouco o nosso entusiasmo. Até porque estávamos a mexer com uma instituição muito melindrosa, a Igreja, especialmente naquela altura.

Algum tempo depois, houve uma tentativa de reocupação das instalações e o que alguns militares fizeram foi dar-nos a entender determinados passos a dar para resolver o assunto. Mas nós não demos esses passos que, dada a época, talvez fossem a acha que fazia falta ao país naquele preciso momento. Não o fizemos porque, acima de tudo, éramos todos amigos e não queríamos prejudicar ninguém.

SR

– A partir daí, como é que o colégio passou a funcionar?

LG

– O resto do ano lectivo correu sem grandes problemas e os professores nunca deixaram de dar aulas. Entrámos no ano lectivo seguinte com uma Comissão Instaladora, de que eu fazia parte. O curioso é que a ocupação tinha sido feita sem perguntar opinião a ninguém e a primeira ver que perguntámos se estaria correcto, ou não, o que se fez em 18 de Abril, foi já no ano lectivo seguinte quando procedemos às eleições para a Associação de Estudantes.

Isso ocorreu porque a primeira comissão, criada logo após a ocupação, formou uma lista, e o grupo de alunos que tinha ficado do lado de dentro da escola concorreu com outra. Foi aí que perguntámos e que se deu o primeiro confronto de ideias entre os alunos. Há que fazer referência a um colega, entretanto já falecido, o Luís Correia Guerra, que era quem defendia o outro lado e fazia-o aguerridamente. Hoje estou consciente de que o que eu defendia era o mais fácil porque tínhamos do nosso lado os militares, a Câmara e a maioria da população.

Entretanto, as nossas ideias venceram e eu ganhei as eleições. Passei a ser o presidente da Associação de Estudantes e integrei a Comissão Instaladora que era constituída por representantes dos alunos, dos professores, do pessoal da secretaria e das empregadas de limpeza. As empregadas desistiram porque não estavam para ouvir aquelas chatices, a representante do pessoal da secretaria também abandonou a Comissão porque achava que nós éramos demasiado radicais para estarmos à frente de uma coisa daquelas, e já para o fim, a Comissão funcionava só comigo e com um professor que, na última reunião geral de alunos decidiu sair também.

SR

– Os alunos defrontaram-se com dificuldades em gerir a escola?

LG

– Sim, tivemos problemas de colocação de professores. Coisa que não queríamos que acontecesse porque aquela escola sempre teve professores e eles nunca faltavam. Até me parece que eram vacinados contra tudo porque nunca tinham doenças nem faltavam às aulas. E como fazíamos ponto de honra na colocação de professores fomos a Lisboa, a reuniões com representantes do Ministério da Educação, para exigirmos a presença de todos os professores.

SR

– Obtiveram do Governo o reconhecimento da ocupação da escola?

LG

– Apesar de ter sido uma situação melindrosa em que o Governo não queria envolver-se muito, porque metia a Igreja e os accionistas do colégio, o certo é que da parte do Governo houve a resolução dos problemas e nós começámos o ano lectivo com todos os professores menos um, que era o de Filosofia. Entretanto, dávamos aulas de recuperação uns aos outros, as empregadas de limpeza que passavam o dia a esfregar também tiveram a nossa ajuda.

Dividimos a escola por sectores e os alunos que quisessem colaborar na limpeza e na manutenção da escola tinham o seu sector. A escola andava impecavelmente limpa, as flores do jardim estavam sempre bem tratadas e até fazíamos concursos para premiar os sectores mais bem organizados. Tínhamos grupos responsáveis pela sala de convívio, escolhiam os temas das músicas e a animação, fazíamos painéis, debates, jornais de parede e o jornal da associação.

SR

– Com o tempo, o carácter altruísta dos alunos foi-se perdendo?

LG

– Enquanto eu lá estive, continuámos assim. Sentíamos que aquela escola também era nossa porque os nossos pais a tinham pago. Todos os pais tinham acções porque aquilo era uma sociedade anónima. Mais tarde, muitos pais doaram essas acções ao Estado. Portanto, durante esse período não havia aluno que não respeitasse aquele espaço e não mantivesse a escola limpa.

SR

– As coisas mudaram quando a escola passou para o Estado?

LG

– Houve um caso caricato comigo porque, entretanto, deixei de ser aluno para ter o papel mais ingrato de todos: acabei por ser professor à força. O meu pai faleceu e, como estava a acabar o propedêutico, aproveitei as vagas existentes, deixei aquela época que recordo com saudades e tive de ser homem num espaço de três meses. No tempo em que dei aulas a escola continuava com o mesmo espírito. E esse espírito, quer nos professores quer nos alunos, existiu enquanto lá houve gente daquele tempo.

Depois saí e voltei lá passado uns tempos, acompanhado do padre Sampaio, e confesso que fiquei um pouco chocado. Embora perceba perfeitamente a situação, fiquei chocado com a degradação, o menor asseio, o chão mal encerado e a sala de professores mais velha. Não sei se foi falta de dedicação ou por aquele escola ter chegado aos 600 alunos quando tinha sido programada para um máximo de 200.

SR

– Numa vila pacata como Alcácer do Sal, os acontecimentos que levaram à ocupação da escola foram uma excepção à regra?

LG

– Foram mesmo uma excepção. Na altura já todo o concelho tinha assistido a ocupações, pelos trabalhadores agrícolas que tinham tomado as herdades, nas fábricas já todas as comissões de trabalhadores lideravam o processo produtivo, mas a vila ainda não tinha sido penetrada por qualquer conversa política ou troca de ideias. Tanto que os ideais do 25 de Abril levaram muitos meses a chegar aqui.

E só com a luta do colégio é que o confronto das ideias veio para a praça pública. Aí, começaram a ser feitos debates com a população, os dois jornais da terra saiam sempre com artigos de opinião, todos os dias havia novas pinturas de parede e se num dia estava lá uma, no outro dia era apagada e aparecia outra a dizer o contrário. Foi aí que começaram a surgir algumas fricções entre as pessoas e quando as amizades eram postas à prova muitas delas não resistiam ao confronto de opiniões. Mas com o tempo as coisas foram-se resolvendo e continuámos amigos até hoje.

SR

– 25 anos depois, como é que vê aquela época?

LG

– Não renego nada do que fiz, poderia ter feito as coisas em moldes diferentes mas esses moldes queriam dizer que já não o fazia com 17 anos mas sim com 42. No entanto, estou triste com o caminho que as coisas foram tomando com os anos, porque o que nós pretendíamos era dar cultura e ensino a toda a gente. Hoje o ensino é gratuito mas não há, os nossos filhos e alunos saem das escolas sem qualquer tipo de cultura, sem saberem o que é a vida, sem discutirem as ideias e isso também parece ter caído em desuso.

Hoje as ideias estão em segundo plano porque, primeiro o que interessa é o dinheiro, o emprego, o carro, o estatuto e o mostrar-se aos outros. Depois disso é que surgem as ideias, a personalidade, o carácter e a palavra. São conceitos e imagens consideradas antiquadas e dá-me pena ver isto porque não foi por essa razão que lutámos. No entanto, a geração que se formou naquela escola é impecável porque foi formada no espírito de diálogo, entreajuda e dedicação.

Entrevista de Pedro Brinca
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