Edição Nº 121 • 24/04/2000 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Eleições para a Assembleia Constituinte) |
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Setúbal ajudou na Constituição da República Eleições agravaram hostilidade entre PS e PCP
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– Onde é que estava no dia 25 de Abril de 1975? Alberto Antunes – Era dia de eleições para a Assembleia Constituinte e eu era o número dois da lista dos candidatos do PS por Setúbal. Nesse dia estava na cidade de Setúbal, na Avenida Luísa Todi, quando soube da vitória do PS. No distrito elegemos mais um deputado que o PCP, o PSD elegeu um deputado – Helena Roseta – e o CDS não elegeu nenhum. Recordo-me do abraço comovido que eu e o camarada António Sardinha demos quando soubemos dos resultados que deram a vitória ao PS no distrito, apesar do peso que o PCP tinha na região. Só em 1995 é que voltámos a repetir o êxito que tivemos em 1975. Na manhã de 25 de Abril de 1975 estive em Almada, onde votei, depois desloquei-me para Setúbal. Recordo-me de ter estado no Governo Civil para recolher algumas informações dos resultados eleitorais. Depois de termos comemorado a vitória socialista, fui para Lisboa onde me juntei ao Secretariado Nacional do PS, de que fazia parte, para estar presente na conferência de imprensa que Mário Soares deu nessa noite. SR – Este resultado era esperado no distrito? AA – Tínhamos muito receio dos resultados porque nessa altura, na televisão, foi feita uma campanha muito intensa contra o voto no Partido Socialista, dizendo que o PS não era um partido verdadeiramente socialista, procurando sugerir às pessoas que não fossem enganadas dando o voto ao PS. Sobretudo em Setúbal, havia um peso muito grande do PCP que detinha a maior parte das forças sindicais e de comissões de trabalhadores. Portanto, em termos de reivindicações sindicais e empresariais, uma grande parte da população operária era controlada pelo PCP e pela extrema esquerda. No entanto, os resultados indicaram que havia um conjunto de pessoas que não reagiam favoravelmente a esse tipo de enquadramento que o PCP procurava dar e que estavam sintonizadas com os ideais de justiça social, de liberdade e de democracia, que foram as tónicas essenciais da campanha do PS. SR – Como é que correu a campanha eleitoral no distrito? AA – Foi muito viva e muito intensa. Nessa altura, qualquer sessão de esclarecimento anunciada com 24 horas de antecedência tinha um número significativo de participantes. Fizemos muitas sessões de esclarecimento onde procurámos informar as pessoas sobre o que era a democracia e sobre os valores pelos quais o PS se batia. Havia uma grande procura das sessões de esclarecimento e uma grande tentativa de aprendizagem por parte de muitas pessoas que nunca tinham tido uma actividade militante, fosse ela sindical ou partidária. Todos nós, candidatos, nos desdobrámos pelas pequenas localidades procurando desenvolver uma actividade pedagógica em torno dos valores que o PS defendia, designadamente marcando a diferença do PCP que colocava a tónica na construção do comunismo deixando de parte os valores da democracia e da liberdade. Para além das sessões de esclarecimento, tivemos grandes comícios no distrito normalmente presididos por Mário Soares, na altura secretário geral do PS. Recordo-me de ele ter feito algumas deslocações ao distrito, uma delas começou em Sines e acabou num comício na Praça de Bocage, em Setúbal. Foi o marco mais importante da campanha e a Praça de Bocage encheu de gente. SR – No entanto o PS nem sempre foi bem recebido pela população, nomeadamente em zonas mais controladas pelo PCP. As coisas chegaram a ser violentas? AA – Em alguns concelhos fomos extremamente mal recebidos e de uma forma muito agressiva. Lembro-me que em Alvalade Sado cuspiram-me na cara, foi junto a uma fábrica de concentrado de tomate onde existia um núcleo muito activo e muito radical do PCP. Eles opunham-se à difusão das ideias do PS e, naquele dia, insultaram Mário Soares e todos os que o acompanhavam. Lembro-me também de um episódio em Almada, junto do tribunal, onde um conjunto de vendedoras do mercado municipal nos insultou e apupou verdadeiramente. Chegou-se a vias de facto durante uma visita de campanha ao concelho da Moita, fomos apupados e houve uma troca de palavras que culminou numa cena de pancadaria. Isso deu mesmo origem a que fossem voltados e destruídos alguns carros da caravana do PS. SR – Os deputados eleitos tinham por missão elaborar o texto da Constituição da República. Foi um trabalho difícil, tendo em conta a situação que o país vivia? AA – Foi um trabalho muito intenso, na medida em que vivíamos uma situação política muito agitada e muito polémica, sobretudo nas ruas. O trabalho dos deputados foi sempre acompanhado de uma actividade política frenética nas ruas e que nem sempre foi calma. Foi um trabalho da máxima importância para o país, as