Edição Nº 123 • 08/05/2000 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Tentativa do Governo de saneamento do delegado da Inspecção de Trabalho) |
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A defender delegado da Inspecção de Trabalho Sindicatos de Setúbal contra Barros Moura
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– Onde é que estava na noite de 12 de Maio de 1975? Santos Rodrigues – Estava no INATEL, em Setúbal, para onde fui convocado pelo Governo enquanto sub-delegado da Inspecção de Trabalho. A sala estava cheia de trabalhadores e de dirigentes sindicais de 16 sindicatos – os que existiam na altura – e também de gente da Inspecção de Trabalho de outros concelhos. A reunião tinha sido convocada pelo Ministério do Trabalho para esclarecimento das pessoas a propósito da decisão de sanear o delegado da Inspecção, Almeida Santos, uma vez que dias antes os trabalhadores e sindicalistas tinham-se manifestado contra a decisão oficial. Pelo Ministério do Trabalho veio Barros Moura, que na altura era director geral dos Relações Colectivas de Trabalho, e Célia Ramos, que era a instrutora do processo de saneamento. Os jornais da época falam na presença de João Amaral mas, de facto não me recordo de o ter visto lá. SR – A reunião decorreu de forma pacífica? SR – Não e devido à posição tomada pelos trabalhadores, acabou por resultar inconclusiva. Mas os problemas começaram antes do início da reunião. Lembro-me muito bem que estava uma noite chuvosa, o INATEL estava cheio de gente e as pessoas que não conseguiam entrar ficavam à porta à espera do início dos trabalhos. Entretanto Barros Moura chegou perto do edifício e viu tanta gente à porta que ficou amedrontado. Por isso, resolveu ir para o Quartel do 11 na esperança de que, demorando a chegar, as pessoas desmobilizassem. Mas os trabalhadores estavam de tal maneira interessados na reunião que não desmobilizavam. Entretanto, caiu uma grande carga de água e as pessoas dispersaram. Era já cerca da uma da manhã, quando Barros Moura se aproximou do local e, vendo que não havia gente fora do pavilhão pensou que as pessoas se tinham chateado com a demora e desmobilizado. Quando ele decidiu entrar a notícia espalhou-se e os trabalhadores voltaram a encher o pavilhão. Os ânimos estavam exaltados e ele nem sequer teve hipótese de explicar as razões por que veio a Setúbal. SR – Como é que acabou o encontro? SR – Acabou com os representantes do Governo calados, sem poderem explicar as razões que os levavam a querer sanear o delegado da Inspecção de Trabalho. Isto porque a primeira coisa que os 16 sindicatos colocaram em cima da mesa foi um documento onde diziam não admitir que, naquela reunião, se fizessem acusações ao visado sem que estas tivessem sido objecto de investigação pelos tribunais. Como eles se adiantaram nas posições, Barros Moura ficou sem argumentos e acabou por não ler o documento sobre as acusações que se faziam a Almeida Santos. SR – Nessa altura já os sindicatos se tinham manifestado publicamente contra a decisão do Governo, de sanear o delegado da Inspecção de Trabalho? SR – Sim, inclusivamente tinham ocupado as instalações da Inspecção em Setúbal. Não deixavam que se fizesse o saneamento nem sequer permitiam que ele fosse a Lisboa, como pretendia o Ministério. Esta resistência era reforçada com uma frase que os sindicatos usavam muito na altura: “os problemas de Setúbal são resolvidos em Setúbal”. E foi na sequência desta tomada de posição que os serviços centrais resolveram vir até Setúbal, mas sem resultados. SR – Antes da reunião, o Ministério convocou Almeida Santos para ir aos serviços, em Lisboa. Porque é que ele não foi? SR – Convocaram-no por telex, mas o certo é que ele não chegou a ter conhecimento da ordem porque, entretanto, o papel não lhe foi entregue. Não sei bem como é que isso aconteceu, uma vez que, nessa altura, eu estava num almoço fora, mas o certo é que o telex não chegou às mãos de Almeida Santos. Quem tomou conta da máquina de telex foram os sindicatos e, quando nós chegámos do almoço, deparámo-nos com o problema. Então disseram-me que o ministro Costa Martins queria saber quem era o responsável pelo facto do telex não ter sido entregue ao destinatário. Ora, quando chegámos já tinha sido gerado um consenso entre os funcionários, de que se o ministro queria saber dos responsáveis era porque queria tirar consequências disso. De maneira que, por um gesto de solidariedade com a pessoa, que eles sabiam, que tinha tirado o papel acabaram por fabricar uma versão dos acontecimentos. Disseram que haviam por lá vários sindicatos, entraram e saíram e, se calhar, mexeram no telex. No meio desta versão confessadamente aldrabada, a telefonista disse que também me viu passar por ali. Foi o suficiente para que o instrutor do processo, Joaquim Correia, achasse que tinha ali um bode expiatório. E eu nem tinha estado lá, pois estava no almoço com os colegas. Mas não levei a mal pois tratou-se de um gesto de solidariedade para com a pessoa que mexeu no telex. Como o instrutor achou que era eu o culpado pelo facto de Almeida Santos não ter tomado conhecimento da ordem e, consequentemente, não ter ido a Lisboa, levantou logo um inquérito para apurar responsabilidades. Disso resultou que eu estive suspenso durante 180 dias, tal como outros colegas do serviço. E eu sem saber de nada, pois estava no tal almoço. Algum tempo depois, iniciámos um processo contra o instrutor e, ao mesmo tempo, solicitámos um reexame do processo disciplinar. Nessa altura já Costa Martins tinha substituído por Tomás Rosa à frente do ministério. SR – O que é que levava o Governo a querer sanear Almeida Santos? SR – Ele vinha do anterior regime e tinha substituído Pinto Cardoso que, posteriormente veio a ser secretário de Estado. O mesmo Pinto Cardoso que foi secretário de Estado há pouco tempo e que acabou por se demitir por acusações infundadas relacionadas com dinheiros do Instituto de Emprego. Uma das razões da vinda de Barros Moura a Setúbal era precisamente a divulgação das acusações contra Almeida Santos, pois queria dizer que os trabalhadores não deviam confiar tanto nele porque ele não teria as mãos assim tão limpas. Mas como ninguém deixou Barros Moura falar, ficámos sem saber que acusações é que se faziam ao delegado da Inspecção de Trabalho. A reunião foi um fiasco, especialmente para ele porque, para além de ter ficado impedido de falar, chegou mesmo a ser apupado. Tenho muita consideração por ele, é uma pessoa intelectualmente muito válida, de espírito aberto e não fanático, mas naquela altura estava muito envolvido com aquele processo. Mas teve azar porque acabou por se tornar a vítima da reunião que ele próprio convocou porque, para além de ter sido impedido de falar, alguns trabalhadores acusaram-no de ser contra a classe. Isto porque horas antes tinha proferido declarações na rádio que não eram lá muito simpáticas para os trabalhadores. Efectivamente, saiu dali achincalhado e chateado. SR – No entanto, Almeida Santos acabou mesmo por ser demitido. Porque é que os sindicatos deixaram ‘cair’ a causa que tanto defenderam? SR – Na sequência do fiasco da reunião de Setúbal, no dia seguinte os 16 sindicatos foram chamados ao ministério, a Lisboa, e os funcionários da Inspecção também. Naquela altura andávamos quase sempre juntos, para onde chamavam uns chamavam também os outros. Esteve presente Carlos Carvalhas, que na altura era secretário de Estado, vindo depois, mais tarde, a assumir o cargo de ministro do Trabalho. Mas foi uma reunião de ‘cortar à faca’ porque Carlos Carvalhas deu um enorme raspanete nos sindicatos. E eu não estava nada tranquilo porque aquilo não era normal. Era uma reunião que denotava uma enorme crispação entre a administração central, os sindicatos e a administração periférica. Até porque havia um enorme desconhecimento sobre onde é que andava o poder. Na altura haviam os tais mandados de captura assinados em branco por Otelo Saraiva de Carvalho, de modo que existia uma espécie de desorientação sobre de que forma é que o poder estava a ser utilizado e ia ser utilizado naquelas circunstâncias. E o ambiente estava mesmo muito crispado, de tal maneira que uma das coisas de que me recordo foi a apreciação feita por Carlos Carvalhas para intimidar os sindicatos. Fez uma crítica frontal à atitude dos sindicatos e depois criou uma ideia geral de que não havia ninguém que parasse a revolução e que ela que era como um tanque. Por isso, dizia Carlos Carvalhas, quem se pusesse à frente da revolução era esmagado. Eram recados mandados para as pessoas que tomaram uma posição mais frontal no caso Almeida Santos, nomeadamente o Sindicato dos Rodoviários. SR – Porque é que os sindicatos defendiam tanto o delegado da Inspecção de Trabalho? SR – Na altura, os sindicatos estavam no início e tinham muita vontade de fazer coisas boas. Na altura, ainda os partidos políticos não tinham influenciado decisivamente as organizações sindicais, por isso elas eram livres e não dependiam de ordens vindas de outros lados. Por isso, tinham uma maneira sã de agir e de lutar pelo que defendiam. Neste caso, lutaram por acreditar que Almeida Santos não merecia ser saneado. Para eles não interessava se o delegado vinha do regime anterior, o que interessava era que ele os ajudava nas negociações com as entidades patronais. Na altura a Inspecção de Trabalho era chamada para tudo o que era conflito, uma vezes íamos com os militares do MFA e outras íamos sozinhos. E o facto era que viam em Almeida Santos uma pessoa que ajudava os trabalhadores, de uma maneira aberta, a satisfazerem algumas das expectativas criadas com a revolução de Abril, nomeadamente, a melhoria da situação laboral como foi o caso de aumentos salariais e do direito às férias. SR – Depois da reunião, em Lisboa, os sindicatos deixaram de defender o delegado? SR – Sim, tenho ideia de que, perante a posição de Carlos Carvalhas, os sindicatos começaram a pensar que, se calhar não era bem assim e que talvez houvesse razões para que ele saísse. Não sei se foi nesse dia ou no anterior que saiu no Diário de Notícias as razões do Governo para sanear Almeida Santos, o que sei é que no dia da reunião de Lisboa as pessoas já estariam a par das acusações que Barros Moura tinha sido impedido de fazer em Setúbal. Não me lembro, concretamente, que razões tinham sido invocadas para isso, mas o certo é que depois da reunião, onde Carlos Carvalhas conseguiu desmobilizar e assustar os sindicatos, o delegado da Inspecção de Trabalho não voltou a aparecer nas instalações. Portanto, os sindicatos desmobilizaram, desocuparam as instalações da Inspecção, em Setúbal, o ministério levou a sua avante e Almeida Santos foi mesmo saneado. SR – Depois da saída de Almeida Santos, houve alguma alteração na conduta da Inspecção de Trabalho de Setúbal face aos trabalhadores? SR – Não, pois continuámos durante muito tempo a correr de um lado para o outro a ‘apagar fogos’, tentando resolver conflitos entre trabalhadores e patrões. Na instituição havia um espírito de ajuda e o sentido de que éramos um factor equilibrante porque a legislação relativa ao trabalho era fortemente desequilibrada para os trabalhadores. Íamos a todas as situações para as quais éramos solicitados e, muitas vezes, actuávamos de modo próprio no sentido de resolver os conflitos que iam surgindo. Até meados de 1976, altura em que as coisas começaram a acalmar. O Governo mudou, Tomás Rosa tomou posse no ministério e a sua forma de agir acalmou as coisas. Durante muito tempo, a delegação de Setúbal da Inspecção de Trabalho foi solicitada por trabalhadores, sindicatos e patrões, uma vez que a instituição era vista como um reservatório de bom senso. SR – Tendo sido suspendido de funções e acusado infundadamente, tal como aconteceu a muitos outros colegas de trabalho, considera-se uma vítima da revolução? SR – Vítimas da revolução não, mas sim vítimas de pessoas sem critérios e sem carácter. Nestas coisas há sempre oportunismos e pessoas que aproveitam as circunstâncias para se porem em bicos de pés e alcançarem benefícios que nunca teriam pelos seus meios próprios. Por outro lado, a revolução trouxe à generalidade das pessoas novas expectativas que foram para além da própria liberdade de expressão. Foi uma época muito trabalhosa porque andávamos de um lado para o outro sem ter tempo para descansar. Mas foi também a época da conquista de direitos e de regalias que até então ninguém sonhava ter, como as férias e os subsídios de férias, e que os trabalhadores, desde os operários fabris até aos trabalhadores agrícolas – que assinaram em Setúbal o primeiro contrato de trabalho do país nesta área – conseguiram com a ajuda da delegação da Inspecção de Trabalho. Sentimos que fazíamos parte da mudança e estávamos muito ligados às mudanças que se iam processando a nível laboral na região. Era uma forma de contribuirmos para o cumprimento da revolução de Abril. |
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Entrevista de Etelvina Baía [email protected] |