Edição Nº 124 • 15/05/2000 | |
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MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO |
(Ocupação das instalações e saneamento da administração da Transul) |
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Por mais regalias e pela repartição dos lucros Trabalhadores da Transul ocuparam empresa
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– Onde é que estava em Maio de 1975? José Novelo – Estava ao serviço da Transul e os trabalhadores andavam agitados na exigência de melhores condições de trabalho e melhores salários. A agitação vinha desde o 25 de Abril de 1974, pelo que os trabalhadores andavam sempre em plenários e reuniões. Houve uma altura em que se deu mesmo a ruptura de que se estava à espera. Durante um plenário nesse mês de Maio, que durou uma noite inteira, foram lançadas algumas propostas e uma delas era a de barrar a entrada da administração na empresa. Isso acabou por ser aprovado, pelo que passámos lá a noite à espera da chegada da administração. De manhã, cumpriu-se a decisão do plenário e os patrões nem sequer lá puseram os pés porque os avisámos pelo telefone. A partir daí, decidimos fazer escalas para ter lá sempre trabalhadores a dormir, de maneira a fazer piquetes de segurança de noite e de dia. SR – Nessa acção, chegaram a ser saneadas outras pessoas? JN – Sim, depois de termos afastado os patrões decidimos afastar temporariamente alguns quadros médios da empresa: o chefe da contabilidade, o chefe de pessoal e o chefe dos serviços, todos eles ligados à administração. Embora alguns trabalhadores mais ligados à administração tivessem estranhado e reclamado, aquela foi uma ocupação pacífica, uma vez que nem os quadros nem os patrões se opuseram à decisão dos trabalhadores. SR – A partir daí como é que a Transul foi gerida? JN – Nessa altura a lei das comissões de trabalhadores ainda não estava regulamentada mas nós já tínhamos uma, pelo que tomámos conta da empresa. Da Comissão faziam parte pessoas de diversos sectores, desde os motoristas aos cobradores, passando pelos administrativos e pelo pessoal das oficinas. Tínhamos um elemento muito válido, que era o chefe dos escritórios, e que durante aquele período deu-nos as orientações necessárias para tomar conta daquilo. Mas houve uma enorme dificuldade em gerir a empresa, por parte dos trabalhadores. SR – A que é que se deveu essa decisão dos trabalhadores? JN – Foi o resultado de 48 anos de ditadura e de repressão em que as pessoas queriam mas não podiam falar. E isso reflectia-se muito na empresa, onde as pessoas não podiam falar, nem sequer chegar dois minutos atrasadas que os chefes já não deixavam entrar ao serviço. Isso foi revoltando as pessoas e a ocupação foi fruto da época de liberdade que vivíamos. A ocupação deu-se mais de um ano depois da revolução mas o pessoal já vinha fervendo desde essa altura e houve um dia em que não aguentou. SR – O ambiente na empresa antes da revolução era de repressão? JN – Era. Lembro-me de situações que foram ficando marcadas na memória dos trabalhadores. Dias antes do 25 de Abril de 1974, tínhamos recusado fazer horas extraordinárias e, em consequência disso, fomos chamados à PIDE que tinha um gabinete dentro da empresa. Foi nesse gabinete que, a partir de 1975, ficou instalada a Comissão de Trabalhadores. Mas ao ver os trabalhadores a entrarem um de cada vez na sala para serem interrogados, o pessoal não aguentou e quis falar com a PIDE. Então, deixaram entrar uma delegação de seis pessoas, na qual eu participava. Perguntaram-nos o que se passava e mostrámo-lhes as cadernetas com as horas de trabalho. Os polícias ficaram atrapalhados porque viram que nós não podíamos fazer mais do que aquelas horas por dia. Coisas como esta foram-se avolumando e, por outro lado, o pessoal já estava relativamente politizado porque tendo sido o resultado da fusão de duas transportadoras, a Transul tinha trabalhadores das empresas. E numa delas, na Beira Rio, o pessoal aprendeu muito com o proprietário, José Zagalo, que esteve preso durante algum tempo por pertencer ao PCP. SR – Então, a empresa tem uma história de resistência à ditadura? JN – Sim, lembro-me muito bem dos contactos do José Zagalo com o Partido Comunista, pelo quais acabou por ser preso. Ele tinha ligação com trabalhadores dentro da empresa, pelo que decorriam aqui acções de protesto. De vez em quando apareciam montes de panfletos pela empresa, ninguém sabia de onde vinham mas sabíamos nós porque eram os trabalhadores que os distribuíam. Avariou-se carros, cortaram-se correias de alternadores e fez-se uma série de outras coisas antes do 25 de Abril de 1974, como forma de luta contra a ditadura. Na sequência do 25 de Abril até prendemos os patrões lá dentro e, durante algum tempo deixámos passar apenas comida. Da data não me recordo, mas sei que tinha a ver com um caderno reivindicativo que apresentámos. E decidimos não arredar pé enquanto eles não cedessem à exigência da atribuição de 1.500 escudos a cada trabalhador. SR – Com o início da autogestão, como é que a empresa ficou? JN – Tivemos muitas dificuldades para ultrapassar algumas barreiras, particularmente perante os bancos e os clientes tínhamos que ter dinheiro. Lembro-me que andei com um cheque de 500 contos, para receber, dentro de uma pasta. Andei com ele muito tempo porque íamos constantemente à Timex que nos devia esse dinheiro e eles não nos pagavam. E isso aconteceu também com os bancos porque, legalmente, a Comissão de Trabalhadores não tinha autoridade para fazer estas operações. Então as coisas complicaram-se porque não havia dinheiro suficiente para lidar com os fornecedores e para adquirir o material necessário à empresa. SR – Quanto tempo esteve a Transul em autogestão? JN – Esteve assim quase um ano, até ser criada a Rodoviária Nacional, em Julho de 1976. Durante a autogestão, aos poucos as entidades foram reconhecendo a Comissão de Trabalhadores como gestora da empresa. Além disso, o chefe dos escritórios ajudava-nos a resolver a maior parte dos problemas e as coisas ficaram mais fáceis. Mais tarde, o Governo nomeou dois elementos para a comissão de gestão e nós nomeámos dois elementos em representação dos trabalhadores. A partir daí, as coisas tornaram-se muito mais fáceis e a Comissão de Trabalhadores deixou de gerir a empresa. Nunca tivemos problemas, correu tudo muito bem com esta gestão e o pessoal ficou lá todo a trabalhar. SR – As exigências feitas na ocupação de Maio chegaram a ser cumpridas? JN – No geral foram cumpridas. Os autocarros novos vieram, até porque antes da autogestão os patrões já tinham encomendado novos veículos. Também não houve problemas com o pagamento do movo material porque a empresa era muito rentável e tinha dinheiro. Lembro-me muito bem de que, quando estava na Comissão Trabalhadores, chegámos a uma altura em que tivemos quase um milhão de contos de lucro. SR – A reivindicação de colocar os lucros da empresa ao serviço dos trabalhadores também foi cumprida? JN – Isso foi fruto da época. Depois de iniciada a autogestão, o dinheiro foi aplicado na melhoria do serviço, criámos carreiras para zonas onde os autocarros nunca tinham chegado e íamos até onde as populações pediam. Nesse aspecto, as coisas melhoraram bastante na empresa. E isso aconteceu também quando se transformou em Rodoviária Nacional porque a partir daí foram criadas muitas carreiras para pequenas aldeias que nunca tinham tido transportes públicos. Não me esqueço que a Rodoviária nasceu da fusão de 93 empresas de transportes públicos do país, entretanto nacionalizadas. A RN ocupava, então, o terceiro lugar na lista mundial das grandes empresas de transportes. SR – Quando a Rodoviária se formou, os trabalhadores viram assegurados os postos de trabalho? JN – Mal ela foi formada começou logo a dar sinais de se desmantelar, por isso a luta dos trabalhadores nunca mais teve descanso. E lembro-me que a empresa chegou a ter quase doze mil trabalhadores em todo o país. Nos primeiros tempos do governo de Cavaco Silva, começaram logo a querer retirar à empresa os outros bens de que dispunha, como os hotéis. Aqui começaram os plenários de trabalhadores, que movimentavam milhares de pessoas pelos dez centros da RN e pelas dez comissões representativas dos funcionários. Durante todos este anos estive na Comissão de Trabalhadores e saí de lá há pouquíssimo tempo. Lembro-me bem de alturas muito críticas, logo no início do processo de desmantelamento da RN, onde decidimos fazer uma concentração em Lisboa. A empresa não nos quis alugar autocarros e nós não fizemos mais nada: pegámos em 40 autocarros do distrito e percorremos Lisboa inteira em marcha lenta. Chegámos à Avenida da Liberdade com 40 autocarros a buzinar e sem parar nos sinais. Haviam polícias por todo o lado mas nenhum deles disse nada. Fomos à sede da empresa e terminámos a manifestação junto ao Ministério dos Transportes. Foi um episódio que ficou para a História e significou uma das épocas mais lindas da nossa vida. SR – Durante esse anos, viveu momentos de grande emoção para os trabalhadores? JN – Sim, dos melhores. Claro que se vivia uma época diferente da actual. Por isso, guardo muito boas recordações daqueles anos. Ficámos maravilhados com a liberdade de expressão e com as melhorias que a empresa teve. Na altura pensávamos que as coisas iam ser um mar de rosas, mas o facto é que não foram. Hoje, se formos ver a frota de autocarros e os serviços, está quase tudo como antes do 25 de Abril porque as coisas têm vindo a deteriorar-se de ano para ano. SR – Se a RN não tivesse desaparecido, acha que hoje as coisas seriam diferentes? JN – Sem dúvida que sim. E dou um exemplo disso: houve uma altura em que a Carris, que sempre deu mais regalias sociais, tinha ordenados inferiores aos da RN. Actualmente um motorista da Carris com 16 anos de carreira ganha muito mais do que eu, nos TST, já com 36 anos de casa. SR – Acha que as coisas têm vindo a piorar para os trabalhadores? JN – Têm vindo mesmo a piorar, quer para nós quer para toda a população. Basta dizer que o meu ordenado mensal é de 94.500 escudos e, se não forem as horas extraordinárias, o pessoal não se safa. Isto era tudo muito bonito há 25 anos atrás mas as coisas foram mudando com o tempo. Dantes, íamos para um plenário em Lisboa ou fazíamos greve e parava tudo, mas hoje é outra coisa porque os mais novos são muito difíceis de mobilizar. São pessoas nascidas após o 25 de Abril e cujos pais lhes puderam dar a vida que a minha geração não pode ter. SR – Isso fá-lo desanimar em relação ao futuro? JN – Não, até porque me faltam dois anos para a reforma. Por outro lado, o que não há dúvida é que agora ando a lutar para eles, os mais novos. Contudo não tenho pena disso porque o que conta é a minha dignidade. Se eu lutei sempre, agora que tenho a vida melhor é que não lutava? Quando a luta é justa, claro que vou em frente. |
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Entrevista de Pedro Brinca [email protected] |