intervenções dos deputados foram muito ricas e foram sempre como que um reflexo do que era situação geral do país. Ou seja, as grandes questões que surgiram em torno da Constituição tiveram mais a ver, não com a formulação final do texto constitucional mas sim com a análise e a interpretação política que cada uma das forças fazia no plenário. Recordo-me, por exemplo, que no auge das ocupações houve uma intervenção do deputado António Reis, que foi veementemente criticada pelo PCP e que deu origem ao abandono da sala por parte dos deputados comunistas, não sem antes terem feito ameaças ao deputado que usava da palavra. Isto mostra o ambiente de crispação que se vivia entre os diversos grupos parlamentares. E a grande tensão dava-se, de facto, entre o PS e o PCP. SR – As decisões da Assembleia Constituinte terão sido influenciadas pelas pressões exercidas nas ruas? AA – Creio que não. Acho que o trabalho da Constituinte pôde avançar com alguma serenidade, apesar das constantes pressões. No entanto, houve situações delicadas como foi o caso do cerco à Assembleia Constituinte. Eu não estava lá porque nesse dia tinha combinado fazer uma sessão de esclarecimento em Santiago do Cacém. Saí muito tarde da sessão e fui para casa. Como não ouvi as notícias nesse dia, só na manhã seguinte é que fiquei a saber que os meus colegas ainda estavam cercados no hemiciclo. Então estabeleci contacto telefónico, perguntei-lhes se seria necessário solidarizar-me com eles. Disseram-me que seria útil ter um porta voz na sede do PS, por isso em vez de me dirigir à Assembleia acabei por me dirigir à Rua da Emenda, onde funcionava a sede do partido. A manifestação era de trabalhadores da construção civil que reivindicavam melhorias salariais. De alguma forma, o cerco também estava a fazer uma pressão política para que os deputados não levassem o seu trabalho até ao fim. Recordo-me de uma controversa entrevista do secretário geral do PCP, Álvaro Cunhal, em que ele afirmou que Portugal nunca seria uma democracia burguesa e que, portanto, o parlamento nunca teria um funcionamento semelhante ao dos restantes países europeus. Aquela manifestação dos trabalhadores do PCP tinha por base as reivindicações salariais mas tinha também um conteúdo político relacionado com as ideias do PCP, de não encontrar um modelo de socialismo através da democracia, mas sim da instauração de uma ditadura do proletariado. Afinal Álvaro Cunhal enganou-se. Mas também não digo que esta era uma convicção absoluta e inabalável porque, na altura, dentro do próprio PCP notavam-se algumas tensões e divergência de opiniões. SR – O texto da Constituição da República saído desse grupo de deputados, e aprovado no ano seguinte, correspondeu às expectativas entretanto criadas? AA – Embora em determinada altura tenha pedido a renúncia e fixado os esforços exclusivamente no trabalho partidário, uma vez que fazia parte da Direcção Nacional do PS, creio que os deputados fizeram um trabalho muito importante. A Constituição foi discutida com grande profundidade e abertura de espírito apesar das pressões exteriores e, portanto, acabou por sair da Assembleia Constituinte um texto extremamente rico. Algumas pessoas acusavam-no de ser um texto demasiado programático enquanto a ala à direita dizia ser um texto demasiado à esquerda, mas a verdade é que acabou por se revelar uma Constituição eficaz e eficiente, trazendo um conteúdo à democracia portuguesa e levando-a a estabelecer as regras que deram origem à estabilidade que hoje temos. SR – 25 anos depois de ter contribuído para a elaboração da lei fundamental do país, como é que vê Portugal? AA – Algumas pessoas encontram apenas defeitos e erros, mas quem tiver a coragem de fazer uma análise fria e objectiva do que eram as dificuldades do país em 1974 em contraposição com o que hoje se vive, constata que a evolução foi uma coisa enorme e um passo de gigante. É certo que muitos desses passos foram possíveis graças à adesão de Portugal à União Europeia e às ajudas que daí vieram, mas também é verdade que conseguimos estabilizar a nossa economia e desenvolvê-la, ao mesmo tempo que consolidámos a democracia e criámos e desenvolvemos o poder local. Fui um dos proponentes do programa do PS que constituiu a actual filosofia do poder local e ele foi vertido na Assembleia Constituinte através do presidente da Comissão do Poder Local e de todos os que a constituíam. Quer a estabilização das instituições democráticas quer a estabilidade económica foram retomando a normalidade a seguir ao 25 de Novembro de 1975 e, portanto, entre aquilo que era o bem estar das populações na altura e o que se verifica hoje em dia vai uma distância muito grande. Isto significa que a democracia tem enormes virtualidades e que é preciso que os cidadãos a utilizem de uma maneira construtiva de forma a darem orientações sobre aquilo que queremos para o país. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |